PRODUÇÕES
LITERÁRIAS DEDICADAS À FORMAÇÃO
DE REVOLUCIONÁRIOS
MARXISTAS QUE ATUAM NO DOMÍNIO DO DIREITO, DO ESTADO E DA JUSTIÇA DE CLASSE
KARL MARX E FRIEDRICH
ENGELS SOBRE O DIREITO E O ESTADO, OS JURISTAS E A JUSTIÇA
Debates acerca da Lei sobre
o Furto de Madeira (Parte V) :
A Legítima Defesa Contra a
Fome e a Falta de Teto
Empurra Necessariamente as
Pessoas a Cometerem Contravenções e Crimes :
Estado, Sentença Judicial
e Eficácia Jurídica da Sentença
Rebaixados à Condição de
Meios Materiais do Interesse Privado -
Sobre a Ilusão do Juiz
Apartidário e do Julgamento Imparcial
KARL MARX[1]
Concepção e
Organização, Compilação e Tradução
Emil Asturig von
München, Janeiro de 2009
Para Palestras, Cursos
e Publicações sobre o Tema em Destaque
Contatar emilvonmuenchen@web.de
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Geral
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Quando se tratou, no § 4, de atribuir o ato de avaliação
à autoridade de proteção denunciante, um deputado com mandato municipal
observou o seguinte :
« Se a proposta de permitir fluir o valor pecuniário da
pena para os cofres do Estado não for bem recebida, a presente disposição ora
em debate será duplamente perigosa. »
E é claro que a autoridade florestal não possui o mesmo
motivo para elevada apreciação, se suas estimações são realizadas não para o
Estado, mas sim para o Seu Senhor que lhe dá o pão de comer.
Esse ponto foi tão habilmente analisado a ponto de
permitir produzir a aparência de que o § 14 - o qual atribui os valores
pecuniários da pena ao proprietário de floresta - pudesse ser
rejeitado.
Aprovou-se o § 4.
Depois da votação de dez parágrafos, chegou-se,
finalmente, ao § 14, mediante o qual o § 4 recebeu um sentido modificado e
perigoso.
Não se tocou, absolutamente, nesse contexto.
O § 14 foi também aprovado e os valores pecuniários da pena
passaram a ser transferidos à caixa privada do proprietário de floresta.
Em verdade, a razão fundamental, a única razão aqui
mencionada é o interesse do proprietário de floresta, o qual não seria atendido,
de maneira suficiente, pela simples restituição do valor simples.
Porém, no § 15, esqueceu-se, novamente, ter-se votado
pela atribuição ao proprietário de floresta dos valores pecuniários da pena, decretando-se,
então, que ele mesmo deveria receber ainda, além do valor simples, um ressarcimento
de danos especial, porquanto uma mais-valia é imaginável,
tal como se ainda não tivesse recebido um acréscimo através dos valores
pecuniários da pena que fluem para sua caixa privada.
Observou-se ainda até mesmo que os valores pecuniários da pena
não seriam sempre passíveis de cobrança.
Produziu-se, assim, a impressão de que se pretendeu tomar
o lugar do Estado tão somente em relação ao dinheiro.
Porém, no § 19, joga-se fora a máscara, ao reivindicar-se
não apenas o dinheiro, senão ainda o próprio criminoso, não apenas a carteira
do ser humano, senão o próprio ser humano.
Nesse sítio, surge o método da fraude, de maneira aguda e
ostensiva, em verdade, com clareza auto-consciente, pois não mais hesita em
proclamar-se como princípio.
O valor simples e o ressarcimento
de danos conferiram ao proprietário de floresta, manifestamente, apenas
uma exigência privada contra o contraventor de madeira, para cuja
realização os tribunais cíveis encontram-se à sua disposição.
Se o contraventor de madeira não pode pagar, o
proprietário de floresta situa-se na posição ocupada por toda e qualquer pessoa
privada que possui um devedor insolvente e, através disso, não adquire,
sabidamente, nenhum Direito à prestação de trabalho forçado, nenhum Direito à
prestação de serviços, em uma palavra: à servidão temporária do
devedor.
O que é que confere, então, ao proprietário de floresta
essa pretensão?
Os valores
pecuniários da pena.
Na medida em que o proprietário de floresta reivindicou
para si os valores pecuniários da pena, reivindicou - tal como vimos -, além de
seu Direito Privado, um Direito do Estado sobre o
contraventor de madeira, colocando-se a si mesmo no lugar do Estado.
Porém, na medida em que o proprietário de floresta
atribui a si mesmo os valores pecuniários da pena,
dissimula, com sagacidade, que atribui a própria pena a si mesmo.
Antes, referira-se aos valores pecuniários da pena
enquanto simples valores pecuniários, sendo certo que, agora, a
eles se refere como pena.
Reconhece, agora, triunfantemente que, através dos
valores pecuniários da pena, o Direito Público converteu-se em
seu Direito Privado.
Em vez de recolher-se horrorizado diante dessa
conseqüência tanto crimonosa quanto revoltante, assume-a enquanto reivindicação,
precisamente porque é uma conseqüência.
Se o bom senso afirma que contradiz ao nosso conceito de
Direito, contradiz a todo tipo de Direito, o ato de entregar-se e tranferir-se
um cidadão do Estado a outro enquanto servo temporário,
declara-se, encolhendo-se os ombros, que os princípios foram apreciados, apesar de
que aí não existia nenhum princípio e nenhuma apreciação.
Dessa forma, o proprietário de floresta obtém, de maneira
fraudulenta, através dos valores pecuniários da pena, a pessoa do
contraventor de madeira.
O § 19 revela tão somente o duplo sentido do § 14.
Vê-se, assim, que o § 4 teria de ser completamente
impossível por meio do § 14, o § 14, por meio do § 15, o § 15 e o § 19 por meio
si mesmos, sendo que, além disso, teria de tornar impossível todo o princípio
de punição, precisamente por nele surgir toda a depravação desse princípio.
Não se pode mais habilmente manejar o postulado de divide
et impera (EvM.: Dividi e impera).
Nos parágrafos precendentes, não se pensa nos
subseqüentes e, nos subseqüentes, esquece-se dos precedentes.
Um já foi discutido e o outro ainda não o foi, de tal
sorte que ambos são colocados, por razões opostas, acima de todas as
discussões.
Porém, o princípio reconhecido é “o
sentimento de Direito e de eqüidade, visando à proteção do interesse do proprietário de
floresta”, o qual se situa diretamente em oposição ao sentimento
de Direito e eqüidade, visando à proteção do interesse do proprietário da
vida, do proprietário da liberdade, do proprietário da humanidade, do
proprietário do Estado, do proprietário de nada, a não ser de si mesmo.
Porém, nisso já chegamos bem longe.
Chegamos ao ponto em que o proprietário de floresta
recebe, em vez do do tronco de madeira, um ser que outrora havia sido humano :
Shylock:
Most learned judge! -- A sentence! come, prepare!
Portia:
Tarry a little; there is something else.
This bond cloth give thee here no jot of blood;
The words expressly are "a pound of flesh":
Take then thy bond, take thou thy pound of flesh;
But, in the cutting it, if thou cost shed
One drop of Christian blood, thy lands and goods
Are, by the laws of Venice, confiscate
Unto the state of Venice.
Gratiano:
O upright judge! Mark, Jew. O learned judge!
Shylock:
Is that the law?
Portia:
Thyself shaft see the act.
No vernáculo:
Shylock:
Sapientíssimo juiz! Uma senteça! Preparai-vos!
Portia:
Esperai um pouco; existe ainda alguma coisa a mais.
Esse título aqui não te dá nenhuma gotinha de sangue;
As palavras são expressamente “uma libra de carne”:
Pega, pois, o teu título e tua libra de carne;
Porém, cortando-a, se custar derramar
Uma gotinha de sangue cristão, tuas terras e teus bens
Estarão, pelas leis de Veneza, confiscados,
Dentro do Estado de Veneza.
Gratiano:
Oh, íntegro juiz! Observa, judeu! Oh, sábio juiz!
Shylock:
É essa a lei?
Portia:
Tu mesmo hás de comtemplar os autos.
(W. Shakespeare, The
Merchant of Venice (O Mercador de Veneza), Quarto Ato, Primeira Cena.)
E deveis vós mesmos contemplar os autos!
Sobre o que assentais vossa pretensão à servidão do
contraventor de madeira?
Sobre os valores pecuniários da pena.
Demonstramos que não possuís nenhum Direito aos valores
pecuniários da pena.
Abstraindo-se esse fato: qual é vosso princípio
fundamental?
É o de que o interesse do proprietário de floresta há
de ser assegurado, mesmo que se para isso o mundo do Direito e da liberdade
houverem
de ser destruídos.
Para vós, encontra-se inabalavelmente firme o fato de que
vossos danos de madeira devem ser compensados, de um modo
ou de outro, pelo contraventor de madeira.
Esse firme fundamento lenhoso de vosso raciocínio é tão
podre que um único soprar de vento da boa razão despedaça-o, em milhares de
escombros.
O Estado pode e deve dizer : garanto o Direito contra
todas as casualidades.
Apenas em mim, o Direito é imortal e, por
isso, hei de vos comprovar a mortalidade do crime, na medida em que o suprimo.
Porém, o Estado não pode e nem deve dizer que um
interesse privado, uma determinada existência da propriedade, uma tutela de
floresta, uma árvore, uma lasca de madeira – e, para o Estado, a maior das
árvores pouco mais é do que uma lasca de madeira – tudo isso se encontra
garantido contra todas as casualidades, tudo isso é imortal.
O Estado não pode proceder contra a natureza das coisas,
não pode produzir o infinito contra as condições do finito, não pode fazer o
plenamente seguro contra o acaso.
Assim como vossa propriedade não pode ser garantida pelo
Estado contra todo e qualquer acaso em face do crime, tampouco
pode também o crime converter essa natureza insegura de vossa propriedade em
seu oposto.
Evidentemente, o Estado há de assegurar vosso interesse
privado, na medida em que este possa ser assegurado mediante leis racionais e
medidas racionais de prevenção.
Porém, o Estado não pode conceder à vossa pretensão
privada em relação ao criminoso nenhum outro Direito senão o Direito das
pretensões privadas, senão a proteção da jurisdição civil.
Se não podeis obter, por essa via, nenhuma compensação,
em razão da indigência do criminoso, disso não decorre nada mais senão que toda
e qualquer via jurídica visando a essa compensação deixou de existir.
Por causa disso, o mundo não cairá no precipício e o Estado
não abandonará a trilha solar da Justiça, sendo certo que havereis conhecido a
perecibilidade de todas as coisas terrenas, uma experiência que mal parecerá
ser uma novidade picante à vossa sólida religiosidade ou mais surpreendente do
que tempestades, conflagrações e febres.
Porém, se o Estado fizesse do criminoso um vosso servo
temporário, sacrificaria a imortalidade do Direito à finitude de vosso interesse
privado.
O Estado provaria, assim, ao criminoso a mortalidade
do Direito, cuja imortalidade o Estado deve provar ao criminoso
mediante a pena.
Quando Antuérpia holandesa, ao tempo do Rei
Filipe da Espanha, teria podido, através da inundação de sua região,
deter facilmente os espanhóis, a corporação de mestres açougueiros não
concordou com esse ato, porque possuía bois gordos sobre os pastos.
Vós exigís que o Estado abandone sua região espiritual, a
fim de que vosso tronco de madeira seja vingado.
Existem ainda algumas disposições colaterais do § 16 a
serem expostas.
Acerca do tema, um deputado com mandato de municípios
observa o seguinte:
«Segundo a legislação existente até hoje, 8 (oito) dias
de prisão equiparam-se a uma pena pecuniária de 5 (cinco) unidades monetárias
de táler.
Não existe nenhuma razão suficiente à disposição para
partirmos disso.» (Nomeadamente, para estabelecerem 8 (oito) dias em vez de 14
(catorze) dias.)
Em relação ao mesmo parágrafo, a Comissão
Legislativa da Assembléia propôs o seguinte adendo:
« ... que, em nenhum caso, a pena de prisão deve durar
menos do que 24 horas. »
Quando se observou, então, que esse mínimo seria muito
forte, um membro do estamento honorífico dos cavaleiros da Assembléia
Estadual aduziu, em réplica :
« ... que a Lei Florestal Francesa não contém nenhuma
medida de pena inferior a três dias. »
No mesmo respiro com o qual se compensa – divergindo-se
da disposição da Lei Francesa - 5 (cinco) unidades monetárias de táler com 14
(catorze) dias de prisão, em vez de 5 (cinco), resiste-se, por devoção, contra
a Lei
Francesa, a fim de converter 3 (três) dias em 24 (vinte e quatro)
horas.
O deputado com mandato de municípios acima mencionado
observa, adicionalmente:
«No mínimo, seremos bem duros em casos de subtração de
madeira, os quais, porém, ainda não podem ser considerados como um crime a ser
apenado severamente, permitindo impor 14 (catorze) dias de prisão para uma pena
pecuniária de 5 (cinco) unidades monetárias de táler.
Isso conduzirá ao fato de que aquele que possui meios de
pagamento para poder comprar sua liberdade será punido de modo simples, ao
passo que o pobre sê-lo-á de modo duplo. »
Um deputado do estamento honorífico dos cavaleiros refere
que, nas redondezas de Cleve, muitas contravenções florestais
ocorrem simplesmente para obter-se acolhimento na Casa de Dentenção e
recebimento de custos de prisioneiro.
Esse deputado cavaleiro não prova precisamente aquilo que
pretende refutar, i.e. que a pura legítima defesa contra a fome e falta
de teto empurra necessariamente as pessoas a cometerem contravenções de madeira?
Essa necessidade abominável constitui uma circunstância
agravante?
O deputado com mandato de municípios acima
mencionado assinala:
«Tenho de considerar o já censurado corte de custos
como demasiadamente duro e, em
particular, em casos de trabalhos penais, como inteiramente
inexeqüíveis. »
A partir de muitos lados, censura-se o fato de que o
corte de custos até o ponto de chegar ao pão e à água seria por demais duro.
Um deputado com mandato de uma comunidade rural observa
que, no distrito governamental de Trier, o corte de custos já
haveria sido introduzido, demonstrando-se muito eficaz.
Por que o honrado orador quer encontrar precisamente no pão e na água
a causa do efeito benéfico em Trier?
Por que não, p.ex., no fortalecimento do sentido
religioso, acerca do que a Assembléia Estadual soube
tanto discursar e de modo tão comovente?
Quem teria suspeitado, outrora, que pão e água
seriam os verdadeiros meios de graça !
Em certos debates, acreditar-se-ia que o Santo
Parlamento Inglês houvesse sido revivificado. E agora ?
Em vez de coração, confiança e canto, pão e água,
prisão e trabalho florestal!
Quão generosamente fazem-se paródias com palavras, a fim
de obter-se para os renanos um assento no céu.
Quão generosamente surge-se novamente com palavras, a fim
de açoitar, com pão e água, toda uma classe de renanos para que preste trabalho
florestal, uma idéia que um possuidor holandês de latifúndio pouco se
permitiria a executar contra os seus negros.
O que é que tudo isso prova?
Prova que é fácil ser santo, quando não se quer ser
humano.
Assim, entender-se-á a seguinte passagem:
« Um membro da Assembléia Estadual achou ser desumana
a disposição contida no § 23.
Apesar disso, ela foi acolhida. »
Além da desumanidade, nada se relata acerca
desse parágrafo.
Toda nossa exposição demonstrou como a Assembléia
Estadual rebaixa o Poder Executivo, as autoridades administrativas, a
existência do acusado, a idéia de Estado, o próprio crime e a pena, à condição
de meios materiais do interesse privado.
Conseqüentemente, opinar-se-á que também a sentença
judicial é tratada como mero instrumento, do mesmo modo que a eficácia
jurídica da sentença o é como supérflua prolixidade.
«No § 6, a Comissão Legislativa da Assembléia deseja
eliminar a palavra “juridicamente eficaz”, porque, com o acolhimento da mesma,
entrega-se às mãos dos ladrões de madeira, em casos de inquérito por
contumácia, um meio de subtrairem-se à punição agravada, a ser aplicada em
casos de reincidência.
Contrariamente, muitos deputados protestam e observam que
é necessário opor resistência à eliminação da expressão “sentença juridicamente
eficaz”, contida no § 6 do Projeto de Lei, tal qual proposta pela Comissão.
Essa caracterização das sentenças situada aí nesse sítio,
tal qual acolhida nesse parágrafo, foi realizada, certamente, não sem
ponderações jurídicas.
Naturalmente, o intuito de punir rigorosamente a
reincidência será, então, mais fácil e freqüente, se todas as primeiras
sentenças judiciais bastarem para fundamentar a aplicação da pena mais grave.
Porém, há de se refletir se aquilo que se pretende é
sacrificar, assim, um princípio de Direito essencial em benefício de um
interesse de proteção florestal, tal como destacado pelo Relator.
Não nos podemos declarar de acordo com o fato de que, com
a lesão a um princípio indiscutível do
processo jurídico, seja atribuída um tal efeito a uma sentença, que ainda
não possui nenhuma existência legal.
Um outro deputado com mandato de municípios pleiteou a
rejeição da emenda da Comissão, assinalando que a mesma se choca contra as
disposições do Direito Penal, segundo o qual jamais um agravamento da pena pode
intervir, até que a primeira punição seja estabelecida mediante sentença
passada em julgado.
O Relator redarguiu : “O todo aqui existente constitui
uma lei excepcional e, portanto, também uma disposição excepcional como
a aqui proposta é, assim, admissível.
A proposta da Comissão Legislativa da Assembléia relativa
à eliminação da expressão “juridicamente eficaz” foi aprovada. »
A sentença é existente apenas para constatar a
reincidência.
As formas judiciais surgem perante a turbulência
avarenta do interesse privado como obstáculos pertubadores e supérfluos
de uma etiqueta pedante de Direito.
O processo é apenas uma escolta segura
que se concede ao adversário, em seu caminho rumo à prisão, uma mera preparação
à execução. Onde pretende ser mais do que isso, é levado a calar-se.
O medo do proveito próprio, do egoísmo,
espreita, calcula, combina, da maneira mais acurada, o modo segundo o qual o
adversário pode explorar, em seu próprio benefício, o terreno do Direito no
qual, tal qual um mau necessário, haverá de ser combatido, sendo sabido que é
possível adiantar-se em face desse adversário, adotando-se previamente as
contramanobras mais cautelosas.
Na indômita validação de seu interesse privado, choca-se,
assim, contra o próprio Direito, considerado como obstáculo, tratando-se
o próprio Direito como um obstáculo.
Desse modo, comercializa-se, regateia-se com o Direito.
Dele, substrai-se, aqui e ali, um fundamento.
Abranda-se-o mediante as mais suplicantes referências,
dirigidas ao Direito do interesse.
Dá-se-lhe tapinhas nas costas.
Sussura-se-lhe nos ouvidos : tratam-se de exceções e não
há regras sem exceções.
Pela volúvel amplidão de consciência ético-moral
com
a qual se trata o Direito como garantia do acusado e como objeto
autônomo, procura-se compensá-lo quase com o terrorismo e a meticulosidade que
se permite utilizar contra o inimigo.
Permite-se que o interesse do Direito fale enquanto
for o Direito do interesse.
Porém, tão logo colida com o mais sagrado Direito do
interesse, deve o interesse do Direito calar-se.
O proprietário de floresta que, por si mesmo, puniu,
é tão conseqüente para, por si mesmo, também julgar, pois que
julga, manifestamente, na medida em que declara juridicamente eficaz uma
senteça despida de qualquer validade juridicamente eficaz.
Que tipo
de ilusão estúpida e complicada é, em geral, esta de um juiz apartidário, dado
que o próprio legislador é partidário?
O que
significa um julgamento imparcial, se a própria lei é parcial?
O juiz
pode formular a parcialidade da lei apenas de maneira puritana, apenas a
aplicar desconsideradamente.
A
imparcialidade é, pois, a forma, não o conteúdo do julgamento. A lei antecipou
o conteúdo.
Se o
processo judicial nada é senão uma forma despida de conteúdo, essa bagatela
formal não possui, então, nenhum valor autônomo.
De acordo
com essa concepção, o Direito Chinês tornar-se-ia Direito
Francês se viesse a ser metido forçadamente dentro do procedimento
francês.
Porém, o Direito
material possui sua forma processual necessária, congênita.
Tal como a
chibata é necessária no Direito Chinês, tal como a tortura
enquanto forma processual pertence necessariamente ao conteúdo do Regimento
do Tribunal Criminal de Execução Sumária de Penas Capitais, pertence,
necessariamente, ao livre processo público um conteúdo público, segundo sua
própria natureza, ditado pela liberdade e não pelo interesse privado.
O processo judicial e o Direito não são menos
indiferentes um em face do outro do que o são, p.ex., as formas das plantas em
relação a elas mesmas e as formas dos animais em relação a carne e o sangue dos
próprios animais.
Há de existir um espírito que anime o
processo e as leis, pois o processo judicial é apenas o modo de vida da
lei e, portanto, o fenômeno de sua vida interior.
Os piratas de Tidong quebram os braços e as
pernas de seus prisioneiros, a fim de assegurarem seu domínio sobre eles[2].
Para assegurar seu domínio sobre o contraventor de
madeira, a Assembléia Estadual quebrou, portanto, não apenas os
braços e as pernas, senão ainda até mesmo perfurou o coração do Direito.
Reconhecemos, porém, o seu mérito, decorrente da reintrodução
de nosso processo judicial em algumas categorias que surgem como uma verdadeira
nulidade.
Devemos, pelo contrário, reconhecer a franqueza e a
conseqüência que concedem ao conteúdo servil uma forma servil.
Inserindo-se, materialmente, em nosso Direito o
interesse privado, que não suporta a luz da publicidade, importa
conferir-lhe também sua forma adequada, seu processo sigiloso, a fim de que, no
mínimo, não seja despertada e alimentada nenhuma ilusão perigosa e
autocomplacente.
Consideramos ser o dever de todo renano e, especialmente,
dos juristas renanos devotarem, nesse momento, sua principal atenção ao conteúdo
do Direito, a fim de que, sobretudo, não nos seja deixada apenas uma
máscara vazia.
A forma não possui qualquer valor, se não é a forma do
conteúdo.
A proposta da Comissão Legislativa que
acabamos de examinar e o voto de aprovação da Assembléia Legislativa
constituem o ponto culminante de todo o debate, pois a colisão existente
entre o interesse de proteção florestal e os princípios de Direito -
princípios de Direito estes sancionados pela nossa própria lei -, ingressa,
aqui, na consciência da própria Assembléia Estadual.
A Assembléia Estadual deliberou sobre o
fato de saber se os princípios de Direito deveriam ser sacrificados em face do
interesse da proteção florestal ou se o interesse de proteção florestal, em
face dos princípios de Direito, sendo que o interesse
suplantou o Direito.
Reconheceu-se, até mesmo, que a lei inteira é uma exceção
à lei, concluindo-se, por isso, que toda e qualquer disposição
excepcional naquela contida é admissível.
Permaneceu-se nos limites de sacar as conseqüências de
que o legislador descuidou.
Por todos os lados, onde o legislador se esqueceu de que
se tratava de uma exceção à lei e não de uma lei, por todos os lados, onde
validou o ponto de vista do Direito, surgiu a atividade de nossa Assembléia
Legislativa com tato seguro, corrigindo-o, suplementando-o, permitindo
que o interesse privado outorgasse leis ao Direito, ali, onde o Direito havia
outorgado leis ao interesse privado.
Portanto, a Assembléia Estadual cumpriu
plenamente sua determinação.
Segundo a sua vocação, defendeu um
determinado interesse particular, tratando-o como o objetivo
final.
É uma simples consequência de sua missão o
fato de que, nesse contexto, tenha pisoteado o Direito, pois o
interesse é, segundo sua própria natureza, um instinto natural cego, desmedido,
em suma, despido de legalidade.
E, por acaso, poderia a ausência de legalidade produzir
leis?
O interesse privado torna-se, assim,
tão pouco capaz de legislar em virtude do fato de tomar assento sobre o trono
do legislador quanto um mudo ao qual se entrega em suas mãos um alto-falante de
enorme dimensão torna-se, por isso, capaz de falar.
Seguimos apenas com repugnância esse debate enfadonho e
desconceituado.
Porém, consideramos haver sido nosso dever demonstrar,
valendo-nos de um exemplo, o que há de se esperar de uma Assembléia
Estamental dos interesses particulares, caso fosse convocada, mesmo,
que por uma única vez, a seriamente legislar.
Repetimos ainda mais uma vez: nossos estamentos estaduais
cumpriram sua determinação enquanto estamentos estaduais, porém encontramo-nos
muito distantes de pretender, com isso, legitimá-los.
Nos estamentos estaduais, o renano haveria de ter
prevalecido sobre o estamento estadual e o ser humano, sobre o proprietário de
floresta.
Transfere-se, legalmente, aos próprios estamentos
estaduais não apenas a representação dos interesses particulares, senão ainda a
representação do interesse provincial e, apesar de serem tão contraditórias
essas ambas tarefas, não se poderia, em caso de colisão, hesitar, nem um por só
momento, em sacrificar a representação do interesse particular em benefício da
representação da província.
O sentido de Direito e de lei é o provincialismo
mais significativo do renano.
Porém, é óbvio que o interesse particular, assim como não
conhece nenhuma pátria, não conhece nenhuma província, assim como não conhece o
espírito geral, não conhece o espírito local.
Em direta contradição com a afirmação daqueles escritores
da fantasia que adoram encontrar o romantismo ideal, a abismal
profundidade de sentimento e a fonte mais frutífera das formas individuais
e características da moralidade em uma representação dos interesses
particulares, suprime uma tal representação todas as diferenças
naturais e espirituais, na medida em que entroniza, no lugar dessas diferenças,
a abstração imoral, imprudente e insensata de uma determinada matéria e de uma
consciência determinada, a ela escravizadamente subordinada.
Madeira permanece sendo madeira, seja na Sibéria,
seja na França.
Proprietário de floresta permanece sendo proprietário de
floresta, seja em Kamtschatka, seja na Província Estadual
do Reno.
Portanto, se madeira e possuidor de madeira enquanto tais
produzem leis, estas em nada se diferenciarão entre si senão pelo ponto
geográfico e pelo idioma em que forem produzidas.
Esse materialismo repugnante, esse pecado
contra o espírito sagrado dos povos e da humanidade é uma conseqüência imediata
daquela doutrina que o “Preußische Staats-Zeitung (O Jornal do Estado
Prussiano)” prega ao legislador, a fim de que, em uma Lei de
Madeira, pense-se tão somente em madeira e floresta, solucionando-se as
diversas questões materiais não de modo político, i.e. não em
inter-conexão com toda a razão e toda a moralidade de Estado.
Os selvagens de Cuba consideravam o ouro um
fetiche dos espanhóis.
Eles mesmos, porém, celebravam uma festa em sua
homenagem, circundando-o, entoando cantos e lançando-o, então, ao mar.
Se os selvagens de Cuba tivessem
comparecido à sessão dos estamentos estaduais renanos, não haveriam de ter
considerado a madeira como sendo o fetiche dos renanos?
Porém, uma sessão subseqüente ensinar-lhes-ia que a
adoração de animais encontra-se vinculada ao fetichismo.
E, então, os selvagens de Cuba lançariam ao
mar os coelhos, a fim de poderem salvar os seres humanos.
EDITORA DA ESCOLA DE AGITADORES E INSTRUTORES
“UNIVERSIDADE COMUNISTA REVOLUCIONÁRIA J. M. SVERDLOV”
PARA A FORMAÇÃO, ORGANIZAÇÃO E DIREÇÃO
MARXISTA-REVOLUCIONÁRIA
DO PROLETARIADO E SEUS ALIADOS OPRIMIDOS
MOSCOU - SÃO PAULO - MUNIQUE – PARIS
[1] Cf. MARX. KARL. Debatten über das Holzdiebstahlsgesetz. Von einen
Rheinländer (Debates acerca da Lei sobre o Furto de Madeira. Por um Renano)(1°
de Novembro de 1842), in : ibidem, Vol. 1, pp. 139 e s. Anotação de Emil
Asturig von München : A passagem do texto de Marx, aqui em realce foi
publicado, originariamente, na "Gazeta Renana", Nr. 307,
de 3 de novembro de 1842. Destaco que o texto de Marx em apreço é parte de uma série de artigos, composta de
5 partes. Esses artigos de Marx,
redigidos entre 25 de outubro e 3 de novembro de 1842, propõem-se a analisar os
debates, ocorridos na Assembléia
Estadual da Renânia, entre 23 de maio e 25 de julho de 1841. Aplicando
magistralmente o método dialético-materialista à temática em causa, Marx conseguiu aqui examinar,
pela primeira vez, com profundidade, as contradições, existentes entre os interesses
materiais de diferentes classes histórico-sociais do mundo contemporâneo,
posicionando-se em defesa dos interesses das massas populares pobres,
despojadas de todos os tipos de propriedade. Marx demonstra, em seus artigos em realce, que o direito consuetudinário de recolhimento de madeira caída e
apanhada no chão não poderia ser tipificado como furto, por meio de
nova legislação penal. Reivindica, assim, para a pobreza o Direito Consuetudinário, válido em todos os países, o qual :
" ... por sua própria natureza, pode ser apenas o direito dessas
massas mais inferiores, desapossadas e elementares." E, com efeito
: em contraste com o direito
consuetudinário da nobreza privilegiada que se funda sobre a falsa
concepção de uma suposta desigualdade natural-estamental dos seres humanos, o direito consuetudinário da pobreza
é postulado por Marx como
efetivamente social-universal. Diferentemente dos animais despidos de razão, os
seres humanos são livres e iguais a todos os seus pares do gênero humano, ao
passo que os primeiros, por não gozarem de liberdade, são iguais apenas no
âmbito de sua espécie determinada. As diferenças de classes e estamentos
historicamente existentes contradizem, assim, à essência da liberdade igual de
todos os seres humanos. Os direitos consuetudinários
das distinções são, portanto, costumes, praticados contra o próprio
conceito de Direito e Legislação
Racionais, uma vez que seu conteúdo colide com sua forma jurídica,
enquanto que o direito
consuetudinário da pobreza não colide senão com a ausência de sua
própria formalidade jurídica. O interesse material dos proprietários de
floresta é, segundo Marx, um
interesse particular e, por consegüinte, limitado. O interesse das massas mais
inferiores, desapossadas e elementares, um interesse universal e
ilimitado. Por exigirem os proprietários
de floresta também um direito de
propriedade sobre a madeira
caída e apanhada no chão, agem
em discrepância com o direito
consuetudinário da pobreza, visto que são as próprias árvores, enquanto
partes integrantes da natureza, que despejaram ao chão e, praticamente,
excluíram de si mesmas essa madeira caída e apanhada. As massas mais
inferiores, excluídas, despejadas, separadas e não integradas pela sociedade de
classes, são tais qual a madeira caída ao chão e, nessa analogia, reconhecem,
instintivamente, o seu direito de
apropriação das coisas derrubadas e caídas ao chão. Antecipando em vários anos sua ulterior
magistral descoberta da essência da mais-valia
capitalista, Marx
demonstra que as classes proprietárias superiores exigiam não apenas
indenização pela subtração da madeira caída e apanhada no chão, senão ainda
penas pecuniárias a serem pagas pelos "ladrões
de madeira". O valor da madeira substraída nessas circunstâncias
deveria ainda ser fixado por autoridades florestais, contratadas pela nobreza
latifundiária, no melhor dos casos, não de modo vitalício, senão apenas
temporariamente. No último artigo da série aqui em realce, Marx propugnou, inovadoramente, seu conceito de fetiche, o qual haveria de desenvolver,
posteriormente, em sua crítica dialética do dinheiro e do capital. O texto aqui
em realce, tal quais os demais dessa série, demonstram, inequivocamente, o
início da dedicação intelectual de Marx
aos estudos da economia política.
Acerca do tema, vide mais precisamente Cf. IDEM.
Vorwort zur Kritik der Politischen Ökonomie (Prefácio à Crítica da Economia
Política)(Agosto de 1858 – Janeiro de 1859), in : ibidem, Vol. XIII, Berlim :
Dietz Verlag, 1961, pp. 7 e s.
[2] Cumpre anotar, de passagem, que Tidong é uma região
geográfica, situada na província indonésia de
Kalimantan, ilha de Bornéu.