PRODUÇÕES LITERÁRIAS DEDICADAS À FORMAÇÃO

DE REVOLUCIONÁRIOS MARXISTAS QUE ATUAM NO DOMÍNIO DO DIREITO, DO ESTADO E DA JUSTIÇA DE CLASSE

 

KARL MARX E FRIEDRICH ENGELS SOBRE O DIREITO E O ESTADO, OS JURISTAS E A JUSTIÇA

 

 

Debates acerca da Lei sobre o Furto de Madeira (Parte I) :

 

A Lei Não Está Desvinculada do Dever Geral de Dizer a Verdade,

A Natureza Jurídica das Coisas Não Pode Comportar-se Segundo a Lei,

Mas Sim é a Lei que Deve Comportar-se Segundo a Natureza Jurídica das Coisas

 

KARL MARX[1]

 

Concepção e Organização, Compilação e Tradução

 Emil Asturig von München, Fevereiro de 2007

 

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Até o presente momento, descrevemos duas grandes ações principais de cunho estatal da Assembléia Estadual : suas confusões em relação à liberdade de imprensa e sua falta de liberdade em relação a confusões. Baixemos, agora, à terra firme.

 

Antes de passarmos à questão propriamente terrena, em toda a sua grandeza vital, i.e. à questão relativa ao parcelamento da posse fundiária, concedamos ao nosso leitor algumas pinturas do gênero nas quais o espírito – e gostaríamos ainda de dizer – a natureza física dessa mesma Assembléia refletir-se-ão, de modo multifacetado.

 

Em verdade, a Lei sobre o Furto de Madeira – tal qual a Lei sobre as Contravenções Penais Referentes à Caça, à Floresta e ao Campo – merece ser discutida não apenas em relação à Assembléia Estadual, senão igualmente em relação a si mesma.

Porém, o seu Projeto de Lei não se encontra em nossas mãos. Nosso material limita-se a alguns acréscimos vagamente esboçados, formulados pela Assembléia Estadual e por sua Comissão Legislativa, a leis que figuram apenas enquanto números de parágrafos.

 

Os próprios protocolos das tratativas dos estamentos estaduais são absolutamente escassos, comunicados de modo tão descontextualizado e apócrifo (EvM.: na “Gazeta Renana”, surge, aqui, a palavra “negócrifo”) que sua publicação assemelha-se a uma mistificação.

Se nos permitirmos julgar a partir do presente frontispício, cumpre dizer que a Assembléia Estadual, com esse seu silêncio passivo, quis prestar à nossa província um ato de reverência.

 

Um fato característico dos presentes debates salta imediante à vista.

A Assembléia Estadual surge enquanto legislador suplementar, ao lado do legislador do Estado. 

Será do máximo interesse examinar as qualidades legislativas da Assembléia Estadual à luz de um exemplo.

Partindo desse ponto de vista, o leitor haverá de nos perdoar se lhes exigirmos paciência e pertinácia, duas virtudes que, na análise de nosso objeto estéril, tiveram de ser incessantemente exercitadas.

 

Em nosso relatório sobre os debates da Assembléia Estadual acerca da Lei sobre o Furto de Madeira, estamos colocando diretamente às claras os debates da Assembléia Estadual acerca de sua própria vocação legislativa.  

Logo no início do debate, um deputado com mandato municipal opôs-se ao título da lei, que alarga a categoria do “furto”, de modo abarcar simples contravenções  penais referentes à madeira.

Outro deputado do estamento honorífico dos cavaleiros contestou o seguinte :    

 

 

"Precisamente porque não se considera furto a substração de madeira, acontece esta tão freqüentemente."

 

 

Segundo essa analogia, o mesmo legislador deveria concluir : por não se considerar homicídio sopapos, desferidos no pé-da-orelha, ocorrem estes tão freqüentemente. Decrete-se, pois, que o sopapo na orelha é um homicídio.

Um outro deputado do estamento honorífico dos cavaleiros entende o seguinte :

 

" ... é ainda mais inquietante não se pronunciar a palavra “furto”, pois as pessoas que tomarão conhecimento da discussão sobre essa palavra, poderão ser facilmente levadas a acreditar que a subtração de madeira não é também considerada pela Assembléia Estadual como furto."

 

 

A Assembléia Estadual deve decidir se considera ser furto uma contravenção penal referente à madeira.  Porém, se a Assembléia Estadual não declara ser furto uma contravenção penal referente à madeira, as pessoas poderiam acreditar que a Assembléia Estadual não consideraria, realmente, ser furto uma contravenção penal referente à madeira. Assim, o melhor é deixar essa capciosa questão controversa repousar absolutamente só. Trata-se de um eufemismo, sendo que há de se evitar eufemismos. O proprietário de floresta não permite que o legislador tome a palavra, pois as paredes têm ouvidos.

 

O mesmo deputado ainda continua. Ele considera ser toda essa investigação acerca da expressão “furto” “uma inquietante preocupação da assembléia plenária com melhorias redacionais.”  Depois dessas manifestações esclarecedoras, a Assembléia Estadual votou o título da lei. Partindo do ponto de vista, acima precisamente recomendado, que considera equivocadamente como pura negligência redacional a transformação de um cidadão do Estado em ladrão, rejeitando toda a oposição expressada contra isso como sendo purismo gramatical, torna-se evidente que também a subtração de madeira caída e apanhada no chão ou o recolhimento de madeira seca sejam subsumidos sob a rubrica de furto e punidos tão severamente como a substração de madeira verde, ainda de pé.

Em verdade, o deputado com mandato municipal, acima referido, observa o seguinte :

 

”Podendo a pena elevar-se até prolongada prisão, uma tal rigor haverá de conduzir pessoas que, d’outro modo, ainda se situam no bom caminho, precisamente ao caminho do crime. Isso ocorrerá também porque entrarão em contato na prisão com ladrões contumazes. Considere-se, portanto, caber punir o recolhimento ou a subtração de madeira seca, caída e apanhada no chão, meramente com uma pena policial simples."

 

Porém, um outro deputado com mandato municipal refuta-o, com o profundo argumento, a seguir exposto :

 

" de que, nas florestas de minha região, apenas árvores jovens são freqüentemente, de início, abatidas e, quando, por isso, decompõem-se, são tratadas, posteriormente, como madeira caída e apanhada no chão." 

 

É impossível fazer tombar ao chão, de modo mais elegante e, ao mesmo tempo, mais simples, o Direito dos seres humanos, em face do Direito das árvores jovens.  D’um lado, situa-se, segundo a presunção do parágrafo, a necessidade de que uma massa de seres humanos, sem intenção criminosa, seja abatida da verdejante árvore da moralidade e lançada no inferno do crime, da infâmia e da miséria, tal como se fosse madeira caída e apanhada no chão. D’outro lado, seguindo a refutação do parágrafo, existe a possibilidade de maltrato de algumas árvores jovens, sendo que isso mal necessita de argumentação!

 

Vencem os ídolos de madeira, caem as vítimas humanas !

O Regimento do Tribunal Criminal de Execução Sumária de Penas Capitais subsume sob furto de madeira apenas a subtração de madeira abatida e o abatimento criminoso de madeira.

Sim ! Nossa Assembléia Estadual não vai acreditar :

 

"Wo aber jemandt bei tag essendt früchte nem, und damit durch wegtragen derselben nit großen geuerlichen schaden thett, der ist nach gelegenhayt der personen und der sach burgerlich zu straffen."

 

No vernáculo :

 

"Se alguém, porém, durante o dia, pegar frutas para comer e, com isso, removendo-as, não provocar danos consideravelmente graves, deve ser punido, segundo a matéria das pessoas e das coisas civis."  (Portanto, tratado de modo não criminal).”[2]

 

O Regimento do Tribunal Criminal de Execução Sumária de Penas Capitais do século XVI exorta-nos, diante da acusação de excessiva humanidade, a defendê-lo contra uma Assembléia Estadual Renana do século XIX, sendo que damos cumprimento a essa exortação.  O recolhimento de madeira caída e apanhada no chão e o mais combinado furto de madeira!  Uma definição é comum a ambos : o apropriar-se de madeira alheia.  Portanto, ambos constituem furto.

 

Nisso, resume-se a lógica hipermetrope que acabou de produzir leis. Por isso, chamamos atenção, de início, para a diferença aqui existente. Se é imperioso admitir que a situação fática é, em sua essência, diferente, dificilmente poder-se-á afirmar que, do ponto de vista da lei, é idêntica. Para que ocorra a apropriação de madeira verde, é necessário que seja ela separada, com violência, de seu conjunto orgânico.  Como isso é um evidente atentado cometido contra a árvore, é, portanto, através da árvore, um atentado evidente cometido contra o proprietário da árvore.

 

Além disso, se madeira derrubada é subtraída a uma terceira pessoa, é, pois, a madeira derrubada um produto do proprietário. Madeira derrubada já é madeira processada. No lugar do conjunto natural, formado com a propriedade, surge o conjunto artificial. Logo, quem substrai madeira derrubada, subtrai propriedade.

 

Pelo contrário, no caso de madeira caída e apanhada no chão, nada é separado da propriedade. O que está separado da propriedade é separado da propriedade.  O ladrão de madeira profere uma sentença arbitrária contra a propriedade. O coletor de madeira caída e apanhada no chão executa apenas uma sentença que a natureza da própria propriedade proferiu.

 

Pois vós, proprietários, possuís, entretanto, apenas a árvore, sendo que, porém, a árvore já não mais possui aqueles seus galhos. Recolher madeira caída, apanhando-a no chão, e roubar madeira são, portanto, essencialmente, coisas diferentes. O objeto é diferente.  A ação efetuada em relação ao objeto não é menos diferente. Portanto, a intenção tem de ser também diferente, pois qual medida objetiva devemos atribuir à intenção, se não o conteúdo da ação e a forma da ação ?  E, apesar dessa diferença essencial, vós denominais furto ambas essas situações e as punis como sendo furto.

 

Em verdade, apenais o recolhimento de madeira caída e apanhada no chão de modo mais rigoroso do que o furto de madeira, pois já punis esse ato na medida em que o designais como furto, pena essa que não impondes ostensivamente ao próprio furto de madeira. Teríeis de denominá-lo, pois, assassinato de madeira e puní-lo como se assassinato fosse.

 

A lei não está desvinculada do dever geral de dizer a verdade. A lei possui duplamente esse dever, pois é o porta-voz geral e autêntico da natureza jurídica das coisas. Por isso, a natureza jurídica das coisas não pode, por isso, comportar-se segundo a lei, mas sim é a lei que deve comportar-se segundo a natureza jurídica das coisas. Porém, se a lei denomina furto de madeira uma ação que nem sequer constitui uma contravenção penal referente à madeira, está a lei, portanto, mentindo e o pobre é sacrificado por causa de uma mentira legal. 

 

"Il y a deux genres de corruption, l'un lorsque le peuple n'observe point les lois; l'autre lorsqu'il est corrompu par les lois: mal incurable parce qu'il est dans le remède même.

 

No vernáculo :

 

“Há dois gêneros de corrupção”, diz Montesquieu, “um deles quando o povo não observa absolutamente as leis ; outro quando é corrompido pelas leis : trata-se de um mal incurável, porque se encontra inserido no próprio remédio.”[3] 

 

Quanto menos lograreis fazer prevalecer a crença de aqui existir um crime, onde, de fato, nenhum crime existe, tanto mais havereis apenas de conseguir transformar o próprio crime em ato jurídico. Haveis obliterado as fronteiras diferenciadoras, porém equivocai-vos se acreditardes terem sido elas obliteradas tão somente no vosso interesse.

 

O povo vê a pena, porém não vê o crime e porque vê a pena, onde não existe crime algum, já não verá, por isso, nenhum crime, onde existir pena.

Na medida em que empregais a categoria do furto ali, onde não pode ser adotada, também a haveis dissimulada ali, onde deve ser adotada. E essa noção abrutalhada que mantém apenas uma definição comum para ações distintas, abstraindo da diferenciação, não suprime a si mesma ?

 

Se toda lesão à propriedade é considerada, indistintamente e sem maior determinação, como furto, não haveria, então, de ser furto toda a propriedade privada ? Através da minha propriedade privada, não excluo todo terceiro dessa propriedade ?  Não violo, assim, o seu Direito de propriedade ?

 

Se negais a diferença de tipos essencialmente diferentes do mesmo crime, negais, pois, o crime enquanto uma diferença do Direito, suprimis, pois, o próprio Direito, pois todos os crimes possuem um lado em comum com o próprio Direito. Por isso, trata-se de um fato tanto de ordem histórica quanto de cunho racional o de que a severidade indiferenciada suprime todos os efeitos da pena, visto que suprimiu a pena enquanto um efeito do Direito.

Porém, sobre o que litigamos?

 

A Assembléia Estadual rejeita, em verdade, a distinção existente entre o recolhimento de madeira caída e apanhada no chão, a contravenção penal referente à madeira e o furto de madeira. Repudia o elemento diferenciador da ação executada, enquanto elemento determinante para a ação, quando se trata do interesse do transgressor da floresta, porém reconhece-o, quando se trata do interesse do proprietário da floresta. 

Assim, a Comissão Legislativa da Assembléia propõe, adicionalmente :

 

"... designar como circunstâncias agravantes, se a madeira verde for abatida ou talhada por meio de instrumentos cortantes e se, em vez de machado, utilizar-se a serra."

 

A Assembléia Estadual aprova essa diferenciação.

A mesma agudeza de espírito que é tão consciente para diferenciar, em seu próprio interesse, um machado de uma serra, é tão inescrupulosa para recusar-se a distinguir, no interesse alheio, entre madeira caída e apanhada no chão e madeira verde.  

A diferença é significativa enquanto circunstância agravante, porém é desprovida de qualquer significado enquanto circunstância atenuante, apesar de uma agravante não ser possível, quando as atenuantes são impossíveis. A mesma lógica repete-se ainda por várias vezes no curso dos debates.

No § 65, um deputado com mandato de municípios deseja o seguinte :

 

"... que também o valor da madeira subtraída deva ser adotado como padrão de determinação da pena", "o que é contestado pelo relator por não ser prático."

 

O mesmo deputado com mandato de municípios assinala o seguinte acerca do §66 :

 

"... de modo geral, em toda a lei, sente-se a falta de uma indicação de valor, com base no qual a pena seria aumentada ou diminuída."

 

A importância do valor para a determinação da pena, em casos de violação da propriedade, emerge a partir de si mesma. 

Se o conceito de crime exige a pena, a realidade do crime exige uma medida para a pena. O crime real possui seus limites. Assim, a pena haverá de ser limitada para ser real e haverá de ser limitada, segundo um princípio de Direito, para ser justa. A tarefa consiste em tornar a pena uma conseqüência real do crime.  Ela tem de surgir perante o criminoso como um efeito necessário de seu próprio ato e, portanto, como seu próprio ato. Assim, o limite da sua pena deve ser o limite do seu ato.

 

O conteúdo determinado que é violado constitui o limite do crime determinado. A medida desse conteúdo é, portanto, a medida do crime. No caso da propriedade, essa medida é o seu valor.

Enquanto a personalidade é sempre uma totalidade, em quaisquer que sejam os seus limites, é a propriedade disponível sempre apenas em um limite que não é apenas determinável, senão ainda determinado, que não é apenas mensurável, senão ainda medido.

O valor é a existência civil da propriedade, é a palavra lógica, com a qual ela apenas então alcança intelegibilidade e comunicabilidade social.

 

É claro que essa determinação objetiva, dada pela natureza do próprio objeto, tem de construir um elemento determinante tanto objetivo quanto essencial para a pena. Se aqui, onde se trata de números, a legislação, a fim de não se perder em uma infinitude de definições, pode apenas proceder de modo extrínseco, deve, então, no mínimo, realizar uma regulação. Não se trata de serem esgotadas as diferenças, mas sim de serem feitas as diferenças.

 

Porém, a Assembléia Estadual não se dispôs absolutamente a dedicar sua nobre atenção a esses pormenores.  Acreditais, então, poder concluir, p.ex., que a Assembléia Estadual teria excluído inteiramente o valor na determinação da pena? Conclusão, porém, imprudente e sem praticidade! O proprietário florestal – posteriormente, trataremos disso mais amplamente – não se permite apenas indenizar com o simples valor geral, a ser prestado pelo ladrão, senão confere ainda a esse valor até mesmo um caráter individual, assentando sobre essa individualidade poética a reivindicação de uma especial reparação por perdas e danos. Agora, ficamos sabendo o que é que o relator entende por praticidade.

O proprietário prático da floresta raciocina da seguinte forma :

 

"Essa definição legal é boa, apenas enquanto me for útil, pois aquilo que me é útil é o bom. Essa definição legal é redundante, é prejudicial, não tem praticidade, na medida em que deve ser aplicada contra o acusado por puro capricho teórico de Direito. Dado o fato de que o acusado é-me prejudicial, torna-se evidente que tudo aquilo que obsta ser ele atingido para o seu maior prejuízo, é-me prejudicial. Isso constitui uma sabedoria prática."   

 

Porém, nós, seres humanos sem praticidade alguma, exigimos para as massas miseráveis, política e socialmente desapossadas, o que o servilismo instruído e instrutor dos assim chamados historiadores descobriu a título de verdadeira pedra filosofal, a fim de transformar toda a pretensão desonesta no puro ouro do Direito.

 

Para a pobreza, reivindicamos o Direito Consuetudinário e, em verdade, um Direito Consuetudinário que não é um Direito local, um Direito Consuetudinário que é, em todos os países, o Direito Consuetudinário da pobreza. Vamos ainda mais longe, para afirmarmos que o Direito Consuetudinário, por sua própria natureza, pode ser apenas o Direito dessas massas mais inferiores, desapossadas e elementares. 

 

Os assim chamados costumes dos privilegiados são concebidos como costumes contrários ao Direito. A data do seu nascimento remonta ao período em que a história da humanidade constituía uma parte da História Natural e, tal como o comprova a saga egípcia, todos os Deuses escondiam-se em formas de animais. A humanidade surgia decomposta em raças determinadas de animais selvagens cujo inter-relacionamento não era a igualdade, mas sim a desigualdade, uma desigualdade que as leis positivavam.

 

A situação do mundo, marcada pela falta de liberdade, exigía Direitos de escravidão, pois, enquanto o Direito Humano é o existir da liberdade, o Direito dos Animais Irracionais é o existir da falta de liberdade.

 

O feudalismo é, em sentido amplo, o reino selvático-animal do espírito, o mundo da humanidade divorciada, em oposição ao mundo da humanidade que cria suas próprias diferenciações, cuja desigualdade nada é senão a refração em cores da igualdade. Nos países do feudalismo ingênuo, nos países do sistema de castas, onde, no sentido literal da palavra, a humanidade é empacotada em caixas separadas e onde os membros nobres da Grande Santidade, do Santo Humano, transbordantes livremente uns nos outros, são serrados, dilacerados, violentamente desmembrados uns dos outros, encontramos também a adoração do animal irracional, a religião selvático-animalesca em sua forma primitiva.

Pois, o ser humano sempre considera como sua essência suprema aquilo que é sua verdadeira essência. 

 

A única igualdade que surge na vida real dos animais irracionais é a igualdade existente entre um destes e os outros de sua espécie determinada. Trata-se da igualdade de determinada espécie consigo mesma, porém não a igualdade do gênero. O próprio gênero animal surge apenas no comportamento hostil das diversas espécies animais que fazem valer suas diferentes qualidades particulares umas em face das outras. No estômago do animal selvagem predador, a natureza preparou o local escolhido para a reconciliação, o cântaro da mais íntima fusão, o órgão de conexão das várias espécies animais. 

 

Da mesma maneira, no feudalismo, uma raça alimenta-se às expensas da outra, até rebaixar-se àquela que, tal como um pólipo, cresce sobre a terra e apenas possui tantos braços para colher os frutos da terra, destinados às raças superiores, enquanto ela mesma come poeira, pois, se no reino da animalidade irracional da natureza, os ociosos têm sua morte causada pelas abelhas operárias, possuem as abelhas operárias, inversamente, no reino animal-espiritual, sua morte causada pelos ociosos e, precisamente, por causa do trabalho. 

 

Se os privilegiados do Direito legal apelam ao seu Direito Consuetudinário, exigem, em vez do conteúdo humano do Direito, a forma irracional-animalesca do Direito que, agora, transformado em mera máscara selvático-animal, perde a sua realidade.

 

 

 

EDITORA DA ESCOLA DE AGITADORES E INSTRUTORES

“UNIVERSIDADE COMUNISTA REVOLUCIONÁRIA J. M. SVERDLOV”

PARA A FORMAÇÃO, ORGANIZAÇÃO E DIREÇÃO MARXISTA-REVOLUCIONÁRIA

DO PROLETARIADO E SEUS ALIADOS OPRIMIDOS

MOSCOU - SÃO PAULO - MUNIQUE – PARIS

 

 

 



[1] Cf. MARX, KARL HEINRICH. Debatten über das Holzdiebstahlsgesetz. Von einen Rheinländer (Debates acerca da Lei sobre o Furto de Madeira. Por um Renano)(1° de Novembro de 1842), in : Marx und Engels Werke (Obras de Marx e  Engels), Vol. 1, pp. 109 - 147. O presente texto de Marx, traduzido, agora, segundo tudo está a indicar, pela primeira vez, para a língua portuguesa, foi publicado, originariamente, no jornal intitulado "Gazeta Renana", Nr. 298, de 25 de outubro de 1842. Anoto, por oportuno, que as passagens dos discursos, pronunciados pelos deputados da Assembléia Estadual, aos quais Marx se refere no presente texto, encontram-se incluídos nos SITZUNGSPROTOLOLLE DES SECHSTEN RHEINISCHEN PROVINZIALLANDTAGS (Protocolos das Sessões da Sexta Assembléia Estadual Provincial da Renânia), Koblenz, 1841, pp. 3 e s.

O presente texto de Marx é parte de uma série de artigos, composta de 5 partes, já por mim traduzida para o idioma português. Esses artigos de Marx, redigidos entre 25 de outubro e 3 de novembro de 1842, propõem-se a analisar os debates, ocorridos na Assembléia Estadual da Renânia, entre 23 de maio e 25 de julho de 1841. Aplicando magistralmente o método dialético-materialista à temática em causa, Marx conseguiu aqui examinar, pela primeira vez, com profundidade, as contradições, existentes entre os interesses materiais de diferentes classes histórico-sociais do mundo contemporâneo, posicionando-se em defesa dos interesses das massas populares pobres, despojadas de todos os tipos de propriedade.

Marx demonstra, em seus artigos em realce, que o Direito Consuetudinário de recolhimento de madeira caída e apanhada no chão não poderia ser tipificado como furto, por meio de nova legislação penal. Marx reivindica, assim, para a pobreza o Direito Consuetudinário, válido em todos os países, o qual : " ... por sua própria natureza, pode ser apenas o Direito dessas massas mais inferiores, desapossadas e elementares."

E, com efeito : em contraste com o Direito Consuetudinário da nobreza privilegiada que se funda sobre a falsa concepção de uma suposta desigualdade natural-estamental dos seres humanos, o Direito Consuetudinário da pobreza é postulado por Marx como sendo efetivamente social-universal. Diferentemente dos animais despidos de razão, os seres humanos são livres e iguais a todos os seus pares do gênero humano, ao passo que os primeiros, por não gozarem de liberdade, são iguais apenas no âmbito de sua espécie determinada. As diferenças de classes e estamentos historicamente existentes contradizem, assim, à essência da liberdade igual de todos os seres humanos. Os Direitos Consuetudinários das distinções são, portanto, costumes, praticados contra o próprio conceito de Direito e Legislação Racionais, uma vez que seu conteúdo colide com sua forma jurídica, enquanto que o Direito Consuetudinário da pobreza não colide senão com a ausência de sua própria formalidade jurídica.

O interesse material dos proprietários de floresta é, segundo Marx, é um interesse particular e, por consegüinte, limitado. O interesse das massas mais inferiores, desapossadas e elementares, um interesse universal e ilimitado.

Por exigirem os proprietários de floresta também um Direito de Propriedade sobre a madeira caída e apanhada no chão,  agem em discrepância com o Direito Consuetudinário da pobreza, visto que são as próprias árvores, enquanto partes integrantes da natureza, que despejaram ao chão e, praticamente, excluíram de si mesmas essa madeira caída e apanhada. As massas mais inferiores, excluídas, despejadas, separadas e não integradas pela sociedade de classes, são tais quais a madeira caída ao chão e, nessa analogia, reconhecem, instintivamente, o seu Direito de apropriação das coisas derrubadas e caídas ao chão. 

Antecipando em vários anos sua ulterior magistral descoberta da essência da mais-valia capitalista, Marx demonstra que as classes proprietárias superiores exigiam não apenas indenização pela subtração da madeira caída e apanhada no chão, senão ainda penas pecuniárias a serem pagas pelos "ladrões de madeira". O valor da madeira substraída nessas circunstâncias deveria ainda ser fixado por autoridades florestais, contratadas pela nobreza latifundiária, no melhor dos casos, não de modo vitalício, senão apenas temporariamente.                 

No último artigo da série aqui em realce, Marx propugnou, inovadoramente, seu conceito de fetiche, o qual haveria de desenvolver, posteriormente, em sua crítica dialética do dinheiro e do capital.   

O texto aqui em realce, tal quais os demais dessa série, demonstram, inequivocamente, o início da dedicação intelectual de Marx aos estudos da economia política. Acerca do tema, vide mais precisamente Cf. IDEM. Vorwort zur Kritik der Politischen Ökonomie (Prefácio à Crítica da Economia Política)(Agosto de 1858 – Janeiro de 1859), in : ibidem, Vol. XIII, Berlim : Dietz Verlag, 1961, pp. 7 e s.

Nesse último material, Marx assinala, com precisão : "Meu estudo específico era o da Ciência do Direito, o qual empreendi, entretanto, apenas como disciplina subordinada, ao lado da Filosofia e da História. Em 1842 e 1843, enquanto redator da “Gazeta Renana”, meti-me, pela primeira vez, no embaraço de ter de colaborar, pronunciando-me acerca dos assim chamados interesses materiais. Os debates da Assembléia Estadual da Renâna sobre o furto de madeira das florestas e o parcelamento da propriedade fundiária, a polêmica ministerial que o Sr. von Schaper, outrora Presidente Supremo da Província da Renânia, moveu contra a “Gazeta Renana” acerca das condições do camponês do Vale do Rio Mosela, os debates, enfim, sobre o livre comércio e a duana protecionista, forneceram os primeiros pretextos para minha dedicação às questões econômicas. Por outro lado, naquela época, quando a boa vontade de "ir adiante" havia multiplamente compensado o conhecimento objetivo, tornara-se audível na "Gazeta Renana" um eco de socialismo e do comunismo francês, levemente tingido de filosofia. Declarei-me contrário a essa obra de má qualidade, confessando, porém, ao mesmo tempo, de modo direto e aberto, em uma controvérsia, mantida com o "Diário Popular de Augsburg", que meus estudos, até então empreendidos, não me permitiam ousar formular, por mim mesmo, nenhum julgamento acerca do conteúdo das tendências francesas. Em vez disso, lancei mão, avidamente, da ilusão dos editores da "Gazeta Renana", que acreditavam poder fazer retroceder a sentença de morte recaída sobre o jornal devido às suas posições mais complacentes, a fim de me retirar da cena pública e recolher-me em meu gabinete de estudo."

[2] Indicação de Emil Asturig von München : Marx refere-se aqui à seguinte legislação carolíngea, eminentemente célebre por sua suas prescrições penal-punitivas extremamente cruéis, DIE PEINLICHE HALSGERICHTSORDNUNG KAISER KARL'S V. CONSTITUTIO CRIMINALIS CAROLINA. (Regimento do Tribunal Criminal de Execução Sumária de Penas Capitais do Imperador Carlos V. Constituição Criminal Carolíngea), hrsg. Heinrich Zoepfl, Heildelberg : Winter, 1842, pp. III e s.

[3] Indicação de Emil Asturig von München :  Acerca do tema, vide MONTESQUIEU, CHARLES DE SECONDAT BARON DE LA BRÈDE ET DE. De l'Esprit De Loi Ou Du Rapport Que Les Loix doivent avoir avec la Constitution de chaque Gouvernement, les Moeurs, le Climat, la Religion, le Commerce, &c. (Do Espírito das Leis ou da Relação que as Leis devem possuir com a Constituição de Cada Governo, os Costumes, o Clima, a Religião, o Comércio etc.)(1748), Primeira Parte, Livro VI : Conseqüências dos Princípios dos Diversos Governos em Relação à Simplicidade das Leis Civis e Criminais, a Forma dos Julgamentos e o Estabelecimento das Penas, Capítulo XII : Sobre o Poder das Penas, Geneva : Barrillot, 1749, pp. 3 e s.