PRODUÇÕES LITERÁRIAS DEDICADAS À FORMAÇÃO

DE REVOLUCIONÁRIOS MARXISTAS QUE ATUAM NO DOMÍNIO DO DIREITO, DO ESTADO E DA JUSTIÇA DE CLASSE

 

PEQUENOS ENSAIOS SOBRE MARXISMO E DIREITO, SOCIEDADE E ESTADO NA REVOLUÇÃO

 

Revolução Proletária e Direito Civil

 

ALEXANDER G. GOIKHBARG[1]

(ALEKSANDR G. GOICHBARG)

 

Concepção e Organização, Compilação e Tradução

Emil Asturig von München, Novembro de 2004

 

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“Assim, segundo Goikhbarg, o Direito é, para o povo,

um ópio ainda mais nocivo do que a religião.”[2]

 

„Se a ordem socialista houvesse conseguido plenamente prevalecer entre nós,

teríamos substituído a tutela privada, individual, dos pais em relação aos filhos

pela tutoria pública, sem nenhuma exceção."[3]

 

A Revolução Proletária – proletária não apenas em termos de forças que a desencadearam, senão também, em termos de objetivos perseguidos pelas massas que a executam, de modo instintivo ou consciente –, possui como meta realizar, cedo ou tarde, a substituição do sistema burguês-individualista pelo sistema socialista-coletivista.

Com a completa socialização da produção e das trocas, em primeiro lugar, e, a seguir, com a socialização do consumo, bem como com a eliminação de toda e qualquer luta entre os seres humanos, travada no processo de aquisição dos meios materiais de existência, conceder-se-á plena oportunidade ao ilimitado e profundo desenvolvimento do homem e de sua personalidade, à medida que deixarmos de o considerar como indivíduo segregado, passando a contemplá-lo, inversamente, enquanto parte integrante desse todo orgânico que é chamado humanidade.     

Então, a luta travada na esfera das relações entre os seres humanos será conduzida no interior da esfera das relações entre a humanidade e a natureza.

Em persistente confrontação com a natureza, os seres humanos dela extrairão mais segredos, conhecerão novas forças naturais, aprenderão a dirigí-las, adaptá-las às crescentes necessidades da espécie humana, transformando a si mesmos de escravos das forças ininteligíveis e elementares em seus senhores conscientes.

No presente momento, é difícil prever o fim do confronto dos homens, travado na esfera da conquista das forças naturais, orientada para a criação de uma vida humana marcada pela beleza, pela diversificação e pela liberdade.

Porém, essa longa luta – talvez a luta de gerações – não será travada entre seres humanos nem grupos de seres humanos, divididos por fronteiras geográficas, estatais ou de classe : será a luta entre a humanidade e a natureza.

O período de combates e guerras, travados entre seres humanos, tornar-se-á, então, uma lenda.

Os homens enquanto partes harmônicas de um organismo integral e único, i.e. a humanidade, haverão de combinar seus poderes em prol do bem comum, não os dirigindo para a derrota, a subjugação, a opressão e a escravidão de uns por outros.

A fonte de coerção desaparecerá nas relações havidas entre os homens.

Assim, o Direito, requisitado pela luta constante travada entre os seres humanos enquanto indivíduos, grupos e Estados separados etc., desaparecerá, então, enquanto organização de coerção, atuante na esfera das relações humanas.                

Não apenas o Direito Civil desaparecerá com a consolidação do coletivismo, senão ainda o Direito em geral.

A harmoniosa coexistência dos seres humanos será fundada não sobre o princípio da coerção e das necessidades sociais  - ou, em outras palavras, sobre o Direito -, mas sim sobre o princípio da completa liberdade social.

Pela primeira vez, então, a humanidade não necessitará de garantias contra a liberdade ou, até mesmo, contra o arbítrio de suas partes orgânicas separadas, i.e. os indivíduos que a comportam.

Condições completamente modificadas de existência humana provocarão uma tal regeneração da psicologia social que o despotismo individual que disturba a harmonia da vida da humanidade tornar-se-á uma anomalia tão rara que poderá ser ou desconsiderada ou eliminada, por meios distintos daqueles consubstanciados nas garantias jurídicas contemporâneas.

Porém, se esse será o resultado final da criação do sistema socialista, quer isso dizer que, imediatamente depois da irrupção da Revolução Proletária - confinada ainda a apenas um país -, podem ser editados Decretos abrogando toda a estrutura jurídico-burguesa precedente, sendo a criação das novas relações socialistas abandonada ao curso “natural” dos acontecimentos ?

É possível uma transição desregulada que parta do arbítrio anárquico do sistema burguês-individualista, rumando para a liberdade harmoniosa do sistema social-socialista ?

A própria colocação dessas questões implica ser auto-evidente a resposta negativa.

É por si mesmo evidente que, durante o período de transição, alguns domínios do Direito florescerão, atingirão intensidade precedentemente desconhecidas, ao passo que, simultaneamente, outros domínios deverão entrar em declínio, empalidecer, reduzir-se, aproximar-se da não existência ou, definitivamente, desaparecer.

Nesse contexto, as mudanças assumirão um caráter mais veemente no domínio da legislação do que no domínio do Direito Operante, o qual, no passado, conteve o núcleo do novo sistema.

Porém, os Decretos não podem, por si mesmos, assegurar a solução final do problema.

Os Decretos que aboliram os elementos de sobrevivência do passado com breves, porém, contundentes declarações, romperam velhos grilhões que acorrentavam os homens e impediam suas atividades, conferindo aos indivíduos uma completa liberdade de ação que, por sua vez, admitia ou hipocritamente fingia que o conflito dos egos livres produziria um bem estar geral – esses Decretos foram apropriados e atingiram seu objetivo, no período da exemplar Revolução Francesa Burguesa, a qual aspirou à criação de uma sistema de anarquismo individual, na esfera das relações econômicas.

Porém, a Revolução Proletária que persegue objetivos inteiramente distintos e se confronta com a tarefa de construir e consolidar um sistema diametralmente oposto, baseado no coletivismo regulado, não pode, obviamente, limitar-se à mera atividade negativa consistente na edição de Decretos.

A tarefa positiva de regulação das relações que há de substituir o sistema caótico precendente é de grande importância na esfera jurídica do período de transição.

No que diz respeito a essa matéria, encontramos os pensamentos de um dos mais proeminentes « jovens » marxistas, Karl Renner, sendo que aqui nos mantemos inteiramente concentrados e interessados em uma sua obra recentemente publicada[4].

 

Em um de seus capítulos, ao tratar da diferença existente entre Revoluções Burguesas e Revoluções Proletárias, Karl Renner desenvolve o seguinte pensamento : o que as Revoluções Burguesas realizam na esfera econômica é muito simples e alcançável, de maneira relativamente rápida, posto que desencadeiam e liberam os homens e os elementos materiais da produção de todos as cadeias tradicionais, feudais ou estamentais, abandonando-os a si mesmos[5].

 

Em nome dessas revoluções, diz o Estado aos homens :

 

"Doravante, você é uma pessoa e, em sentido econômico, é livre para fazer tudo aquilo que desejar.

Seu Direito supremo e fundamental é, nessa esfera, o de ser inteiramente independente em relação a mim.”

 

Exatamente da mesma maneira, o Estado dirige-se às coisas materiais :

 

"Doravante, vocês nada mais são senão mercadorias, independemente do fato de serem porções de terra, frutos, animais, produtos do trabalho ou qualquer outra coisa que seja.

Não vejo nenhuma diferença entre vocês.

Vocês possuem o Direito de circular, sem a minha ajuda.

Pessoas e mercadorias! Ajam sobre a base do livre contrato !

Minha tarefa constitui meramente em fornecer coerção para o cumprimento de seus contratos.”

 

É inteiramente óbvio que essa não-interferência não requer nenhuma atividade econômica criativa por parte do Estado, podendo ser executada a qualquer momento, mediante simples Decretos.

Independemente da quantidade de tempo que transcorreu antes de a sociedade feudal tornar-se desorganizada a ponto de começar a conceber a si mesma enquanto simples sociedade de possuidores de mercadorias e abstraindo-se os esforços políticos que houveram de ser envidados pela burguesia na acumulação do poder político, foi a Revolução Burguesa executada, formalmente, por meio de Decretos que declaravam :

 

"Homens e mercadorias, movam-se !

Vocês são livres !"

 

Nenhum trabalho organizativo adicional havia de ser empreendido pela Revolução Burguesa, salvo a criação de justamente um Estado-árbitro, i.e. um Rechtsstaat (Estado de Direito), máxima realização do ideal burguês de vida social, para além do qual até mesmo os mais grandiosos cérebros burgueses - como o de Immanuel Kant -, foram incapazes de avistar.

Nada obstante, esse mesmo Rechtsstaat (Estado de Direito) foi denominado, ironicamente, de Guardião Noturno por Ferdinand Lassalle.

Seria absurdo admitir que a Revolução Proletária tornar-se-ia uma cópia da Revolução Burguesa, havendo de desempenhar a mesma função e aderir às mesmas formas.  

Pelo contrário, na medida em que ela representa uma formação história mais recente e superior, a forma burguesa da revolução e suas fórmulas são reacionárias, se comparadas com a Revolução Proletária.

A falta de limitação do movimento dos homens e das coisas que a ideologia burguesa denomina de liberdade constitui uma anarquia do ponto de vista da Revolução Proletária e, assim, representa algo de reacionário.

A Revolução Proletária prevê para o futuro um novo sistema.

No lugar do sistema capitalista, entrevê um sistema econômico e social socialista.

Vivendo no quadro do mundo burguês, cujo caráter anarquista foi tão claramente descrito por Friedrich Engels, Karl Marx declarou o seguinte :

 

"O que vocês denominam de ausência de restrições e de liberdade é, efetivamente, a dependência social universal.”

 

Tendo falhado em criar, conscientemente, para ele mesmo uma ordem social, o mundo burguês sucumbiu à lei material do capital que domina todos os participantes da produção.

Vocês são escravos das coisas, porém, enquanto pessoas, acreditam que são livres.

Porém, essa lei do capital obriga a que se unam e, um dia, há de obrigar até mesmo a sociedade a destroná-la, substituindo-a por uma direção social-consciente, criando-se condições em que a economia não domine a sociedade, mas sim a sociedade, a economia, a burguesia não domine o Estado, mas sim o Estado, a burguesia, até que a sociedade organizada dissolva, finalmente, a burguesia.

O capitalismo dá à luz o seu próprio coveiro, nomeadamente, o socialismo.

Nesse sentido, o socialismo representa uma dominação consciente da sociedade organizada sobre a economia.

Uma sociedade organizada não é um conglomerado de indivíduos, mas sim sua fusão no quadro de uma vontade geral.

Lamentavelmente, essa fusão não pode ser provocada nem por Decretos e nem em um único dia.

Perguntem a qualquer representante político de localidade ou a qualquer representante de um sindicato local, quanto tempo, esforço e habilidade são necessários para guiar umas poucas centenas de pessoas a um só pensamento e a uma só vontade, a fim de desenraizar de seus cérebros os preconceitos burgueses de livre “individualidade” anarquista, substituindo-os pela consciência de que é melhor ser um membro livre de uma sociedade livre.

Dêem uma olhada nas nossas organizações profissionais, cooperativas e políticas e verão que anos e décadas serão indispensáveis à regeneração psicológica da rebelião proletária, sendo que isso será alcançado não por meio da violência ou Decretos, mas sim mediante trabalho e educação.

Levando tudo isso em conta, pode-se entender o profundo contraste existente entre mundo burguês e mundo proletário.

A essência do sistema burguês é o título jurídico, a propriedade.

A essência do sistema proletário é o trabalho, um processo prolongado de trabalho que não pode ser substituído por uma invenção engenhosa.

A virtude do sistema burguês é a soberania do indivíduo.

A virtude do sistema proletário é a incorporação disciplinada no quadro de uma vontade geral, no quadro de uma organização.

A sociedade organizada coloca, em suas próprias mãos, a dominação sobre a economia.

Essa é a tarefa material da nova formação proletária.

A dominação sobre a economia é um traço que a distingue não apenas do sistema estatal burguês mas que a torna diametricalmente oposta a ele.

O sistema burguês constitui uma dominação sobre seres humanos, por meio do Direito, i.e. por meio da prescrição e da obediência ou, sucintamente, por meio de ordenamentos jurídicos.

O órgão desse sistema é o jurista.

Sua forma suprema é a legislação.     

Na atualidade, durante a guerra, mesmo um leigo pode ver que a simples legislação é impotente e, especialmente, incapaz de dar conta da economia.

Por outro lado, a dominação sobre a economia já deixou de ser propriamente dominação enquanto tal : consiste em projetar e executar planos de trabalho, idéias técnicas e trabalho técnico.

Isso demonstra a tremenda diferença que existe entre esses dois mundos.

O Direito Burguês declara :

   

"Vocês, sujeitos do Direito Burguês, podem ou devem construir casas, sob tais e tais limitações jurídicas.”

 

Uma tal prescrição é editada, com um único golpe de pena.

Por outro lado, a vontade social e geral, proclama :

 

"Nós construiremos acomodações para todos."

 

Esse último Direito já não é mais uma prescrição, mas sim um programa de trabalho.

Depois da promulgação dos Decretos de 4 de Agosto de 1789, ponto culminante da Revolução Francesa, os cidadãos livres puderam começar a bailar, jubilosamente, nas praças de Paris. 

Eram pessoas livres, proprietários desembargados, sendo que as mercadorias circulavam livremente  - ou, no mínimo, supunha-se que circulavam livremente -, em todos os mercados.

O desenvolvimento do modo capitalista de produção pôde ter, então, o seu início.

Sem embargo, no momento em que o proletariado estabelece sua ordem de Estado, há de iniciar-se o trabalho e não o baile.

Anos passarão – em verdade, anos plenos de trabalho – até que, por exemplo, todo e qualquer membro da sociedade esteja aprovisionado com acomodações valiosas.

Um entendimento correto da forma e do conteúdo da rebelião proletária pode ser adquirida mediante o exame das medidas adotadas pela burguesia, em antecipação a essa mesma rebelião.

Desejando atingir a exploração mais ampla possível do trabalho, a burguesia não podia esperar que todo e qualquer trabalhador adquirisse, de modo privado, o treinamento necessário para o processo de produção, por intermédio da livre competição, travada entre os professores e os educadores particulares.   

Criou escolas públicas, adotando, assim, nesse domínio, métodos que estão à disposição do sistema socialista e que são os únicos verdadeiramente adequados.

Inicialmente, a burguesia executou sua decisão mediante lei.

Desse modo, por exemplo, uma Lei sobre a Escola Pública foi editada, em 1869, na Áustria.

Porém, a lei é apenas uma palavra e, além disso, uma palavra que não é absolutamente semelhante às palavras bíblicas, utilizadas durante os Seis Dias da Criação:

 

“Que assim seja ...” e ... “Assim foi.”!

 

Que existam prédios escolares! Que haja professores escolares!

Tal qual uma verdadeira lei social, essa lei foi um programa de trabalho: queremos construir escolas, desenvolver métodos de ensino e estabelecimentos escolares, criar academias de formação de professores, conceder a cada criança uma educação de oito (8) anos de duração.

Quase meio século se passou, desde que essa lei foi promulgada, sendo que ainda não foram construídos todos os prédios escolares.

A preparação dos professores é ainda insatisfatória.

Faltam ainda equipamentos escolares.

Nenhuma das necessidades dessas escolas serão jamais atendidas, posto que o tempo urge e o Governo segue meramente bem na retaguarda, relativamente à satisfação das necessidades em questão: em sua própria natureza, todas as promessas governamentais são infinitas.

Igualmente infinitas serão as tarefas econômicas do socialismo.

Basta referir um único exemplo, a saber : a tarefa de organização da produção rural.

Cada passo coloca a descoberto novos problemas, no curso desse processo.

Nada é mais perigoso do que injetar no proletariado a fé em Decretos que prevaleceram, durante a Revolução Francesa.

Nada é mais perigoso do que esperar milagres do socialismo, tal como os que ocorreram nos Dias da Criação:

 

“Que assim seja ...” e “Assim foi.”!

 

O dia em que o proletariado estabelecer a Ditadura sobre a economia, desaparecerá o fantasma do Estado e o trabalho da administração terá o seu início.

Na realidade, esse trabalho será despojado de todos os interesses privados.

Será capaz de produzir mais rápida e eficientemente, fazendo precipitar o desenvolvimento social.

Contudo, milagres não ocorrerão.

O templo da autoridade burguesa é a legislação e o seu fetiche é o Direito.

O templo do sistema mundial socialista é a administração e sua prestação divina é o trabalho.

Não é por acaso que os ideais políticos da burguesia são incorporados no Parlamentarismo e no Rechtsstaat (Estado de Direito), enquanto que a comunidade socialista é, por sua própria natureza, antes de tudo, uma comunidade de administração.

O socialista e marxista de nome Karl Renner não é o único a considerar a transição da legislação à administração.

Renner descreve singelamente, de modo extraordinamente saliente e ousado, as distinções existentes entre métodos burgueses e métodos proletários.

Nos trabalhos de diversos cientistas burgueses, podem-se também encontrar referências ao fato de que a soberania, os comandos e a legislação começam a desempenhar um papel secundário até mesmo na sociedade burguesa e abrem caminho à satisfação direta das necessidades dos municípios, da administração e do gerenciamento da economia.

Por exemplo, Duguit, um professor francês, dedicou todo um livro a essa questão[6].

Em parte, essas mesmas idéias podem ser encontradas em um livro publicado no século passado pelo atual Presidente dos EUA, Woodrow Wilson.

Por exemplo, em seu livro, encontramos as seguintes linhas :

 

“... O Poder Legislativo nada é senão parte do Governo.

A legislação nada é senão o lubrificante do Governo.

Lubrifica seus canais e acelera suas rodas.

Diminui a fricção e, assim, facilita o movimento ...

É até mesmo mais importante ter conhecimento de como a casa está sendo construída do que saber como os planos foram concebidos pelos arquitetos e os materiais necessários, formulados mentalmente.

É preferível possuir paredes competentes e de forte estrutura, arcos confiáveis, abóbodas indobráveis e janelas seguras para “expurgar a perturbação do inverno” do que ter um papel que é a admiração de todos os artistas do país.”[7]

 

As tarefas da Revolução Proletária não podem ser executadas nem por meio de Decretos nem por meio de atos legislativos que forneçam títulos jurídicos e procedimentos através dos quais certos Direitos possam ser adquiridos.

Muito mais do que isso: essas tarefas não podem ser executadas por meio de normas, baseadas na premissa de que as relações correspondentes devem ser reguladas mediante contratos privados e de livre arbítrio, normas estas que começam a operar apenas quando as pessoas que ingressam em certas relações olvidam ou deixam de perceber alguns detalhes relativos a essas mesmas relações.

Essas tarefas serão executadas não mediante a rejeição da intervenção do Estado, senão, pelo contrário, mediante a administração organizada, o gerenciamento econômico, o atendimento das necessidades materiais, espirituais e culturais da população.

Evidentemente, o delineamento das tarefas em tela e o esboço de tais planos também serão elaborados, de ínicio, na forma de decisões que, na superfície, podem-se assemelhar às leis escritas, existentes no passado.

Porém, as leis que tratarem do Direito Civil, tal qual concebido anteriormente (na Alemanha : bürgerliches Recht), serão incluídas no sistema de legislação enquanto uma parte independente ?

Ou, teremos de admitir que o Direito Civil deve ser abolido ?

Ou, mais precisamente, teremos de consentir em que as relações, reguladas anteriormente pelo Direito Civil, devem ser reguladas por normas de tipo inteiramente diferente, i.e. não de tipo burguês-individualista, mas de tipo social-organizativo ? 

De todo modo, qual é, de fato, a natureza do Direito Civil ?

Os debates que concernem aos limites do Direito Público e do Direito Privado, bem como às características essenciais que distinguem o Direito Civil do Direito Público, encontram-se longe de estarem resolvidos, na literatura da Europa Ocidental.

O mesmo ocorre em nosso país, a despeito do fato de que, desde 1864, existe uma regra estipulando que todas as controvérsias relativas ao Direito Civil estarão sujeitas à decisão judiciária.

Contudo, de modo geral, pode-se considerar a exposição acerca do Direito Público, apresentada pelo professor Y. A. Pokrovsky, um especialista extremamente individualista no campo do Direito, como sendo a mais satisfatória:

 

O método da descentralização jurídica constitui a característica essencial do Direito Civil ...

Métodos distintos são utilizados nos domínios em que a lei é considerada como pertencendo à esfera civil ou privada.

Nesse último caso, a autoridade do Estado abstém-se, via de regra, de regular diretamente as relações : ela não se coloca na posição de um centro exclusivamente regulador, senão, pelo contrário, abandona a regulação a uma multidão de outros pequenos centros que – tal como outras unidades sociais independentes – são concebidos como sujeitos de Direito.

Na maioria dos casos, esses sujeitos de Direito são pessoas individuais ... 

Todos esses pequenos centros são considerados como tendo sua própria vontade e iniciativa, sendo que, por conseqüência, são responsáveis pela regulação das relações mantidas entre si.

O Estado não determina, de forma alguma, essas relações.

Assume meramente o papel de órgão protetor daquilo que foi por outros determinado.

O Estado não prescreve a um sujeito particular dever tornar-se proprietário, herdeiro ou marido.

Tudo isso depende da própria pessoa privada ou das diversas pessoas privadas (partes de um contrato).

Não obstante, a autoridade estatal protegerá as relações estabelecidas pela vontade particular.

Em regra geral, essa autoridade recorre à ação apenas quando, por alguma razão, os sujeitos privados não cumprem suas obrigações...

Assim, por exemplo, no caso da ausência de uma vontade, o Estado determina a ordem de herdar, em conformidade com a lei.

Consegüintemente, de modo geral, as normas do Direito Privado não possuem caráter coercitivo, mas sim meramente subsidiário ou suplementar, podendo ser abrogadas ou substituídas mediante decisões privadas ...

Desse modo, enquanto o Direito Público é o sistema das relações jurídicas centralizadas, o Direito Civil é, pelo contrário, um sistema de descentralização jurídica : sua própria existência pressupõe a existência de um grande número  de centros auto-determinantes.”[8]

 

Porém, pode a autoridade de um Estado Proletário, estabelecida para executar as tarefas da Revolução Proletária, desempenhar um papel neutro, um papel de Pôncios Pilatos, em relação à economia, na medida em que atende as necessidades materiais e espirituais do povo?

Pode, “em via de regra, abster-se da regulação direta” das relações que cumprem um papel decisivo ?

Pode ser indulgente com a situação na qual a esfera das relações privadas materiais se baseia sobre o princípio da liberdade de comércio e propriedade privada ?

Pode condescender na situação em que o domínio das relações jurídicas estribam sobre o princípio da liberdade de acordos e contratos?

Pode tolerar a situação em que a esfera das relações de propriedade post mortem encontra-se fulcrada no princípio do livre arbítrio de vontades ?

A autoridade do Estado Proletário – i.e. a autoridade classista cuja vida depende da organização, unificação, centralização, porém não da atomização e da descentralização do trabalho – não pode agir dessa maneira.

Desse modo, não poderia agir nem mesmo a autoridade burguesa que foi forçada pelo desenvolvimento das relações econômicas a ocupar-se com a regulação de algumas relações materiais, civis e de sucessão.

Porém, a liberdade ilimitada de propriedade, de pactos e contratos, bem como de declaração de vontade, foi ela realmente preservada, no quadro do sistema jurídico-burguês ?

Até mesmo os mais radicais individualistas - como por exemplo, o professor Y. A. Pokrovsky – são forçados a reconhecer a possibilidade de uma diferente regulação das relações que, tão somente às vezes, eram reguladas (ou melhor : que costumavam permanecer desreguladas) pelo Direito Civil[9].

Em particular no presente momento - tendo em conta os problemas levantados pela guerra, pela fome e por todas as mudanças realizadas ou que, em breve, haverão de sê-lo -, seria concebível a situação em que a autoridade do Estado abstenha-se, por princípio, de intervir diretamente no domínio das relações reguladas pelo Direito Privado?

Poder-se-ia, em verdade, argumentar no sentido de que o Direito de Posse pertence ao domínio do Direito Civil acima discutido, considerando-se especialmente o fato de que não apenas o Direito de Propriedade tem sido restringido, senão também o principal objeto do Direito Privado, i.e. a terra, retirado da dominação e da regulação privada arbitrária ?

É possível falar-se de liberdade dos pactos e contratos, quando a contratação de trabalho e a locação de imóveis são reguladas pela autoridade do Estado, quando esse último determina o limite da lucratividade tanto das empresas públicas como das privadas, quando a principal parte da produção e das trocas tornaram-se nacionalizadas e a conscrição geral do trabalho está sendo preparada ?

Cumpre notar que para aqueles que não possuem propriedade privada, a conscrição geral do trabalho sempre existiu na sociedade burguesa, de modo não apenas factual, senão ainda jurídico.

Essa conscrição é homologada seja pela ameaça da fome, seja pela punição por roubo, vadiagem ou mendicidade.

Vimos que as relações que, de início, eram isentas de intervenção da autoridade do Estado Burguês – o resultava ser apenas verdade relativamente ao período de simples produção de mercadorias – tornaram-se objetos de crescente intervenção estatal, mesmo antes da Revolução Proletária. 

Essa intervenção será ainda mais intensificada pela autoridade do Estado que se revelar como um instrumento do proletariado, assumindo a responsabilidade pela transição ao total coletivismo.

O Direito Privado, Civil, Burguês que é baseado no princípio do laissez faire, laissez passer está em período de decadência, por todos os lados.

Na época da Revolução Proletária, esse Direito encontra-se em estado de agonia e será substituído pelo Direito Social do Período de Transição, um Direito baseado no exame de contas planejado e centralizado e cujo objetivo é a satisfação das necessidades materiais e espirituais dos seres humanos, membros da grande coletividade, em constante expansão.

O Direito Civil Individualista perecerá, finalmente, no período da Revolução Proletária, sendo substituído por um Direito inteiramente diferente, um Direito Social.

Partindo desse ponto de vista, pode parecer que a Revolução Proletária encontra-se confrontada, nesse domínio, com duas tarefas independentes, a saber : a tarefa de abolição e a tarefa de criação, sendo que a primeira dessas tarefas é muito simples e indêntica à função de supressão, empreendida pela Revolução Burguesa, i.e. a Revolução Francesa.

Na realidade, porém, isso não é assim.

O aspecto de abolição, contido na tarefa da Revolução Proletária, é fundamentalmente diferente daquele da tarefa de abolição, empreendida por uma Revolução Burguesa.

É implementado com tremendas dificuldades, não verificadas na concretização das tarefas jurídicas da Revolução Burguesa.  

O aspecto de abolição da tarefa da Revolução Proletária está indissoluvelmente vinculado à sua parte criativa.

Não apenas as velhas relações são abolidas, senão ainda o modo de regulação das novas relações modifica-se, da maneira mais inusitadamente radical e complicada.

O modo não-organizativo de regulação é substituído pelo modo organizativo de regulação.

Por exemplo, a execução da tarefa abolidora, i.e. abrogadora, supressiva, no domínio do Direito de Herança haveria de ser inteiramente fácil se consistisse apenas na abolição, i.e. no desconhecimento das relações de propriedade de uma pessoa falecida, se se decidisse que a propriedade que pertence à pessoa falecida durante sua vida haveria de deixar de ser atribuída ou vinculada a qualquer outra pessoa, que suas dívidas haveriam de ser canceladas, todas as suas ações, encerradas e sua propriedade pessoal, liberada e acessível a qualquer um.

Contudo, as dificuldades emergem quando a tarefa em questão é diferente, i.e. quando a ordem previamente existente de regulação das relações de propriedade da pessoa falecida é abolida e substituída por uma ordem ainda mais complexa, devendo a autoridade do Estado determinar todos os detalhes concernentes à disposição da propriedade do falecido.

De toda sorte, essas dificuldades são de natureza diferente daquelas indicadas pelos críticos da abolição do Direito Privado de Herança.

Assim, o mencionado professor Y. A. Pokrovsky – entre outros – argumenta, da seguinte maneira : 

 

“Na medida em que o sistema econômico é baseado no princípio da iniciativa privada, a abolição do Direito de dispor da propriedade de alguém, em caso de morte, conduzirá a um número de conseqüências negativas de difícil caráter.

Se, no caso de suas mortes, as pessoas fossem despojadas de seu Direito de cuidar de seres próximos que não são seus herdeiros legais ou do Direito de dar sua propriedade, por quaisquer outros motivos que sejam por elas prezados durante sua vida, perderiam o estímulo mais efetivo ao desenvolvimento de sua energia e iniciativa econômicas.

Ao invés disso, no fim de suas vidas, poder-se-ia desenvolver a tendência de desperdiçarem e esbanjarem dinheiro inutilmente.[10]

 

Todos esses temores são muito mais aparentes do que reais.

Em primeiro lugar, quando nos defrontamos com a tarefa de abrogar as vontades e o Direito Privado de Herança, o sistema econômico deixa de ficar baseado no princípio da iniciativa privada.

Em segundo lugar, ninguém pode saber, nem mesmo aproximadamente, quando sua vida está-se aproximando do fim.

Em terceiro lugar, até mesmo os críticos da abolição do Direito Privado de Herança admitem que, no presente momento, a interrupção ou a descontinuidade de uma atividade empresarial não depende da vontade de uma pessoa[11].

Em quarto lugar, na maioria dos casos, o desperdício e o esbanjamento inúteis de dinheiro não implicam destruição da propriedade, mas sim sua transferência para outras mãos.

Finalmente, é inteiramente concebível o fato de que o desejo de velar pelos necessitados e trabalhar pelo bem geral, i.e. pelo o Estado, pode tornar-se um estímulo à intensificação da iniciativa de alguém.

Com efeito, o pensamento burguês inclina-se no sentido da aceitação dessa concepção.

Nossas dificuldades hão, pois, de ser buscadas em algum outro campo.

A abolição, contida na parte do Decreto que repugna a herança, está indissoluvelmente relacionada com sua parte criativa.

A propriedade, i.e. toda a propriedade que remanesce, posteriormente à morte de uma pessoa, há de permanecer intacta, há de ser registrada e, em vez de ser usada para a satisfação dos desejos e reivindicações individuais e arbitrários, deve ser usada para a segurança padronizada do povo necessitado e para o atendimento de propósitos do bem-estar geral, i.e. para a satisfação das necessidades do Estado.

Para isso, necessitamos :

 

-        criar organizações responsáveis por tal propriedade ;

-        instituir organizações, dedicadas ao exame de tal propriedade, capazes de determinar métodos

     satisfatórios para a satisfação urgente, temporária e definitiva das necessidades populares e, finalmente,

-        estabelecer uma organização apropriada à administração de uma tal propriedade.

 

Todo esse trabalho requer muito tempo de atividade.

Porém, acima de tudo, o Direito Social que é direcionado à restrição das tendências, aspirações e reclamos individualistas, posicionando-se em favor da sociedade, exige tempo e lutas, se é que há de ser concretizado.

Sendo assim, falando-se de modo geral, as lutas ocorrem não apenas em prol da criação de um novo Direito, senão também em favor da concretização das leis já existentes.

Ambas as lutas de lege ferenda e de lege lata são hoje existentes[12].

Freqüentemente, uma parte muito maior da luta é despendida na aplicação materializadora do Direito do que em sua criação.

Citemos como exemplo a Lei sobre a Limitação da Jornada de Trabalho ou a Lei de Proteção ao Trabalho Infantil.

Isso exige a enérgica e constante defesa da lei pelas pessoas interessadas.

Em particular, no que tange à Lei sobre a Abrogação da Herança, é imprescindível que as pessoas e a instituições interessadas, órgãos políticos e membros da comunidade defendam, regular e energicamente, as normas contidas nessa lei.

Devem não apenas dar-lhe cumprimento, senão ainda lutar contra intentos de outros sujeitos que pretendem esquivar-se à sua observação.

Apenas na luta, encontra-se e afirma-se o Direito.

Tanto a tarefa de abolição quanto a de criação, impulsionadas pela Revolução Proletária, requerem a prestação de trabalho prático e enérgico, com vistas à sua concretização.

Concomitantemente, a execução dessas tarefas constituem a materialização do programa de trabalho : trabalho prático-quotidiano de regeneração sócio-psicológica.

Os Decretos fornecem tão somente os estímulos aceleradores do movimento desfraldado nessa direção.

 

 

EDITORA DA ESCOLA DE AGITADORES E INSTRUTORES

“UNIVERSIDADE COMUNISTA REVOLUCIONÁRIA J. M. SVERDLOV”

PARA A FORMAÇÃO, ORGANIZAÇÃO E DIREÇÃO MARXISTA-REVOLUCIONÁRIA

DO PROLETARIADO E SEUS ALIADOS OPRIMIDOS

MOSCOU - SÃO PAULO - MUNIQUE – PARIS

 

 

 

 

 

 

 



[1] Cf. GOIKHBARG, ALEXANDER GRIGORIEVITCH. (tb. GOICHBARG, ALEXANDER GRIGOR’EVITCH) Proletarskaia Revolutsia i Grazhdanskoe Pravo (Revolução Proletária e Direito Civil), in : Proletarskaia Revolutsia i Pravo, Nr. 1, 1918, pp. 9‑20.

[2] Cf. HARMS, ANDREAS. Warenform und Rechtsform. Paschukanis’ Rechtstheorie (Forma Mercantil e Forma Jurídica. A Teoria do Direito de Paschukanis), in : Rote Ruhr Uni. hoert auf zu studieren – fang an zu denken ! (Universidade Vermelha do Vale do Ruhr. Parem de Estudar e Começem a Pensar !), http: // www. rote-ruhr- uni.org./2001/ index.shtml, 11 de Novembro de 2001.

[3] Cf. GOIKHBARG, ALEXANDER G. (tb. GOICHBARG, ALEXANDER G.) citado em  Anja Schmidt. Straßenkinder in Rußland. Hintergründe, Lebenssituation und Hilfsansätze am Beispiel von St. Petersburg (Moleques de Rua na Rússia. Panos de Fundo, Situaçao de Vida e Métodos de Auxílio a Exemplo de Sao Petersburgo), Trabalho de Diploma em Ciências Sociais, Faculdade Tecnológica de Potsdam, http:// www. fh-potsdam.de, Potsdam, 1998.

[4] Vide RENNER, KARL. Marxismus, Krieg und Internationale. Kritische Studien über offen Probleme des wissenschaftlichen und des praktischen Sozialismus in und nach dem Weltkrieg (Marxismo, Guerra e Internacional. Estudos Críticos sobre Problemas Abertos do Socialismo Científico e Prático na e durante a Guerra Mundial), Stuttgart : J. H. W. Dietz, 1917, pp. 7 e s.

[5] Vide IDEM, ibidem, pp. 20-26.

[6] Vide DUGUIT, LÉON. Les Transformations du Droit Public (As Transformações do Direito Público), Paris : Armand Colin, 1913, pp. 3 e s. 

[7] Cf. WILSON, WOODROW. Gosudarstvennyi Stroi Soedinennykh Shtatov (O Sistema Político dos EUA), tradução em língua russa, promovida pelo Governo do Congresso dos EUA, 1885, pp. 257‑258.

[8] Cf. POKROVSKY, Y. A. Osnovnye Problemy Grazhdanskoe Prava (Problemas Fundamentais de Direito Civil), Petersburgo : Pravo, 1916, pp. 11‑12.

[9] Vide IDEM. ibidem, pp. 14-15.

[10] Cf. IDEM. ibidem. pp. 265‑266.

[11] Vide a afimação de WERNER SOMBART, contida no livro de POKROVSKY: “Encontramos, em todos os lugares, uma forma peculiar de coerção psicológica : freqüentemente, o empresário não deseja seguir adiante, porém é obrigado a fazer isso. Os homens econômicos da Idade Contemporânea são vítimas da linha de produção de suas empresas. Não há espaço para suas virtudes pessoais, porque tornam-se subordinados às empresas. A velocidade da empresa determina sua própria velocidade. Não podem dar-se ao luxo de serem preguiçosos. São tais como o trabalhador que opera com uma máquina em perpétuo movimento  não o pode ser.” Cf. IDEM. ibidem, pp. 275‑76.

[12] Vide RENNER, KARL. Marxismus, Krieg und Internationale. Kritische Studien über offen Probleme des wissenschaftlichen und des praktischen Sozialismus in und nach dem Weltkrieg (Marxismo, Guerra e Internacional. Estudos Críticos sobre Problemas Abertos do Socialismo Científico e Prático na e durante a Guerra Mundial), Stuttgart : J. H. W. Dietz, 1917, pp. 7 e s.