MARXISMO REVOLUCIONÁRIO, TROTSKYSMO
E QUESTÕES
HISTÓRICAS DA LUTA DE CLASSES
TEXTOS E DESCRIÇÕES DE
CÉLEBRES REVOLUCIONÁRIOS FRANCESES
SOBRE A SOCIEDADE, O
ESTADO E A LUTA DE CLASSES, TRAVADA NO QUADRO DA REVOLUÇÃO FRANCESA:
EDIÇÃO SIMULTÂNEA ELABORADA
VERBATIM DE LÍNGUAS ALIENÍGENAS PARA
O PORTUGUÊS
SOBRE GEORGES DANTON
FRANÇOIS-ALPHONSE AULARD[1]
Concepção e
Organização Portau Schmidt von Köln
Compilação e
Tradução Asturig Emil von München
Fevereiro de 2009 emilvonmuenchen@web.de
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Geral http://www.scientific-socialism.de/LutadeClassesFrancesaCapa.htm
Ora, a insurreição
é uma arte, exatamente como a guerra ou qualquer outro tipo de arte.
A insurreição
submete-se a certas regras cuja inobservância conduz à ruína da parte que é por
ela responsável.
Essas regras – conclusões lógicas, extraídas da
essência das partes e das relações
com as quais se tem de lidar em um tal caso, – são
tão claras e tão simples que a curta experiência do ano de 1848
levou a que os alemães se tornassem bastante
familiarizados com elas. (...)
Para
usar as palavras de Danton, o maior
mestre de tática revolucionária conhecido até o presente momento :
“De l’audace, encore de l’audace, toujours de
l’audace!”
(Audácia, mais audácia e ainda sempre mais
audácia!)
Cf. ENGELS, FRIEDRICH. Revolution und
Konterrevolution in Deutschland
(Revolução e Contra-Revolução na Alemanha) (08.1851 –
09.1852),
especialmente Capítulo XVII : Der Aufstand (A
Insurreição) (Agosto de 1852),
in: Marx und
Engels Werke (Obras de Marx e Engels), Vol. 8, Berlim : Dietz Verlag, 1960, pp.
95 e s.
I.
TEXTO DOS DISCURSOS DE DANTON
Ao lermos o que resta dos
discursos de Danton, estudando nos fatos a influência de sua
palavra, podemos entrever que sua eloqüência foi mais original do que
aquela do Conde de Mirabeau, de Maximilien de
Robespierre e de Pierre Vergniaud,
e perceber que não houve, em toda a Revolução Francesa,
maior orador do que esse autêntico homem de
Estado.
Porém, sua glória foi, tão
logo, obscurecida pelo pouco de cuidado que possuía e, sobretudo, por uma
lenda caluniosa à qual recorreram, por emulação, monarquistas,
girondinos e robespierristas: todos os vícios, todos os erros, todas as vilezas
foram atribuídos, até os nossos dias, a esse vencido e, para
desflorar o homem de 10 de agosto, a mentira usurpou uma ousada
precisão.
Nicolas Villiaumé, o primeiro, em 1850, opôs a essa lenda alguns
fatos. Depois, veio Alfred Bougeart, que escreveu todo um livro
para reabilitar Danton. Mas, o seu mau estilo prejudicou
seus argumentos. É a Jean-François-Eugène Robinet que se
imputa a honra de ter encontrado e reunido, com método, documentos
irrecusáveis, dotados de autenticidade clamorosa e, às vezes,
notarial, próprios a estabelecer a certeza nos espíritos mais
meticulosos.
Seria necessário um volume
inteiro apenas para esboçar a biografia de Danton - tal qual a
crítica acaba de a renovar - para dar a conhecer, ainda que
sumariamente, o homem, o político e o orador.
Esse grande
tema instiga-nos, desde muito tempo. Mas, em uma história geral da
eloqüência parlamentar, não podemos senão indicar os principais pontos,
fixando alguns dos caracteres dessa palavra, onde toda a Revolução revive.
A primeira observação a ser
feita - e esta explica o caráter equívoco da reputação oratória de Danton
- é que seus discursos foram reproduzidos de uma maneira ainda mais defeituosa
que aqueles de seus rivais.
Esse orador que jamais
escrevia e nem mesmo possuía - como dizia - correspondência privada,
entregava-se, inteiramente, à inspiração do momento presente. Nem suas
frases nem mesmo a ordem de suas idéias não eram fixadas em seu espírito,
quando se punha a falar, tal como o prova o arrebatamento imprevisto
de quase todas as suas aparições na tribuna e o perpétuo desafio que suas
alocuções públicas parecem opor a essas regras da retórica clássica.
Danton era um improvisador, no sentido forte do
termo, tanto no fundo quanto na forma, ao ponto de não
possuir nenhum cuidado com a sua reputação, junto à posteridade.
Também não acredito que exista
uma única opinião de sua autoria, impressa por ordem da Convenção
Nacional. A propósito da maneira segundo a qual os jornais
reproduziam suas palavras, Danton não se pertubava absolutamente,
não se incomodando em as retificar : toda a sua atenção estava
reservada para a política ativa e seus raros lazeres, absorvidos pela vida
familiar.
Ninguém jamais foi mais
indiferente em face dessa glória literária, tão fortemente apreciada por seus
contemporâneos, considerando desde Dominique Garat a Maximilien
de Robespierre.
Hoje, sofremos por causa dessa
negligência. Seus discursos, dirigidos particularmente aos Jacobinos,
foram, por muito tempo, resumidos em algumas linahs secas e obscuras e, muito
freqüentemente, em estilo indireto, tão indigente e tão infiel, pelo
jornal do Clube Jacobino.
Posteriormente, o Journal
de la Montagne (EvM.: Jornal da Montanha) que reproduziu tão
prazeirosamente os discursos de Robespierre, pune
com excessiva brevidade as mais importantes arengas de seu fogoso
rival.
Um dos principais discursos de
Danton, aquele de 21 de janeiro de 1793, foi enormemente mutilado
pelo Moniteur (EvM.: Monitor): dele não se encontra uma
transcrição desenvolvida senão no Logotachygraphe (EvM.:
Logotaquígrafo) e no Republicain français (EvM.:
Republicano Francês).
O seu Discurso sobre
Marat de 12 de abril de 1792 é apenas reproduzido, em detalhes,
pelo Logotachygraphe (EvM.: Logotaquígrafo). As últimas palavras
que Danton pronunciou na tribuna da Convenção Nacional
são estranhamente desnaturadas pelo Moniteur (EvM.: Monitor). Tão
somente o Republicain français (EvM.:
Republicano Francês) deu-se ao trabalho ou teve a coragem de apor uma
ordem clara nesse discurso.
Em 26 de agosto de 1793, nos Jacobinos,
Danton pronunciou uma longa apologia pessoal onde, a propósito de
seu segundo casamento, prestava contas de sua fortuna, de modo a fazer-se
aplaudir pelo mais desconfiado dos ouvintes: disso os jornais
publicaram apenas uma análise insignificante.
Podemos verificar,
nas alocuções de Pierre Vergniaud, os progressos de sua
educação oratória: a incúria de Danton deixou no esquecimento sua
obra de advogado. Contudo, alguns de seus memoriais judiciários foram
encontrados. Mas, não se publicou nenhum de suas perorações.
Eis uma lacuna ainda mais
séria na coleção dos discursos de Danton: não dispomos do
discurso que foi, sem dúvida, sua obra maior, considerando os efeitos que
ela produziu, a saber sua defesa perante o Tribunal Revolucionário.
O oficioso Bulletin
(EvM.: Boletim) alterou-o, reduzindo-o a algumas frases incoerentes, e as
notas de Topino-Lebrun, que fazem aparecer essas alterações, ao
retificá-las em mais de um ponto capital, são demasiadamente informes, para nos
permitir restituir o texto verdadeiro.
Os detalhes que possuímos
sobre essa tragédia depõem o bastante sobre o milagre de eloqüência com
que o tribuno Danton supreendeu os ouvidos partidários e
maldosos. O presidente tentou sufocar, com sua sineta, a voz
do acusado, tal como Jacques-Alexis Thuriot de la Rozière
sufocou, em 9 Thermidor, a voz de Robespierre: não chegou a
fazê-lo.
Um contemporâneo de Danton
escreveu da seguinte forma:
"Um cidadão que foi
testemunha dos debates relatou-nos que Danton provocava tremores
nos juízes e nos jurados. Abafou, com sua voz, a sineta do Presidente. Este
disse-lhe, então: "Mas, você não consegue ouvir a sineta? -
Presidente, respondeu-lhe Danton, a voz de um homem que
tem de defender a sua vida e a sua honra deve vencer o barulho
da sineta."
Durante os debates, o público
murmurava. Danton exclamou:
"Povo, você há de me
julgar, depois de ter dito tudo. Minha voz não deve ser apenas ouvida por você,
mas também por toda a França."
Essa voz sobre-humana se fazia
ouvir pelas janelas, junto às massas aglomeradas no cais do Rio Seine, comovendo-as.
O auditório no interior do tribunal, composto de almas duras e hostis,
robespierristas, monarquistas ou indiferentes, não pôde,
porém, resistir à visão do homem, ao som de sua voz, à verdade de
suas razões. Rebentou em aplausos, devendo o presidente do tribunal retirar a
palavra a Danton e exigir a proclamação de uma
lei particular voltada contra ele.
É possível crer que a
eloqüência houvera obtido até então um triunfo mais surpreendente? E
que perda irreparável aquela envolvendo o discurso supremo de Danton!
Por mais que seja tão
incompleta e tão mutilada essa obra oratória, tal era a força das
fórmulas de Danton, tal era a vida de seu estilo que muitas de
suas frases incrustaram-se na memória indiferente ou hostil dos relatores
taquígrafos e, assim, chegaram até nós, quase a despeito deles, em sua
beleza original.
II.
O CARÁTER E A EDUCAÇÃO DE
DANTON
Sobre o homem Danton
mesmo, passemos do modo mais rápido possível, e digamos com que traços precisos
a crítica substituiu a lendária caricatura, segundo a qual Danton,
parecia crapuloso, venal e ignorante.
Danton possuía, seguramente, uma natureza enérgica,
violenta mesma, cuja exuberância fogosa surpreendia à primeira vista. Mas, essa
veemência conhecia a si mesma, moderava-se, ponderava-se, se necessário
fosse e, finalmente, voltava-se sempre para o bem.
Desde muito tempo, Danton havia
aprendido a se disciplinar e tornar-se mestre de suas paixões. Nisso, sua mãe -
e depois sua mulher - havia-o, sem dúvida, ajudado. Porém, foi sobretudo
sua própria vontade, esclarecida e fortificada pelas recordações escolares dos
grandes romanos e pelas lições de filosofia, que operara essa
reforma maravilhosa.
Ao entreverem
sua figura devastada, ao ouvirem seu discurso, às vezes
brusco, ao perceberem sua alegria freqüentemente gálica, observadores
superficiais ou partidários imaginavam diante de si um fanfarrão
grosseiro, devasso, crapuloso. Nada de mais falso do que essas
suposições: era um homem de família e do lar, com pureza e modéstia, sem
que nele se reconhecesse outro amor além daquele nutrido
por sua mulher, sem que possuísse outros prazeres além daqueles que
divida com os seus familiares.
Cumpre acrescentar que, bom
camarada no colégio, permaneceu assim sendo durante toda a sua vida com os
seus amigos. Possuía o culto da amizade e o dom tão precioso da cordialidade.
Sua felicidade era reunir, em sua mesa, seus condiscípulos, seus
companheiros de luta. Seu grande coração abria-se para os sentimentos ainda
mais amplos: amava seus concidadãos, a visão do povo o alegrava.
Durante as breves estadias que
realizou em Arcis, em sua casa natal que dava para a praça
principal da cidade, gostava de jantar, com as janelas abertas, à vista
de todos, não por ostentação, mas por bonomia e fraternidade. Longe de odiar
seus inimigos, não lhes podia guardar rancor: tinha sempre a
mão estendida para aqueles que o insultavam do modo mais grave possível,
fossem girondinos, fossem robespierristas. Não via senão a pátria, a
humanidade. Os outros o compreendiam mal. Procuravam interpretar esse
patriotismo, esquecido das injúrias, com cálculos de baixo nível. A
verdade emergiu apenas mais tarde. Em 1829, alguém disse a Pierre
Royer-Collard que havia conhecido Danton, mas que não
apreciava sua política : "Parece que Danton possuía bom
caráter." "O Senhor diz isso com magnanimidade!", exclamou
o doutrinador frio, com uma certa forma de entusiasmo.
Dizem que Danton corrompeu
a sua consciência e se vendeu à Corte Monárquica. Importa refutar essa
acusação que faz de Danton um declamador. Onde
tomou emprestado - diz-se por aí - os 71.000 francos com os quais
pagou seu cargo de advogado do Conselho? Eis onde os tomou
emprestado: graças a uma hipoteca de 90.000 libras que suas tias
lhe concederam sobre os seus bens. Pôde obter crédito
lealmente de diversas pessoas, em particular de seu futuro sogro. Mas, no
dia de seu casamento, recebeu, em espécie, a metade do dote de sua mulher, vale
dizer 20.000 francos. Possuía 15.000 francos em dinheiro, provenientes de um
resto de patrimônio e 12.000 francos em terras. Total: 47.000 francos.
Restava-lhe encontrar 24.000 francos para se libertar completamente. Ora,
pagou seu ofício em diversas parcelas e seu último pagamento não ocorreu
senão dois anos depois de ingressar em suas funções, em 3 de dezembro
de 1789. Pôde economizar essa soma em dois anos e meio, com base no
rendimento anual de seu cargo que todo o mundo avalia em cerca de 25.000
francos? Em outros termos, com os 72.000 ou 73.000 francos que ganhou nesses
trinta e dois meses, foi capaz de, com seus gostos simples, economizar
24.000 francos? Levantar essa questão já não que dizer solucioná-la?
Os que desejam, a todo custo,
que Danton seja um homem desonesto afirmam que, em 1791, por ocasião
da supressão desses ofícios de advogados do Conselho, foi reembolsado por
duas vezes: uma primeira vez, pela nação, legalmente. Uma segunda,
pelo Rei, secretamente. Certamente, o Rei
teria muito mal investido o seu dinheiro, pois que Danton
não deixou de agir como um autêntico revolucionário.
Porém, objeta-se que, à
infâmia desse mercado escandaloso, Danton pôde acrescentar o
labéu de faltar com a palavra na relação mantida com seu
corruptor. E sobre que base o acusam dessa perfídia? Sobre a base de
que comprou alguns bens nacionais. Porém, quando foi reembolsado com os 71.000
francos que seu cargo lhe havia custado, não possuía dívidas e podia, de
fato, ter realizado economias na base dos 50.000 francos que ganhou durante
os dois últimos anos em que foi advogado do Conselho. Eis, portanto,
as despesas de Danton explicadas e controladas. Esses
argumentos já foram ditos. Mas, a paixão política nada quer ouvir.
Nas obras de póstumas de Pierre
Louis Roederer, há dois fragmentos sobre Danton.
Depois de tê-lo tratado como buldogue e crápula, Roederer acrescenta
esse traço bem natural, formulado por um pedante : "Sem
instrução!" Pelo contrário, Danton havia realizado
bons estudos clássicos na cidade de Troyes, em um
estabelecimento laico, cujos alunos freqüentavam os cursos do Colégio
da Congregação Religiosa Oratoriana.
Seu amigo Rousselin
e seu camarada Béon deixaram-nos detalhes curiosos sobre
esses anos escolares.
Béon afirma o seguinte:
"Danton
preferia, a todo outro tipo de leitura, aquela referente à Roma Republicana. Treinava
a si mesmo na busca de expressões enérgicas, com contornos
audazes, elaborando expressões novas, pois que amava afrancesar as
palavras latinas, nas traduções a serem feitas de Titus Livius e
de outros historiadores romanos."
Rousselin acrescenta que as amplificações de Danton
continham sempre alguns traços salientes e originais que provocamvam aplausos
de seus colegas e de seu professor:
"Toda a classe esperava,
com impaciência, o professor designar Danton para que
este mesmo lesse suas composições."
Obteve em retórica o prêmio
do discurso francês para narração e versão latina.Dessa bagagem
clássica, à qual se atribuía então tantos prêmios, Danton possuía,
pois, tudo aquilo que cumpria possuir. Sua escolaridade havia sido a
mesma que a do Conde de Mirabeau, Camille
Desmoulins, Pierre Vergniaud, Maximilien de Robespierre
e a dos mais letrados entre os homens da Revolução.
Não foi apenas no colégio
que Danton aprendeu o latim, cujo conhecimento
surgia perante o espírito ultra-clássico dos Jacobinos
como condição indispensável para o exercício da palavra e da ação
política.
Acerca do tema, Robinet
assinala o seguinte:
"Seu sobrinho, Marcel Seurat,
recorda que seu tio, Danton, falava, com prazer, essa
língua, seguindo o hábito dos homens letrados de seu tempo, notadamente com o Dr. Senthex
que se ligou profundamente a ele e o acompanhava freqüentemente à cidade
de Arcis."
Rousselin conta até mesmo sobre esse tema uma
anedota característica:
"Quando Danton
comprou seu cargo de advogado do Conselho, seus colegas, sem o
terem avisado de antemão, pediram-lhe, à queima-roupa e por
amabilidade, para perorar "sobre a situação moral e política do país em
suas relações com a Justiça", improvisando, na hora, esse discurso em
língua latina. Tratava-se - tal como o próprio condecorado disse mais
tarde - de propor-lhe marchar sobre o carvão ardente, mas não recuou
absolutamente e avivou, com seu sopro já poderoso, as velhas formas que lhe
impunham:
"Disse que, como cidadão amigo
de seu país e também como membro de uma corporação consagrada à defesa dos
interesses privados e públicos da sociedade, desejava que o Governo muito
sentisse a gravidade da situação para proporcionar remédios através de meios
simples, naturais e retirados de sua autoridade. Em presença das imperiosas
necessidades do país, cumpria resignar-se e sacrificar-se. A nobreza e o
clero que se encontravam de posse das riquezas da França
deveriam dar o exemplo. Quanto a ele, não podia entrever, na luta do Parlamento,
então a ponto de rebentar, senão o interesse de alguns particulares, sem
nada, porém, estipular em benefício do povo. Declarou que, aos seus olhos, o
horizonte parecia sinistro e sentia aproximar-se uma terrível Revolução.
Se a pudéssemos fazer recuar em trinta anos, esta se faria de modo amável,
pela força das coisas e o progresso das luzes. Repetiu em seu discurso
que se assemelhava aos gritos proféticos de Cassandra : "A
desgraça para aqueles que provocam as Revoluções, a desgraça para aqueles
que a fazem.""
Os jovens advogados,
vigorosamente afiados pelo colégio, compreenderam e se alegraram. Os
velhos haviam captado, de passagem, palavras inquietantes, tais quais motus
populorum (EvM.: o movimento popular), ira gentium
(EvM.: a ira das gentes), salus populorum (EvM.: a saúde
popular), suprema lex (EvM.: a lei suprema). Desconfiados,
exigiram de Danton que escrevesse e entregasse essa
declamação, tanto sediciosa quanto ciceroniana. Mas, já então, Danton
não redigia nem queria escrever. Propôs de repetir sua alocução, para que
melhor pudessem o julgar.
Segundo Rousselin:
"O remédio foi pior que o
mal. O areópago entendeu que já era o bastante o que haviam ouvido e
a maioria se opôs, com vivacidade, à repetição."
Mas, foi apenas por
malícia e por confusão que, nesse dia, o futuro orador besuntou-se com
latim. Certamente, os Diafoirus de Molière não
faltaram na Revolução. Danton lhes deixou com suas caretas e seu
culto pueril, prestado à Antigüidade escolástica. Assumiu a atitude
de um homem moderno, livremente voltado para o futuro, não sem
tradições, mas sem pedantismo, que se serve do passado e dele se
aproveita, sem sofrer com a sua camisa-de-força retrógrada. Danton
pertence ao seu tempo. É tão livre de pensamento e tão despojado da escolástica
quanto o fabuloso aluno de Rabelais.
Durante toda sua primeira
infância, parece ter sido formado ainda mais pelos exercícios físicos do
que pelos intelectuais, tal como imaginara Jean-Jacques
Rousseau, e ao abandonar o colégio, pôde dizer como esse
outro: "Amo muito os antigos, mas não os adoro."
Deixando para trás a escola,
quis ser francês. Acima de todos os poetas, amou Pierre Corneille,
no qual tem prazer em avistar um precursor da Revolução.
Em 13 de agosto de 1793,
afirmou, na tribuna da Convenção Nacional :
"Corneille redigia epístolas
dedicatórias, em Mountauroux, mas Corneille
havia feito le Cid, Cinna. Corneille havia falado
em língua romana e aquele que dissera "Para ser um mais do que um
rei, deves acreditar que és algo" era um verdadeiro
republicano.
Sobre suas leituras francesas
de Danton, Rousselin fornece detalhes precisos. Em
Paris, cursando Direito, mas preso à cama em razão de uma longa
convalescença, quis ler e leu toda a Encyclopédie (EvM.:
Enciclopédia de Diderot e d'Alembert). Desnecessário dizer que se nutria -
tal quais todos os seus contemporâneos - de Rousseau, Voltaire e desse
Montesquieu, do qual dissera : "Possuo apenas um lamento que é o de
reencontrar no escritor que vos conduz tão longe e tão alto, o presidente
do Parlamento." E, contudo, esse espírito tão pouco acadêmico de Danton,
era bastante flexível para degustar até mesmo as graças acadêmicas de Buffon,
de quem sua poderosa memória retinha páginas
inteiras.
Mas, o que melhor caracteriza
o giro que Danton quis imprimir à sua cultura intelectual,
é a composição de sua biblioteca, cujo catálogo Jean-François-Eugène
Robinet publicou, segundo o inventário do ano de 1793. Quase
nenhum autor da Antigüidade Clássica não se encontrava no
original, mesmo que Danton fosse capaz, como vimos, de
compreender no mínimo os autores latinos. Aí se encontravam
dois Virgílios, um italiano por Caro, o
outro inglês por Dryden. Ali estava um Plutarco, em
inglês, um Demóstenes, em francês. Não foi o acaso, certamente,
que presidiu a essa escolha de livros, além disso, pouco
numerosos. Verificamos suas preferências pelo gênero humorístico, uma
fantasia pessoal e anti-pedante, sobretudo um vivo sentimento pela modernidade
francesa e estrangeira.
Sabia e falava inglês, essa
língua da política, indispensável ao homem de Estado, tão familiar a Robespierre
e a Brissot. É um inglês que conversa - segundo Riouffe -
com Thomas Peine. Em sua biblioteca, tem à sua
disposição Shakespeare, Alexander Pope, Jonathan Richardson, William
Robertson, Samuel Johnson, Adam Smith, em texto redigido em língua
inglesa. Por um capricho do mesmo gosto, tem também a tradução inglesa de Gli
Blas. E não se deve crer que no fim do século XVIII, essa
aglomania literária fosse tão freqüente como a anglomania sumptuária
ou política que corria as ruas.
Ao lado de François
Rabelais - que sua época praticamente não lia -, Danton havia
colocado alguns livros italianos rigorosos escolhidos. Nesse sentido,
Rousselin afirma:
"Desprezando inteiramente
a literatura frívola e jamais havendo lido romances que não fossem
as principais obras consagradas, verdadeiras pinturas dos costumes, Danton
aprendeu, concomitantemente, o bastante de língua italiana para ler Torquato
Tasso, Ludovico Ariosto e mesmo Dante
Alighieri."
Manuel Seurat acrescentou que - segundo Robinet
- Danton falava freqüentemente italiano com a sua
sogra, Madame Soldini-Charpentier, cujo idioma era sua
língua materna.
Eis aí a variedade original
que esse suposto ignorante teve a argúcia de agregar ao seu
saber.
III.
INSPIRAÇÃO ORATÓRIA DE DANTON
Investiguemos qual foi a
inspiração oratória de Danton, i.e. a que idéias religiosas,
filosóficas e políticas aderia o conjunto de seus discursos.
Se Robespierre
se equivocava, querendo - em conformidade com Rousseau -
criar uma religião do Estado, teve razão em colocar, no
primeiro plano de sua política, a solução das questões religiosas. Seu
erro mesmo atesta que entrevia a verdadeira dificuldade da Revolução e que
o desate, bom ou mau, dependeria da atitude tomada em relação às
religiões.
Danton não parecia preocupar-se com esse grande
problema e não tinha, propriamente falando, política religiosa. Seus
panegiristas fazem de Danton, mas sem provas,
um discípulo de Diderot. Era Danton um deliciado ateu, como
o foi, afirma-se, André Chénier? Não, esses libidinosos da
razão satisfeita ou desgarrada e do pensamento que se especialmente exerce
foram estranhos a esse francês ativo e feliz de viver.
Danton filosofa tão
somente em sua crise final, em face da morte, e, aí, em uma palavra clara,
proclama, com segurança, seu sentimento: "Em breve, minha morada
será no nada .. ", disse Danton ao Tribunal Revolucionário
e, no início de sua defesa, retoma esta lapidar profissão de fé: "Disse-o
e repito-o: "Meu domicílio será, em breve, no nada e meu nome, no
Panthéon".
Essa orgulhosa confissão
não deve ter aliviado, em parte, a consciência do verdadeiro assassino de Danton,
desse Robespierre, inquisidor do Deus de Jean-Jacques?
Evidentemente, pôde afirma para si mesmo que sua vítima não era
ortodoxa.
É provável que Danton atribuísse
apenas uma importância secundária àquilo que preocupava tão fortemente o seu
rival. Parecia querer ignorar as relações existentes a religião e a política,
por desdenho filosófico ou por impotência natural. Quando essa questão se
apresenta, posterga-a sistematicamente. Assim, em 25 de setembro de 1792,
responde a Pierre-Joseph Cambon, o qual havia
proposto a redução do soldo pago ao clero:
"Por uma moção de
ordem, reivindico, a fim de que não vos lançais em uma imensa discussão,
que distinguais o clero em geral dos padres que não quiseram ser cidadãos.
Ocupai-vos com o reduzir o soldo desses traidores que engordavam a
custa do suor do povo e postergai essa grande questão
até um outro momento. (Aplausos)".
No 30 de novembro
subseqüente, opôs-se à supressão do salário dos padres, alegando o seguinte:
"Abalaremos a França com a aplicação demasiadamente precipitada
dos princípios que acalento, mas para os quais o povo e, sobretudo, aquele povo
dos campos, não se encontra ainda maduro."
E, com uma atitude
inteiramente girondina, afirma seu livre pensamento, declarando,
concomitantemente, a religião provisoriamente útil ao povo, assinala:
"Apoiamo-nos sobre idéias
filosóficas que me são caras, porquanto não conheço outro bem senão
aquele do universo, outro culto senão aquele da justiça e da liberdade
... Quando vocês tiverem, por algum tempo, oficiais de moral
que farão penetrar a luz nas palhoças, então será bom falar ao povo sobre
moral e filosofia. Mas, até lá, é bárbaro, é um crime de
lesa-pátria subtrair ao povo os homens nos quais pode encontrar alguma
consolação."
Quando se intentou uma
solução radical, quando os hébertistas quiseram dar continuidade a Voltaire,
destroçando o cristianismo pelo ridículo, Danton acolheu mal
essa tentativa, ao falar com mau humor contra essas "mascaradas
anti-religiosas", onde não via senão uma infração às convenções
parlamentares. No 6 Firmário do Ano II, afirma:
"Existe um decreto que
determina que, os padres que abdicarem, apresentarão sua renúncia ao
comitê. Exijo a execução desse decreto, pois que não duvido que venham, a
seguir, abjurar da impostura. Não se deve tanto entusiarmar-se com os passos
das pessoas que nada fazem senão serem arrastados pela torrente. Não
nos queremos extasiar com ninguém. Se não honramos o padre pelo erro e
pelo fanatismo, também não o faremos pela incredulidade: queremos
servir ao povo. Exijo que não esteja mais exposto a mascaradas
anti-religiosas, no seio da Convenção. Que os indivíduos que quiserem depositar
sobre o altar da pátria os despojos da Igreja disso não mais façam nem
um jogo nem um troféu. Nossa missão não é de receber, sem cessar,
deputações que sempre repetem as mesmas palavras. Existe um limite para
tudo, mesmo para as felicitações. Reivindico que erijamos uma
barreira a isso."
Aqui, a redondeza e a
franqueza de linguagem mal escondem a incerteza do pensamento.
Na falta de idéias pessoais sobre o problema religioso, Danton
propende, aparentemente, no sentido dos sentimentos de Robespierre. No
mesmo dia, sua desenvoltura em tomar partido bem concebido sobre esse ponto
leva-o a se pronunciar contra as tendências que manifestará no Tribunal
Revolucionário, aceitando, oficialmente, a crença no Ser
Supremo. Que queremos dizer com aceitar? Foi ele, Danton,
o primeiro a propor a religião do Estado, sonhada por Robespierre
e, em um instante de impotência moral ou devido a uma tática
parlamentar verdadeiramente por demais complicada, fez-se o intérprete das
concepções místicas de seu adversário.
Sim, dezesseis dias depois da Festa
da Razão, onde certos dantonistas haviam empregado o mesmo zelo que os
hébertistas, quando os ecos do hino filosófico soava ainda em Notre-Dame,
Danton, sob o pretexto de dar uma centralidade à instrução
pública, exigiu que o povo pudesse se reunir em um vasto templo,
ornado e alegrado pelas artes, acrescentando o seguinte:
"O povo terá festas nas
quais oferecerá incenso ao Ser Supremo, ao mestre da
natureza, visto que não quisemos eliminar a superstição para estabelecer o
reino do ateísmo."
E, com visível embaraço,
louvou a influência das Festas Nacionais e os bons efeitos
da instrução pública, em termos que contradiziam à sua proposta jacobina
de organizar uma religião do Estado deísta, em termos
em que se houvessem dito terem sido tomadas emprestadas de Diderot
ou de Condorcet.
Houve, então, entre os
dantonistas, que não compartilhavam desse ambiente íntimo, um
instante de assombro, de estupor. Jacques-Alexis Thuriot,
com base em cuja moção a Convenção Nacional havia assistido à Festa
da Razão, fingiu não ter ouvido a moção robespierrista de seu amigo,
dizendo: "Mas, o que reivindica Danton está feito.
O Comitê de Instrução Público é encarregado de lhes apresentar
visões sobre essa matéria." E fez colocar na ordem-do-dia de uma próxima
sessão o debate sobre a organização da instrução pública.
Quando à proposta de Danton,
esta foi remetida ao Comitê, sem especificar que se tratava do culto do
Ser Supremo ou da comemoração das Festas Nacionais. Foi
assim que os dantonistas fizeram fracassar a intriga tão hábil de Robespierre,
reparando a impotência de seu chefe. Ocorreu, ao que parece, um incidente vivo
e grave, em que é necessário entrever não uma ato de hipocrisia de Danton,
mas essa incapacidade religiosa que lhe foi tão duramente
reprovada por Edgar Quinet.
A metafísica - tal como
se dizia então - não era menos estranha à política de Danton do
que as idéias religiosas. É bem dizer que não ataca príncipios. Permitia a
Robespierre predicar, a seu bom grado, o Evangelho de
Jean-Jacques Rousseau, não aparentando acreditar em verdades
sociais como tampouco no deísmo, do qual
essas verdades eram para Robespierre a conseqüência natural.
As idéias morais, tais quais as compreendiam os adeptos do Contrato
Social, não inspiraram, em nenhuma parte, sua eloqüência. Danton
não catequizava jamais. Apenas da experiência extraía suas concepções e seus
conselhos. Seu empirismo era muito bem elaborado para agradar aos
nossos modernos positivistas.
Estes, porém, exageram: se a
eloqüência de Danton não houvesse jamais decorrido senão de fatos
tangíveis ou demonstráveis, não teria influenciado seus
contemporâneos. Danton rechaçava - tal
como admito - Deus e a imortalidade da alma : mas, tal
como se crê na religião, era uma crente de instinto nas duas
divindades incontestadas da Revolução : a Justiça e a Pátria.
São as duas idéias
indemonstráveis, graças às quais sua eloqüência tocava os corações,
impelindo os seres humanos ao único gênero de ação que uma filosofia
utilitarista não pode aconselhar : o sacrifício. Ele
mesmo encontrava-se disposto a dar sua vida pelo sucesso da
Revolução, ao não acreditar em estar promovendo um mercado de
enganos, embora não esperasse nenhum salário ulterior.
Danton possuía certas crenças desarrazoadas, contrárias
ou superiores ao bom senso, mediante as quais reaquecia sua palavra,
fazendo germinar nas almas o entusiasmo e o gosto dessa generosidade
absurda e divina que conduz nossos pais a morrer por esta abstração, a Pátria,
e por esta quimera, a Justiça.
Assim, os robespierristas
caluniavam esse justo e esse patriota, quando o acusavam de não acreditar
absolutamente na moral. Danton, também ele, possuía uma moral:
sem moral, teria podido fazer-se ouvir pelo povo que, reunido, não
compreendia a língua do interesse? Porém, essa moral de Danton -
mais sumária que aquela de Robespierre - reduzia-se a um
duplo postulado, acerca do qual evita mesmo de dissertar. Robespierre,
do alto da tribuna, reflete sobre sua própria moral, professa-a,
predica-a, não acreditando em ser um pedante. Danton
constata, em si mesmo e junto a outros, a existência de dois sentimentos
dos quais falamos, deles retirando sua inspiração, a labareda de
sua eloqüência, sem procurar as demonstrar ou mesmo explicar.
Se já os princípios
diferem nesses nos dois oradores, seu objetivo não é também o mesmo. Robespierre
- à guisa de Rousseau - sonha com a moralização do
mundo. Danton não possui essas pretensões ambiciosas: não
procura reformar o homem interior, senão cercar seus concidadãos das melhores
condições materiais para viverem com liberdade, igualdade e fraternidade.
Não tende a violentar o gênio da nação francesa e a transformar Atenas
em Esparta, como se dizia então. Antes,
aconselharia a raça francesa a abundar em seu sentido próprio, de
desenvolver suas qualidades hereditárias, demonstrando-se feliz em consonância
com seu próprio caráter. Todavia, não acreditava que os governantes tivessem
tarefa espiritual nem que os deputados da Convenção Nacional
fossem professores de moral. (...)
EDITORA DA ESCOLA DE AGITADORES E
INSTRUTORES
“UNIVERSIDADE COMUNISTA
REVOLUCIONÁRIA J. M. SVERDLOV”
PARA A FORMAÇÃO, ORGANIZAÇÃO E
DIREÇÃO MARXISTA-REVOLUCIONÁRIA
DO PROLETARIADO E SEUS ALIADOS
OPRIMIDOS
MOSCOU - SÃO PAULO - MUNIQUE –
PARIS
[1] Cf. AULARD,
FRANÇOIS-ALPHONSE, Les Grands Orateurs de la Révolution (Os Grandes
Oradores da Revolução), Paris : Rieder et Cie, Éditeurs, 1914, pp. 161 e
s.