PRODUÇÕES LITERÁRIAS DEDICADAS À FORMAÇÃO
DE REVOLUCIONÁRIOS MARXISTAS QUE ATUAM NO DOMÍNIO DO
DIREITO, DO ESTADO E DA JUSTIÇA DE CLASSE
KARL MARX E FRIEDRICH
ENGELS SOBRE O DIREITO E O ESTADO, OS JURISTAS E A JUSTIÇA
Acerca da Questão Judía
:
Sobre a Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão:
Liberdade, Igualdade,
Propriedade e Segurança
KARL MARX[1]
Concepção e
Organização, Compilação e Tradução
Emil Asturig von
München, Janeiro de 2009
Para Palestras, Cursos
e Publicações sobre o Tema em Destaque
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Geral
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(...) Portanto, o Estado pode ter-se
emancipado da religião, mesmo que a maioria esmagora permaneça ainda
sendo religiosa.
E a maioria esmagadora não deixa de ser
religiosa pelo fato de que é religiosa privatim (EvM.: de modo privado).[2]
(...) A elevação política do ser humano
acima da religião divide todos os defeitos e vantagens da elevação
política em geral.
O Estado, enquanto Estado, anula, p.ex.,
a propriedade
privada, o ser humano declara suprimida a propriedade privada, de
modo político, logo depois de suprimir o censo para o direito eleitoral ativo e
passivo, tal como ocorre nos Estados norte-americanos.
Hamilton
interpreta esse fato de modo inteiramente correto, desde o ponto de vista
político, ao afirmar que:
“As massas venceram um batalha contra os
proprietários e a riqueza monetária.”[3]
(...) Não é a propriedade privada
idealmente suprimida, quando o não-proprietário se torna legislador
do proprietário ?
O censo é a última forma política de
reconhecimento da propriedade privada.
Todavia, com a anulação política da propriedade
privada, esta não apenas não é suprimida, senão até mesmo pressuposta.
O Estado suprime, a seu modo, a diferença
de nascimento, de estamento, de educação, de ocupação,
quando declara o nascimento, o estamento, a educação, a ocupaçao, como
diferenças não-políticas, quando proclama, desprezando essas diferenças, todos
os membros do povo como iguais participantes da soberania popular,
quando trata todos os elementos da vida popular desde o ponto de vista estatal.
Nada obstante, o Estado permite que a propriedade
privada, a educação, a ocupação atuem a seu modo, i.e.
enquanto propriedade privada, educação, ocupação, fazendo
prevalecer sua essência particular.
Bem longe de suprimir essas diferenças
fáticas, o Estado existe, muito pelo contrário, apenas sob essas condições,
sentido-se como Estado político e fazendo valer sua universalidade em oposição
a esses seus elementos.
Por isso, Hegel define a relação
existente entre Estado político e religião de modo inteiramente correto, quando
afirma:
“A fim de que ... o Estado venha a
existir enquanto a realidade moral que sabe de si mesma é necessária sua diferenciação,
mantida entre forma da autoridade e da crença. Porém, essa diferenciação surge
apenas na medida em que chegue o aspecto eclesiástico, em si mesmo, à separação.
Apenas
assim, acima das Igrejas particulares, adquiriu o Estado a
universalidade do pensamento, o princípio de sua forma, conduzindo-o à existência
(HEGEL. Filosofia do Direito, 1a.
Ed., p. 346).
Com efeito !
Apenas assim, acima dos elementos particulares, o
Estado constitui-se como universalidade.
Segundo a sua essência, o perfeito
Estado político é a vida do gênero humano em oposição à sua vida
material.
Todos os pressupostos dessa vida egoísta
permanecem fora da esfera do Estado, continuando a existir na sociedade
civil, porém como qualidades da sociedade civil.
Ali, onde o Estado político alcançou
sua verdadeira formação, o ser humano leva – não apenas no pensamento, na
consciência, senão também na realidade, na vida – um vida dupla, uma
vida celestial e uma terrena, a vida na comunidade política, na qual
vale como ser comunitário, e a vida na sociedade civil, na qual age
como homem
privado, considerando os outros homens como meio, degradando-se a si
próprio como meio e tornando-se uma bola de jogo de poderes estranhos.
O Estado político relaciona-se,
igualmente, de modo espiritual, para com a sociedade civil, tal qual o céu,
para com a terra.
Opõe-se a ela, superando-a, da mesma
forma que a religião tem de prevalecer a estreiteza do mundo secular, i.e. na
medida em que, igualmente, tem de voltar a reconhecê-la, reproduzí-la,
permitindo a si próprio ser por ela dominado.
Em sua realidade mais imediata, na sociedade
civil, o ser humano é um ser profano.
Aqui, onde contempla a si mesmo como indivíduo
real, sendo assim contemplado por outros, é um fenômeno fictício.
Pelo contrário, no Estado, onde o ser
humano vale como ser gregário, é o elo imaginário de uma soberania imaginária,
despojado de sua vida real individual e preenchido por uma universalidade irreal.
O conflito que o ser humano, adepto de
uma religião
particular, possui com sua cidadania estatal e com outros seres
humanos, considerados como membros da comunidade, reduz-se à cisão
terrena, havida entre o Estado político e a sociedade
civil.
Para o ser humano enquanto bourgeois
(EvM.: burguês, aqui no sentido específico de membro da sociedade civil), a “vida no Estado é apenas aparência ou uma
exceção momentânea contra a essência e a regra.”[4]
(…) Com efeito : nos períodos em que o Estado
político enquanto tal nasce violentamente da sociedade civil, quando a
auto-emancipação humana aspira a realizar-se sob a forma da auto-emancipação
política, o Estado pode e deve seguir em frente até à abolição da religião, até à
aniquilação da religião, porém assim o faz apenas na medida em que avança
até à supressão da propriedade privada, até ao máximo, até à confiscação, até
ao imposto progressivo, tal como vai adiante até à supressão da vida, até à
guilhotina.
Nos momentos de sua auto-consciência
especial, a vida política procura destruir seus pressupostos, a sociedade civil
e seus elementos, constituindo-se, então, a si própria como a vida real do
gênero humano, despojada de contradições.
Porém, consegue apenas o fazer através
de uma violenta contradição, deflagrada contra suas próprias condições
de vida, apenas na medida em que declara a Revolução como Permanente,
e o drama politico encerra-se, por isso, necessariamente, com a restauração da
religião, da propriedade privada, de todos os elementos da sociedade civil, tal
qual a guerra encerra-se com a paz.[5]
(…) Contemplemos, por um momento, os
assim denominados direitos do homem e, em verdade, os direitos do homem, em sua
forma autêntica, na forma que possuem entre os seus descobridores, os norte-americanos
e os franceses
!
Em parte, esses direitos do homem são direitos
politicos, i.e. direitos que são exercidos apenas em comum com outras
pessoas.
A participação na comunidade e,
especialmente, na comunidade política, na vida do Estado, forma o seu
conteúdo.
Encontram-se subsimidos sob a categoria
da liberdade
política, sob a categoria de direitos da cidadania do Estado (EvM.:
no original alemão, Staatsbürgerrechte) que, de nenhum modo, como vimos, pressupõem
a supressão inconcussa e positiva da religião, como, p.ex., da religião judia.
Resta vislumbrar ainda a outra parte dos
direitos
do homem, os droits de l’homme, na medida em que
se diferenciam dos droits du citoyen (EvM.: direitos do cidadão).
Entre eles, encontra-se a liberdade
de consciência, o direito de praticar uma religião qualquer.
O privilégio de crença é expressamente
reconhecido ou como direito do homem ou como conseqüência do direito do homem,
da liberdade.
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, 1791
Artigo
10. “Ninguém deverá ser perturbado por causa de suas opiniões, mesmo que sejam
religiosas.“
No Título I da Constituição
de 1791, é garantido como direito do homem :
„A
liberdade para todos os homens de exercer o culto religioso, ao qual é
vinculado.“
A Déclaration des droits de
l’homme, etc. 1793 (EvM.: Declaração dos Direitos do Homem etc., 1793)
enumera entre os direitos do homem :
„O
livre exercício dos cultos.“
Em verdade, relativamente ao
direito de externar publicamente seus pensamentos e opiniões, reunir-se,
exercer seu culto, dispõe até mesmo :
A necessidade de enunciar esses direitos pressupõe ou a presença ou
recordação recente do despotismo.”
Compare-se a Constituição
de 1795, Título XIV, Artigo 354:
Constituição da Pensilvânia, Artigo 9, § 3:
„Todos
os homens receberam da natureza o direito imprescritível de adorar o
Todo-Poderoso, segundo as inspirações de sua consciência, e ninguém poderá,
legalmente, ser constrangido a seguir, instituir ou apoiar, contra seu desejo,
um culto ou ministério religioso. Nenhuma autoridade humana poderá, de modo
algum, intervir nas questões de consciência e controlar os poderes da alma.“
Constituição de New-Hampshire, Artigos 5 e 6:
“Entre os direitos naturais, alguns são inalienáveis por sua própria
natureza, porque nada pode equivaler a eles. Entre estes, encontram-se os
direitos de consciência.”(Beaumont, l. c., pp. 213, 214.)
A incompatibilidade entre religião e
direitos do homem tão pouco reside no conceito de direitos do homem que o direito
de ser religioso - i.e. o direito de ser religioso da maneira que se
escolhe sê-lo, de praticar o culto de sua religião particular -, é até mesmo
enumerado, expressamente, entre os direitos do homem.
O privilégio de crença é um direito
universal do homem.
Os droits de l’homme, os direitos do homem, distinguem-se
enquanto tais dos droits du citoyen,
i.e. os direitos do cidadão do Estado(EvM.: no original alemão, Staatsbürgerrechten).
Quem é o homme (EvM.: homem) diferentemente do citoyen ? Ninguém senão o membro da sociedade civil.
Por que o membro da sociedade
civil é denominado de “homem”,
homem simplesmente, por que os seus direitos são denominados de direitos do homem ? Como
esclarecemos esse fato ?
Esclarecemos esse fato a partir da
relação, existente entre Estado
político e sociedade civil,
a partir da essência da emancipação política.
Sobretudo, constatamos o fato de
que os assim-chamados direitos do
homem, os droits de l’homme,
diferentemente dos droits du citoyen (EvM.:
direitos do cidadão), nada são senão os direitos do membro da sociedade civil, i.e. do homem egoísta, do homem
separado do homem e da comunidade.
A Constituição mais radical, a Constituição de 1793, pôde declarar o seguinte :
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão
Artigo
2.
„Esses direitos etc. (os direitos naturais e imprescritíveis) são : a
igualdade, a liberdade, a propriedade.“
No
que consiste a liberté (EvM.: liberdade) ?
Artigo
6. „A
liberdade é o poder que pertence ao homem de fazer tudo aquilo que não
prejudica os direitos de outra pessoa.“
Ou, segundo a Declaração dos
Direitos do Homem de 1791 :
”A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que não prejudica outra
pessoa.”
A liberdade é, portanto, o direito de fazer tudo e tudo empreender, desde que não prejudique o
próximo.
O limite no qual cada um pode se
movimentar sem prejudicar a outra pessoa é determinado pela lei, tal qual o
limite de dois campos é determinado por um poste de arame farpado.
Trata-se de uma liberdade do homem enquanto
indivíduo isolado e recolhido em si mesmo. (...)
Porém, o direito do homem à liberdade não se baseia na ligação do
homem com o homem, senão muito mais na separação do homem em relação ao homem.
É o direito dessa separação, o direito do indivíduo limitado, restrito a si mesmo.
A utilização prática do direito
do homem à liberdade é o direito do homem à propriedade privada.
Em que consiste o direito do homem da propriedade
privada ?
Artigo 16. (Constituição de 1793):
“O direito de propriedade é aquele que pertence a todo cidadão de gozar e
dispor, ao seu bom grado, de seus bens, de suas receitas, do fruto de seu
trabalho e de sua indústria.“
Portanto, o direito
do homem à propriedade privada é o direito de gozar de seu patrimônio e dele
dispor, arbitrariamente – ao seu bom grado -, sem relação com outras pessoas,
independentemente da sociedade, é o direito do interesse próprio.
Essa liberdade individual - e
a sua utilização - formam o fundamento da sociedade civil.
Ela leva a que cada ser
humano encontre em outro ser humano não a sua realização, senão muito mais a barreira
de sua liberdade.
Porém, proclama, sobretudo,
o direito
do homem :
Artigo
16.
(Constituição de 1793): “… de gozar e dispor, ao seu bom grado, de seus bens,
de suas receitas, do fruto de seu trabalho e de sua indústria.“
Restam, ainda, os outros
direitos do homem, a égalité (EvM.: igualdade) e a sûreté
(EvM.: a segurança).
A égalité (EvM.: igualdade)
– aqui, não em seu significado político – nada é senão a igualdade da liberdade acima
descrita, a saber : todos os homens enquanto tais são considerados, na
mesma extensão, como unidades auto-suficientes.
A Constituição de 1795
determina o conceito dessa igualdade, em consonância com seu significado, do
seguinte modo:
Artigo
3. (Constituição de 1795): “A igualdade consiste em a lei é a mesma para todos,
seja ao proteger, seja ao punir.”
E a sûreté (EvM.: segurança)
?
Artigo
8. (Constituição de 1793): “A segurança consiste na proteção acordada pela
sociedade a cada um de seus membros, para a conservação de sua pessoa, seus
direitos e suas propriedades.”
A segurança é o conceito social mais
elevado da sociedade civil, o conceito de polícia, o conceito de que toda a
sociedade existe apenas para garantir a cada um de seus membros a preservação
de sua pessoa, de seus direitos e de sua propriedade.
Nesse sentido, Hegel denomina a sociedade civil de “Estado
da necessidade e da razão.”
Por meio do conceito de segurança, a sociedade
civil não se ergue acima de seu egoísmo.
A segurança é, pelo contrário, o seguro
de seu egoísmo.
Portanto, nenhum dos assim denominados direitos
do homem vai além do homem egoísta, o homem
tal qual é membro da sociedade civil, a saber: o indivíduo separado da comunidade e
confinado em si mesmo, em seu interesse privado e em seu arbítrio privado.
Bem distante do fato de, nos direitos do homem, o ser
humano não ter sido concebido como um ser gregário, surge, pelo contrário,
a própria vida de seu gênero existencial, a sociedade, como um
contexto externo aos indivíduos, como limitação de sua autonomia
originária.
O único vínculo que a mantém coesa é a necessidade
natural, a indigência e o interesse privado, a conservação de sua propriedade e
de sua pessoa egoísta.
É mesmo misterioso o fato de que um povo que apenas
começa a se libertar, rasgando todas as barreiras, havidas entre os diversos
elos do povo, fundando uma comunidade política, proclame, solenemente, a legitimação
do homem egoísta, separado de seu semelhante e de sua comunidade (Declaração
de 1791) e repita essa proclamação em um momento em que tão somente a
devoção mais heróica pode salvar a nação, sendo, por isso, exigida,
imperiosamente, em uma ocasião em que o sacrifício de todos os interesses da sociedade
civil devem ser elevados à ordem do dia e o egoísmo, punido como um
crime. (Déclaration des droits de l’homme etc. de 1793 <EvM.:
Declaração dos Direitos do Homem etc. de 1793>).
Tanto mais misterioso torna-se esse fato, quando
verificamos que a cidadania do Estado, a comunidade política, é reduzida
pelos emancipadores políticos até mesmo a um mero meio de preservação desses
assim denominados direitos do homem, que, portanto, o citoyen (EvM.: cidadão) é
declarado serviçal do homme (EvM.: homem) egoísta, que a
esfera em que o ser humano se comporta como ser comunitário é
degradada a um nível inferior à esfera em que atua como ser particular, sendo,
finalmente, considerado como ser humano próprio e verdadeiro não
o homem como citoyen (EvM.: cidadão), mas sim o homem como bourgeois
(EvM.: burguês).
“O objetivo de todas as associações
políticas é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem.” (Declaração dos Direitos etc. de 1791,
Artigo 2.)
“O Governo é instituído para garantir ao homem o gozo de seus direitos
naturais e imprescritíveis.” (Declaração
etc. De 1793, Artigo 1°.)
Assim, mesmo nos momentos em que seu
entusiasmo ainda possui o frescor juvenil, sendo impulsionado ao máximo, por
força das circunstâncias, a vida política declara-se como mero meio, cujo fim é
a vida da sociedade civil.
Na verdade, sua prática revolucionária
encontra-se em contradição flagrante com sua teoria.
Enquanto, p.ex. a segurança é declarada um direito
do homem, a violação do sigilo da correspondência é colocada
publicamente na ordem-do-dia.
Enquanto, a “liberté indéfinie de la presse
(EvM.: a ilimitada liberdade de imprensa)” (Constituição Francesa de 1793,
artigo 122) é assegurada enquanto conseqüência do direito do homem,
enquanto conseqüência da liberdade individual, a liberdade de imprensa é
inteiramente aniquilada, pois “la liberté de la presse ne doit pas être
permise lorqu’elle compromet la liberté publique (EvM.: a liberdade de
imprensa não deve ser permitida, quando compromete a liberdade pública)” (Robespierre
jeune, Histoire parlementaire
de la revolution française, par Buchez e Roux, T. 28, p. 159. (EvM.: Robespierre,
o Jovem. História Parlamentar da Revolução Francesa), por Buchez e
Roux, Vol. 28, p. 159.)
Assim, quer dizer: o direito
do homem à liberdade deixa de ser um direito, tão logo entre em
conflito com a vida política, ao passo que, segundo a teoria, a vida política é
apenas a garantia dos direitos do homem, dos direitos do homem
individual, devendo ser, portanto, abandonada, tão logo contradiga o seu fim,
bem como esses direitos do homem.
Porém, a prática é apenas a exceção e a teoria
é a regra. Mesmo que se queira, porém, contemplar a prática revolucionária
enquanto o posicionamento correto da relação, resta ainda sempre o mistério a
ser resolvido, consistente em saber por que motivo, na consciência dos
emancipadores políticos, a relação encontra-se colocada de cabeça para baixo,
surgindo o fim como meio e o meio como fim. A ilusão ótica de sua consciência
permaneceria sendo o mesmo mistério, ainda que, agora, um mistério de ordem
psicológica, de ordem teórica.
O mistério resolve-se facilmente. A
emancipação política é, ao mesmo tempo, a dissolução da velha sociedade, sobre
a qual se assenta o sistema de Estado, alienado em relação ao povo, bem como o
poder de domínio. A Revolução Política é a revolução da sociedade civil.
Qual foi o caráter da velha sociedade?
Uma palavra a caracterizava : o feudalismo. A velha sociedade civil possuía,
diretamente, um caráter político, i.e. os elementos da vida civil, tais quais,
p.ex., a posse, a família ou a forma e o modo do trabalho, encontravam-se
elevados ao nível dos elementos da vida do Estado, na forma da dominação
fundiária, do estamento e da corporação. Eles determinavam, nessa forma, a
relação do indivíduo singular para com o Estado em seu conjunto, i.e. sua
relação política, i.e. sua relação de separação e exclusão em face das outras
partes integrantes da sociedade. Pois, aquela organização da vida nacional
elevava a posse ou o trabalho não ao nível dos elementos sociais, senão
completava muito mais sua separação em face do Estado em seu conjunto,
constituindo-as em sociedades particulares no interior da sociedade.
Assim, as funções e as condições da vida
da sociedade civil continuavam, contudo, a ser políticas - ainda que políticas
no sentido do feudalismo -, i.e. excluíam o indivíduo do Estado como um todo,
convertendo a relação particular de sua corporação para com o Estado em seu
conjunto em sua própria relação geral para com a vida nacional, tal como
convertiam sua atividade e situação civis determinadas em sua atividade e situação
gerais. Como conseqüência dessa organização, aparecem necessariamente a unidade
do Estado, assim como a consciência, a vontade e a atividade da unidade do
Estado, o poder geral do Estado, igualmente como negócio particular de um
dominador, isolado do povo, e de seus servos.
A Revolução Política que derrubou esse
poder de domínio, elevando os negócios do Estado ao nível de negócios do povo,
e constituiu o Estado político como negócio geral, i.e. como Estado real,
destruiu, necessariamente todos os estamentos, corporações, guildas,
privilégios, os quais nada mais eram senão expressões múltiplas da separação do
povo de sua comunidade.
A Revolução Política suprimiu, assim,
o caráter político da sociedade civil. Despedaçou a sociedade civil nas suas
partes componentes simples : de um lado, indivíduos, d’outro, elementos
materiais e espirituais que formam o conteúdo da vida, a situação civil desses
mesmos indivíduos.
Desencadeou o espírito político que se
encontrava praticamente desmembrado, decomposto, debandado nos diversos becos
da sociedade feudal. Reuniu-o a partir dessa dispersão, liberando-o de sua
mistura com a vida civil, constituindo-o como esfera da comunidade, do negócio
geral do povo, em independência ideal daqueles elementos particulares da vida
civil. A atividade determinada e a situação particular da vida foram reduzidas
a um significado apenas individual. Não mais formaram a relação geral do
indivíduo para com o Estado como um todo. O negócio público enquanto tal se
tornou muito mais um negócio geral de todo indivíduo e a função política, uma
função geral.
Porém, o aperfeiçoamento do idealismo
do Estado foi, concomitantemente, o aperfeiçoamento do materialismo
da sociedade civil. Sacudir o jugo político foi, ao mesmo tempo, deitar
por terra os laços que mantinham aprisionados o espírito egoísta da sociedade
civil. A emancipação política significou, simultaneamente, a emancipação da
sociedade civil em face da política, em face da própria aparência de um
conteúdo geral.
A sociedade feudal encontrava-se
dissolvida em seu fundamento, em seres humanos. Porém, em seres humanos, tais
quais compunham o seu fundamento, em seres humanos egoístas.
Esse ser humano, membro da sociedade
civil, é, agora, a base, o pressuposto do Estado político. É por este
reconhecido enquanto tal nos direitos do homem.
A liberdade do homem egoísta e o
reconhecimento dessa liberdade é, porém, antes de tudo, o reconhecimento do
movimento desenfreado dos elementos espirituais e materiais que formam o seu
conteúdo de vida.
O ser humano não foi, pois, libertado da
religião, senão adquiriu liberdade de religião. Não foi
libertado da propriedade, senão adquiriu a liberdade de propriedade. Não foi
libertado do egoísmo dos negócios, senão adquiriu a liberdade de negociar.
A Constituição do Estado político e a
dissolução da sociedade civil em indivíduos independentes – cuja relação entre
si é o Direito, tal qual a relação dos seres humanos dos estamentos e das
guildas era o privilégio – realiza-se em um único e no mesmo ato.
O ser humano, tal como membro da
sociedade civil, tal como um ser humano apolítico, surge, porém,
necessariamente, enquanto ser humano natural. Os droits de l’homme (EvM.:
direitos do homem) aparecem como droits naturels (EvM.: direitos
naturais), pois a atividade auto-consciente concentra-se no ato político.
O ser humano egoísta é o resultado passivo da sociedade
dissolvida, apenas encontrado como preexistente, objeto da certeza imediata,
portanto, um objeto natural.
A Revolução Política dissolve a vida
civil em suas partes componentes, sem revolucionar essas próprias partes
componentes, submetendo-as à crítica.
Comporta-se para com a sociedade civil,
para com o mundo das necessidades, do trabalho, dos interesses privados, do Direito
Privado, como o fundamento da existência destes, como um pressuposto
que não carece de justificação adicional, portanto, como sua base natural.
Por fim, o ser humano, tal como membro
da sociedade civil, é considerado como o ser humano efetivo, o homme
(EvM.: homem) em contraste com o citoyen (EvM.: cidadão), porque é o
ser humano em sua existência sensitiva, individual, imediata, ao passo que o
ser humano político é apenas o ser humano abstrato, artificial, o ser humano
enquanto pessoa alegórica, moral.
O ser humano real é reconhecido apenas
na forma do indivíduo egoísta, o ser humano verdadeiro, apenas na forma do citoyen
(EvM.: cidadão) abstrato.
A abstração do homem político é corretamente descrita por Rousseau,
da seguinte forma :
“Aquele
que ousa lançar-se em instituir (EvM.: na tradução de Marx : dar um ordenamento jurídico a) um povo deve sentir-se capaz,
por assim dizer, de modificar a natureza humana, capaz de transformar cada
indivíduo, o qual, por si mesmo, é um todo perfeito e solitário, em uma parte
de um todo maior do qual esse indivíduo recebe, de alguma maneira, sua vida e
seu ser, capaz de substituir uma existência física e independente por uma
parcial existência moral. É necessário que retire ao homem suas próprias
forças, para lhe dar forças que lhe são estranhas e das quais não pode fazer
uso, sem o auxílio dos outros.“ (ROUSSEAU, Contrato Social, Livro II,
Londres, 1782, p. 67.)
Toda emancipação é redução do mundo humano, das
relações, ao próprio ser humano.
A emancipação política é a redução do
ser humano, por um lado, a membro da sociedade civil, ao indivíduo
egoísta independente, por outro, ao cidadão do Estado, à pessoa
moral.
Apenas quando o ser humano real individual reabsorver
em si o cidadão abstrato do Estado e, como ser humano individual,
transformar-se em ser gregário, seja na sua vida empírica, seja no seu trabalho
individual, seja nas suas relações individuais, apenas quando o ser humano
tiver reconhecido e organizado suas “forces propres” (EvM.: forças
próprias) como forças sociais – não separando mais, por isso, de si mesmo a força
social em forma de força política – apenas então se
realizará plenamente a emancipação humana.[6]
EDITORA DA ESCOLA DE AGITADORES E INSTRUTORES
“UNIVERSIDADE COMUNISTA REVOLUCIONÁRIA J. M. SVERDLOV”
PARA A FORMAÇÃO, ORGANIZAÇÃO E DIREÇÃO
MARXISTA-REVOLUCIONÁRIA
DO PROLETARIADO E SEUS ALIADOS OPRIMIDOS
MOSCOU - SÃO PAULO - MUNIQUE – PARIS
[1] Cf. MARX, KARL. Zur Judenfrage (Acerca da Questão Judía)(Agosto –
Dezembro 1843), in : ibidem, Vol. 1, pp. 347 - 377. Assinalo que o presente
texto de Marx foi publicado, pela primeira vez, nos “Anais Franco-Alemães”,
em fevereiro de 1844.
[1] Cf. IDEM. ibidem, Capítulo I, p. 353.
[2] Cf. IDEM. ibidem, Capítulo I, p. 353.
[3] Anotação de Emil Asturig von München: Nesse sentido, vide HAMILTON, THOMAS. Men and Manners in America (Homens e Maneiras na
América)(1833), New York : Kelley, 1968, p. 146.
[4] Cf. IDEM. Zur Judenfrage (Acerca da Questão
Judia)(Agosto – Dezembro 1843), in : ibidem, Vol. 1, Capítulo I, pp. 354 e s.
[5] Cf. IDEM. ibidem, Capítulo I, p. 357.
[6] Vide IDEM. ibidem, Capítulo I, pp. 362 e s.