FUNDAMENTOS HISTÓRICOS E POLÍTICOS DO MARXISMO REVOLUCIONÁRIO

PARA A LUTA DE CLASSES PROLETÁRIA,

TRAVADA EM PROL DA CONSTRUÇÃO DE UMA SOCIEDADE MUNDIAL

SEM EXPLORAÇÃO DO HOMEM PELO HOMEM, SEM EXPLORAÇÃO DE NAÇÕES POR NAÇÕES

 

CARTA DE FRIEDRICH ENGELS

a Franz Mehring

14 de Julho de 1893

 

FRIEDRICH ENGELS[1]

 

Concepção e Organização, Compilação e Tradução  Emil Asturig von München

Publicação em Homenagem a Portau Schmidt von Köln

Outubro 2007 emilvonmuenchen@web.de

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Londres, 14 de julho de 1893

 

Caro Sr. Mehring,

 

Apenas hoje, estou podendo, pela presente missiva, vir agradecer-lhe pela “Lenda de Lessing” que me foi tão generosamente enviada.

Não pretendia enviar-lhe uma comunicação meramente formal de recepção do livro, mas sim também dizer-lhe, no mesmo passo, algo sobre ela – sobre o seu contéudo.

Daí, resultou o atraso.

Começo pelo fim – i.e. com o apenso, intitulado “Acerca do Materialismo Histórico”, onde o Sr. apresenta as coisas principais magnifica e convincentemente para toda pessoa imparcial.

Se encontro algo a objetar, deve-se ao fato de que o Sr. me atribui mais méritos do que me cabem, mesmo que eu tivesse em conta tudo aquilo que possivelmente poderia haver descoberto de maneira autônoma – com o tempo -, o que Marx, porém, descobriu muito mais rapidamente, com o seu coup d’oeil (EvM.: golpe de vista) mais instantâneo e sua mais ampla visão de conjunto.

Quando se tem a sorte de trabalhar conjuntamente, ao longo de 40 (quarenta anos), com um homem como Marx, não se obtém, comumente, durante o tempo de vida deste, todo aquele reconhecimento que se acreditava merecer.

Então, quando morre o homem de maior envergadura, torna-se o menor facilmente sobrestimado – e esse me parece ser exatamente o meu caso agora.

No fim das contas, a história colocará isso tudo em ordem e, até lá, fica-se, afortunadamente, aí pelo canto, não se sabendo mais nada de nada.

Dito isso, falta ainda apenas mais um ponto que, porém, nos escritos de Marx e nos meus, não surge, em regra, suficientemente destacado e em relação ao qual somos culpados ambos, em igual medida.

Com efeito, ambos colocamos o peso principal, em primeiro lugar, na dedução das representações políticas, jurídicas e todas as outras noções ideológicas e, assim também, dos atos intermediados por essas representações, a partir dos fatos econômicos fundamentais, sendo que assim tivemos de fazer.

Nisso, negligenciamos, então, o lado formal, i.e. : o modo e a maneira segundo os quais emergem essas representações etc., em favor do lado conteudístico. 

Isso concedeu, pois, aos nosso adversários um pretexto bem-vindo para mal-entendidos ou desfigurações, do que Paul Barth constitui um exemplo impressionante.[2]

 

A ideologia é um processo executado, em verdade, conscientemente pelo assim chamado pensador, porém com falsa consciência.

As forças propulsoras efetivas que o movimentam permanecem-lhe desconhecidas.

Caso contrário, isso não se trataria, precisamente, de um processo ideológico.

O pensador em causa imagina, portanto, forças propulsoras falsas ou aparentes.

Por se tratar de um processo intelectual, ele deduz tanto o conteúdo quanto a forma desse processo a partir do pensamento puro, seja a partir do seu próprio pensamento, seja a partir daquele de seu precursor.

Trabalha com o puro material do pensamento que aceita, indiscriminadamente, como produzido pelo pensamento, não investigando, adicionalmente, pelo contrário, uma origem mais remota, independente do pensamento.

E, na realidade, isso lhe surge mesmo como algo evidente, dado que todo o agir - porque intermediado pelo pensamento - parece-lhe fundado, igualmente, em última instância, no pensamento,

O ideólogo da história (o histórico deve significar aqui, de modo simplesmente resumido, o político, o jurídico, o filosófico, o teológico, em suma : todos os domínios que pertencem à sociedade – e não meramente à natureza) – o ideológo da história possui, portanto, em cada domínio científico, um material que se formou autonomamente a partir do pensamento de gerações precedentes e percorreu uma série própria e autônoma de desenvolvimento no cérebro dessas gerações que se seguiram umas às outras.

Certamente, fatos externos que pertencem a um domínio peculiar ou a outros domínios podem ter atuado, de maneira co-determinante, sobre esse desenvolvimento.

Porém, esses fatos mesmos constituem, precisamente, segundo o pressuposto tácito, novamente, apenas frutos de um processo do pensamento e, assim, permanecemos ainda no campo do mero pensamento que, por si mesmo, digeriu os fatos mais duros, com aparente satisfação.

É sobretudo essa aparência de uma história autônoma das Constituições do Estado, dos sistemas jurídicos, das representações ideológicas, em cada domínio especial, que cega a maioria das pessoas.

Se Lutero e Calvino “superaram” a religião católica oficial, se Hegel “superou” Fichte e Kant, se Rousseau com seu “Contrat Social” republicano “superou” indiretamente o Montesquieu constitucional, tais ocorrências representam, então, um processo que permanece no interior da teologia, da filosofia, da ciência do Estado, uma etapa na história desses domínios do pensamento, não saindo, de nenhuma forma, do domínio do pensamento.

E, a partir do momento em que se agrega a isso a ilusão burguesa da eternidade e da irrevogabilidade da produção capitalista, até mesmo a superação dos mercantilistas pelos fisiocrátas e por Adam Smith vale como uma pura vitória do pensamento – não como um reflexo do pensamento relativo a fatos econômicos modificados, mas sim como a correta compreensão, definitivamente alcançada, sob condições efetivas, sempre e por todo o lado existentes.

Se Ricardo Coração de Leao e Filipe Augusto II da França tivessem introduzido o livre comércio – em vez de terem-se metido nas cruzadas -, haveríamos poupado cinco séculos de miséria e idiotices.

Esse lado da questão, que aqui posso apenas referir, acredito que tenhamos ambos mais negligenciado do que era devido.

É a velha história: no início, a forma é sempre negligenciada em favor do conteúdo.

Como dito, assim também procedi, sendo que sempre topava com o erro apenas post festum (EvM.: posteriormente, depois da festa).

Portanto, não apenas me encontro bem longe de atribuir-lhe qualquer tipo de reprovação – para isso, não tenho nem mesmo direito, como o mais idoso dos co-responsáveis, senão que, muito pelo contrário -, porém, gostaria sim de chamar-lhe atenção precisamente para esse ponto, no que diz respeito ao futuro.

Nesse contexto situa-se também a seguinte estúpida noção dos ideólogos:  precisamente porque subtraimos às diferentes esferas ideológicas, que desempenham um papel na história, um desenvolvimento histórico autônomo, estaríamos subtraindo-lhes também todo e qualquer efeito histórico.

Esse raciocínio é aqui embasado com a noção ordinária, não-dialética, de causa e efeito, concebidos enquanto pólos rigidamente opostos um ao outro, o que significa o total esquecimento da interação.

Freqüentemente esses senhores esquecem, quase propositadamente, que um momento histórico, tão logo seja colocado no mundo, em dada ocasião, através de outras causas, em última instância, causas econômicas, acaba reagindo também sobre o seu redor, podendo reagir até mesmo sobre as suas próprias causas.

Assim, posiciona-se Barth, p. ex. acerca do estamento dos padres e da religião, tal como assinalado pelo Sr., à página 475.  

Fiquei muito contente em ver como o Sr. arruina com esse sujeitinho, cuja banalidade excede todas as expectativas.

E fazem desse homem Professor de História em Leipzig !

Lá, encontrava-se antes, porém, o velho Wachsmuth que, embora fosse também um homem fraco na cachola, possuía um senso muito grande para os fatos e era um pessoa inteiramente distinta.

Adicionalmente, posso apenas repetir sobre o seu livro o que disse, repetidamente, sobre os seus artigos, quando publicados na revista “Neue Zeit (Novo Tempo)” : é, de longe, a melhor exposição existente da gênese do Estado prussiano.

Em verdade, posso bem dizer que é a única boa exposição que desenvolve corretamente, até os detalhes, as interconexões, na maioria das questões.

Cumpre apenas lamentar que o Sr. não tenha podido incluir logo todo o desenvolvimento subseqüente até Bismarck e não se pode deixar de desejar que o faça, em uma outra ocasião, apresentando o quadro de conjunto, em seu contexto, desde o príncipe eleitor Friedrich Wilhelm até o velho Wilhelm I.

Mesmo porque o Sr. já realizou os estudos preliminares e, ao menos, no principal, já os praticamente encerrou.

E a coisa deve ser empreendida de todo jeito, antes que a lata velha se arrebente.

A dissipação das lendas monárquico-patrióticas é – se não precisamente uma pressuposto necessário para a eliminação da monaquia que encobre a dominação de classe (de vez que, na Alemanha, tornou-se obsoleta uma pura República burguesa, antes mesmo que viesse a surgir) – certamente uma das alavancas mais poderosas para tanto.

Então, o Sr. terá também mais espaço e oportunidade para apresentar a história local prussiana como uma peça da inteira misère (EvM.: miséria) da Alemanha.

O ponto em que, aqui e ali, divirjo um pouco de sua concepção é o seguinte : a concepção acerca dos pressupostos da fragmentação da Alemanha e do fracasso da revolução burguesa alemã do século XVI. 

Se conseguir reelaborar a introdução histórica de minha “Guerra Camponesa” – o que espero venha a acontecer no próximo inverno -, poderei desenvolver, nessa sede, os pontos relativos a esse tema.[3]

 

Não que considere errado os pontos, indicados pelo Sr., mas sim que justaponho outros, agrupando-os de modo um pouco diferente. (...)

 

 

EDITORA DA ESCOLA DE AGITADORES E INSTRUTORES

“UNIVERSIDADE COMUNISTA REVOLUCIONÁRIA J. M. SVERDLOV”

PARA A FORMAÇÃO, ORGANIZAÇÃO E DIREÇÃO MARXISTA-REVOLUCIONÁRIA

DO PROLETARIADO E SEUS ALIADOS OPRIMIDOS

MOSCOU - SÃO PAULO - MUNIQUE – PARIS



[1] Cf. ENGELS, FRIEDRICH. Brief an Franz Mehring in Berlin (Carta a F. Mehring em Berlim)(14 de Julho de 1893), in : Karl Marx und Friedrich Engels Werke (Obras de Karl Marx e Friedrich Engels), Vol. 39, Berlim : Dietz, 1968, pp. 96 e s. Assinalo, brevemente, que Franz Mehring (1846-1919) foi um notável historiador e publicista marxista, dirigente de grande envergadura do movimento operário alemão e internacional, ao lado de Rosa Luxemburg e Karl Liebnecht. No início de sua militância proletária, defendeu posições democrático-burguesas radicais. Nos anos 80 do século XIX, aderiu, porém, à Social-Democracia Alemã. Já a partir de 1900, foi um dos principais dirigentes e teóricos da esquerda revolucionária social-democrática e defendeu uma política classista coerentemente internacionalista,  difundindo, também durante a I Guerra Mundial, a luta contra o militarismo imperialista. Em 1918, Mehring foi um dos fundados do KPD (Partido Comunista Alemão).  Redigiu inúmeras obras históricas de grandiosa importância sobre a Prússia, a Alemanha e a Social-Democracia Alemã, como também é o autor de vastíssima biografia de Karl Marx.                     

[2] Acerca do tema, vide BARTH. PAUL. Die Geschichtsphilosophie Hegels und der Hegelianer bis auf Marx und Hartmann. Ein kritischer Versuch (A Filosofia da História de Hegel e dos Hegelianos até Marx e Hartmann. Uma Tentativa Crítica)(1890), Darmstadt : Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1967, pp. 3 e s.  

[3] Vide, nesse sentido, ENGELS, FRIEDRICH.  Der deutsche Bauernkrieg (A Guerra Camponesa Alemã)(Verão de 1850), in : Karl Marx und Friedrich Engels Werke (Obras de Karl Marx e Friedrich Engels), Vol. 7, Berlim : Dietz, 1960, pp. 327 e s. O livro de Engels em destaque foi publicado, pela primeira vez, no “Neue Rheinische Zeitung. Politisch-Ökonomische Revue (Nova Gazeta Renana. Revista Político-Econômica)”, Cadernos V e VI, entre os meses de maio e outubro de 1850.  Em verdade, Engels possuía a intenção de reelaborar, no inverno de 1893, a introdução histórica de sua obra em realce. Porém, a edição dos volumes segundo e terceiro de “O Capital”, bem como a elaboração de outros trabalhos inadiáveis, impediram-no de concretizar aquele seu propósito original. Sem embargo, esboços e fragmentos literários referentes à matéria a ser desenvolvida encontram-se inteiramente disponíveis ao exame dos historiadores, interessados pelo tema.