PRODUÇÕES LITERÁRIAS DEDICADAS À FORMAÇÃO

DE REVOLUCIONÁRIOS MARXISTAS QUE ATUAM NO DOMÍNIO DO DIREITO, DO ESTADO E DA JUSTIÇA DE CLASSE

 

KARL MARX E FRIEDRICH ENGELS SOBRE O DIREITO E O ESTADO, OS JURISTAS E A JUSTIÇA

 

Carta a Ferdinand Lassalle

 

Sobre o Testamento e a Liberdade de Testar :

O Direito Romano Foi Mais ou Menos Modificado, Tendo Sido Apropriado pela Sociedade Moderna

A Noção Jurídica De Que o Sujeito da Livre Concorrência Possui De Si Mesmo Corresponde Àquela da Pessoa Romana

Correspondência com a Essência e as Próprias Necessidades da Livre Concorrência e a Sociedade Nela Fundada

Não Poderiam os Legados Ter Surgido Por Si Mesmos A Partir da Sociedade Burguesa, Mesmo Sem Referência à Roma ?   

 

 

KARL MARX[1]

 

Concepção e Organização, Compilação e Tradução

 Emil Asturig von München, Agosto de 2008

 

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Londres, 22 de julho de 1861

Caro Lassalle,[2]

 

 

Você deve considerar meu prolongado silêncio a partir de diferentes “attenuating circumstances (EvM.: circunstâncias atenuantes)”.

D’abord (EvM.: de início), ainda não consegui, até o presente momento - sem embargo das mais positivas promessas que me foram feitas nesse sentido -, colocar em ordem meus problemas financeiros e, assim, permitir chegar às suas mãos as ₤ 10 restantes – situação que me é especialmente desagradável.

Secundo (EvM.: em segundo lugar):  desde várias semanas (melhor dito, desde algumas dias), estou sofrendo de uma oftalmia asquerosa que me perturba em todas as leituras e redações.

Inicialmente, gostaria de lhe enviar um grande obrigado pelos seus esforços, despendidos na questão relativa à reaquisição de minha cidadania perdida.

Conseguimos, ao menos, comprometer o Governo Prussiano e desmarcarar, inteiramente, a sua assim denominada anistia.

Creio que a curiosa tentativa de assassinato, empreendida por Oskar Becker (nos jornais, não está claro se ele é um homem russo ou um alemão), muito há de contribuir para pôr um terrível fim à “Nova Era”.[3][4] 

 

 

Li a Segunda Parte de sua obra (quando queria começar com a Primeira Parte, fui impedido por minha inflamação dos olhos) e essa leitura proporcionou-me um imenso prazer.[5]

 

 

Comecei com o Nr. II, porque o tema em causa me era mais conhecido, o que, entretanto, não me embargará de contemplar, posteriormente, a questão em sua totalidade.

Você compreendeu mal, em certa medida, a glosa marginal, inteiramente breve, contida em minha carta precedente  - e, provavelmente, a culpa tenha residido na minha maneira de expressão.

D’abord (EvM.: de início), não pretendia dizer com a expressão “Testierfreiheit (EvM.: liberdade de testar)” a liberdade de fazer um testamento, mas sim a liberdade  de fazê-lo, desconsiderando completamente a família.

Na Inglaterra, o próprio testamento é muito antigo e não existe a menor dúvida de que os anglo-saxões o receberam a partir da Ciência do Direito Romano.

Que os ingleses contemplaram, já desde muito cedo, não o Intestat (EvM.: Direito de sucessão legítima, i.e. sem a existência de testamento), mas sim o Testaterbrecht (EvM.:  Direito de sucessão testamentário, i.e. fundado na existência de um testamento), como a situação normal, decorre do fato de que, na Alta Idade Média, quando morria o pater familias ab intestato (EvM.: o pai de família, sem deixar um testamento), transmitia-se à sua mulher e a seus filhos apenas a legítima, i.e. a parte obrigatória, de acordo com as circunstâncias, sendo que, porém, ⅓ ou ½ cabia à Igreja.      

É que os padres supunham que, se o pater familias houvesse feito um testamento, haveria de destinar à Igreja um certo quantum, visando à obtenção da salvação de sua alma.

Nesse sentido, é, em geral, provável que os testamentos possuíam, na Idade Média, uma conotação religiosa, sendo feitos no interesse do falecido e não dos sobreviventes.

 

Porém, a circunstância a que pretendia referir-me era a de que, depois da Revolução de 1688, foram abolidas as restrições que eram impostas legalmente ao testador, relacionadas até então com o Direito na sucessão familiar (não me ocupo aqui, evidentemente, da propriedade feudal).

Não resta a menor dúvida que isso correspondia à essência da livre concorrência e à sociedade, nela fundada.

Tampouco resta dúvida que o Direito Romano foi mais ou menos modificado, tendo sido apropriado pela sociedade moderna, porque a noção jurídica de que o sujeito da livre concorrência possui de si mesmo corresponde àquela de pessoa romana (sendo certo que, aqui, não pretendo absolutamente dedicar-me ao ponto muito essencial de que a noção jurídica de determinadas relações de propriedade - por mais que destas derivem – certamente não é e não pode ser, por sua vez, com estas congruente). 

Você demonstrou que a recepção do testamento romano assentou-se, originaliter (EvM.: originariamente), em um mal-entendido (e ainda nele se assenta, na medida em que se considere o discernimento científico dos juristas).

Porém, disso não decorre, absolutamente, que o testamento em sua forma moderna  – seja lá por quais forem os mal-entendidos do Direito Romano com os quais os juristas modernos possam pretender, corretamente, reconstruí-lo - trate-se do testamento romano mal-entendido.

Caso contrário, poderia ser dito que toda e qualquer conquista de um período precedente, apropriada por um período posterior, tratar-se-ia de um passado mal-entendido.

É certo que, p.ex., as três (3) unidades, tais quais os dramáticos franceses as construíam teoricamente, sob os auspícios de Luís XIV, assentavam-se no mau entendimento do drama grego (e do drama de Aristóteles, enquanto expoente desse drama).

Por outro lado, é igualmente certo que os dramáticos franceses entendiam os gregos precisamente do modo que correspondia às suas próprias necessidades artísticas, aferrando-se, por isso, ao assim denominado drama “clássico”, ainda por muito tempo depois de André Dacier e outros terem corretamente interpretado Aristóteles.    

Do mesmo modo, é certo que todas as Constituições modernas assentam-se, em grande medida, na Constituição Inglesa mal-entendida que, precisamente, adotam, essencialmente, aquilo que surge como decadência da Constituição Inglesa – e, presentemente, existe ainda de modo formal, apenas per abusum (EvM.: por abuso), na Inglaterra : p.ex. um assim denominado Kabinett (EvM.: ministério).

A forma mal-entendida é, precisamente, a forma geral e utilizada, em um determinado nível de desenvolvimento da sociedade, como general use (EvM.: uso geral). 

A questão de saber se, p.ex., os ingleses, sem Roma, teriam ou não teriam o seu testamento (o qual, a despeito da sua descendência direta do testamento romano e de sua adaptação às formas romanas não é o testamento romano), parece-me não suscitar preocupações.

Se, agora, colocasse a questão de modo diferente, p.ex. do seguinte modo : não poderiam os legados (mesmo porque o assim denominado testamento da atualidade torna, de fato, o herdeiro principal apenas um Universallegatar <EvM.: legatário universal>) ter surgido por si mesmos a partir da sociedade burguesa, mesmo sem referência à Roma ?

Ou, no lugar dos legados, disposições patrimoniais escritas, de modo geral, advindas da parte do defuncti (EvM.: defunto)?

Não me parecem ainda estar provado que o testamento grego foi importado por Roma, não obstante a probabilidade fale, entretanto, a favor disso.

 

Você viu que a sentença, prolatada contra Louis Auguste Blanqui – uma das mais ignominiosas que já se viu – foi confirmada em segunda instância.[6]

 

 

Agora, estou curioso por saber o que é que o seu amigo de Bruxelas, Louis Watteau, vai-me escrever a respeito.

Minha esposa envia-lhe as melhores saudações.

 

Seu

K.M.

 

Quanto a Brockhaus, refletirei sobre a questão, tão logo tenha terminado (EvM: a segunda parte da “Contribuição à Crítica da Economia Política”).[7]

 

 

Até o presente momento, jamais soltei de minhas mãos um um manuscrito à la chance (EvM.: ao acaso).

 

 

 

EDITORA DA ESCOLA DE AGITADORES E INSTRUTORES

“UNIVERSIDADE COMUNISTA REVOLUCIONÁRIA J. M. SVERDLOV”

PARA A FORMAÇÃO, ORGANIZAÇÃO E DIREÇÃO MARXISTA-REVOLUCIONÁRIA

DO PROLETARIADO E SEUS ALIADOS OPRIMIDOS

MOSCOU - SÃO PAULO - MUNIQUE – PARIS

 

 



[1] Cf. MARX, KARL. Brief an Ferdinand Lassalle in Berlin (Carta a F. Lassalle em Berlim)(22 de Julho de 1861), in : Karl Marx und Friedrich Engels Werke (Obras de Karl Marx e Friedrich Engels), Vol. 30, Berlim : Dietz, 1964, pp. 613 e s.

[2] Assinalo que Ferdinand Lassalle (1825 – 1864) foi filósofo, economista, jornalista, escritor, bem como um dos mais importantes dirigentes da classe trabalhadora alemã, entre 1862 e 1864. No início de sua vida pública, defendeu posições democratas pequeno-burguesas. No quadro da Revolução de 1848 e 1849, interviu ativamente, tornando-se, desde então, amigo de Marx e Engels. Em 1862 e 1863, foi um dos principais dirigentes do movimento operário alemão que aspirava a alcançar sua independência de classe e um dos fundadores da  Associação Geral  dos Trabalhadores da Alemanha (ADAV). Em torno das idéias de Lassalle, surgiu, a partir de 1862, a corrente ideológico-política denominada lassalleanismo, propugnadora do socialismo reformista e pacifista alemão, em sua vertente específica de socialismo do Estado. Enquanto principais reinvidicações programáticas, Lassalle pregava, de modo praticamente exclusivo e infalível, o estabelecimento de cooperativas de produção dos trabalhadores, impulsionadas com auxílios, prestados pelo Estado, cujo poder passaria às mãos do povo trabalhador por meio de sufrágio direto, igual e universal, derrubando-se a eterna “lei de bronze dos salários”, alcançando-se o socialismo de maneira pacífica e gradual. O método de obter tal perspectiva, incluía estratégias e táticas de colaboração de classes, bem como a defesa da unificação da Alemanha sob o Governo de Otto von Bismarck e a hegemonia do Estado Imperial Prussiano. Para Lassalle, a sociedade burguesa asseguraria a todos os indivíduos desenvolvimento ilimitado de suas forças produtivas, sendo que, portanto, a idéia moral do proletariado haveria de ser apenas a obtenção da prestação de serviços úteis à comunidade e a promoção de solidariedade e reciprocidade de interesses. Lassalle – à semelhança de Hegel – era de opinião que o Estado – enquanto “união dos indivíduos que aumenta um milhão de vezes as forças individuais” – representava e incorporava toda a expressão de Direito e justiça, razão por que seu objetivo do Estado haveria de ser “a educação e o desenvolvimento da liberdade na raça humana”. Sendo assim, o Estado assimilaria, progressivamente, com seu desenvolvimento, a causa do proletariado, de modo que a Revolução Proletária Socialista seria inteiramente despicienda e desnecessária. Foi assassinado pelo Conde von Racowitza, em um duelo, travado em 31 de agosto de 1864. Acerca do tema, vide LASSALLE, FERDINAND. Das System der erworbenen Rechte. Eine Versöhnung des positives Rechts und der Rechtsphilosophie (O Sistema dos Direitos Adquiridos. Uma Conciliação do Direito Positivo com a Filosofia do Direito)(1861), Leipzig : Brockhaus, 1880, pp. 3 e s.; IDEM. Arbeiterprogramm. Über den besondern Zusammenhang der gegenwärtigen Geschichtsperiode mit der Idee des Arbeiterstandes (Programa dos Trabalhadores. Sobre o Contexto Especial do Período Histórico Atual ante a Idéia do Estamento dos Trabalhadores)(Discurso - 12 de Abril de 1862), Zürich : Meyer und Zeller, 1863, pp. 1 e s.; IDEM. Über das Verfassungswesen (Sobre o Sistema Constitucional)(Discurso – 16 de Abril de 1862), Hamburg : Europ. Verl. Anst., 1993, pp. III e s.; IDEM. Die Wissenschaft und die Arbeiter (A Ciência e os Trabalhadores)(16 de Janeiro de 1863), Zürich : Meyer und Zeller, 1863, pp. 3 e s.; IDEM. Offenes Antwortschreiben an das Central-Comité zur Berufung eines Allgemeinen Deutschen Arbeitercongresses zu Leipzig (Carta Aberta de Resposta ao Comitê Central para Convocação de um Congresso Geral dos Trabalhadores da Alemanha em Leipzig)(1° de Março de 1863), Zürich : Meyer und Zeller, 1863, pp. 1 e s.;  IDEM. Zur Arbeiterfrage (Acerca da Questão dos Trabalhadores)(16 de Abril de 1863), Chicago : Ahrens, 1872, pp. 1 e s.; IDEM. Arbeiterlesebuch (Manual de Leitura dos Trabalhadores)(17/19 de Maio de 1863), Frankfurt a.M. : Baist, 1863, pp. 3 e s.      

[3] Impende destacar que, em 14 de julho de 1861, o estudante Oskar Becker empreendeu, em Baden-Baden, uma tentativa de assassinato contra vida do Rei da Prússia, Wilhelm I. O atentado fracassou.

[4] Destaco, por outro lado, que, no início de sua regência, em outubro de 1858, o Príncipe Prussiano Wilhelm – tornado Rei da Prússia em janeiro de 1861 – proclamou a adoção de um curso liberal. Em novembro de 1858, demitiu todo os ministros do Estado, comandados, então, pelo Ministro Presidente Otto Theodor von Manteuffel, convocando um novo governo, composto de aristocratas liberais moderados. A burguesia prussiana qualificou essa medida como o início de uma „Nova Era“. A nomeação e tomada de posse do Chaceler de Ferro, Otto von Bismarck, em 8 de outubro de 1862, pôs um termo, então, definitivamente à „Nova Era“.    

[5] Marx refere-se aqui, evidentemente, à sua leitura da obra jurídica de LASSALLE, FERDINAND. Das System der erworbenen Rechte. Eine Versöhnung des positives Rechts und der Rechtsphilosophie (O Sistema dos Direitos Adquiridos. Uma Conciliação do Direito Positivo com a Filosofia do Direito)(1861), Leipzig : Brockhaus, 1880, pp. 3 e s.

[6] Cumpre recordar que Blanqui, revolucionário francês, republicado socialista e insurrecionalista-permanente, – condenado e encarcerado desde 1850, em razão dos eventos da Revolução Francesa de 1848 -  havia sido libertado, com base na anistia de 15 de agosto de 1859. Viveu, a seguir, até o início de 1861, em Londres, de onde, então, retornou à Paris. Em março de 1861, foi novamente encarcerado e, em 14 de abril, condenado, por ser dirigente de uma sociedade secreta, a quatro (4) anos de cadeia e ao pagamento de 500 francos. De março a junho de 1861, Blanqui permaneceu na Prisão de Mazas, em Paris, onde foi seviciado por policiais, a mando do Juiz de Instrução de seu processo. Em seguida, teve de cumprir sua pena na Prisão St. Pelagie, em Paris. Finalmente, em 1864, Blanqui conseguiu fugir e dirigiu-se à Bruxelas, hospedando-se no domicílio de Louis Watteau.

[7] Vide, pelo contrário, a primeira parte da obra em refência em MARX, KARL. Zur Kritik der politischen Ökonomie (Contribuição à Crítica da Economia Política), in: ibidem, Vol. 13, pp. 7 e s.