PRODUÇÕES LITERÁRIAS DEDICADAS À FORMAÇÃO
DE REVOLUCIONÁRIOS MARXISTAS QUE ATUAM NO DOMÍNIO DO
DIREITO, DO ESTADO E DA JUSTIÇA DE CLASSE
PEQUENOS ENSAIOS SOBRE MARXISMO E DIREITO, SOCIEDADE E ESTADO NA REVOLUÇÃO
ANTI-NIETZSCHE,
CONTRA O VOLUNTARISMO POSITIVISTA
DA FILOSOFIA DO SUPER-HOMEM NO ESTADO, DO DIREITO E DA MORAL
LÉON D. TROTSKY[1]
Concepção e
Organização, Compilação e Tradução
Emil
Asturig von München Julho
de 2005
Para Palestras e
Cursos sobre o Tema em Destaque
Contatar emilvonmuenchen@web.de
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Nesses últimos tempos, nossos
jornais e revistas tornaram-se inacreditavelmente
respeitosos “em presença da morte”. Há
literatos dos quais nada exigimos e nada esperamos, pela simples razão de que
nada têm a extrair desse tema : quando lhes é necessário, falta-lhes até mesmo
uma folha de videira para esconder sua própria nudez. É com razão que seus cantos de louvores e
suas críticas conseguem-nos deixar indiferentes. Sendo eles mesmos cadáveres,
enterram seus próprios cadáveres.
Não é deles de que se trata,
mas sim desses homens de letras dos quais podemos esperar uma atitude
perfeitamente sã perante os fenômenos literários e sociais, mesmo que estejam
acobertados pelo véu “conciliador” da
morte.
Recentemente a Rússia enterrou G. A. Djanshiev e V. S. Soloviov e a Europa, W. Liebknecht e F.
Nietzsche. Evidentemente, seria inteiramente grosseiro “pisotear um cadáver”, para
dizê-lo com N. K. Mikhailovsky.
[2][3][4][5]
Porém, demonstra-se talvez
mais respeito àquele que elaborou um sistema de pensamento, colocando-o no
lugar que lhe compete, em conformidade com sua fisionomia literária e social,
do que entoando os cantos de louvores imoderados de seus inimigos. É pouco
provável que W. Liebknecht
tivesse ficado satisfeito com os elogios, publicados por “Moskovskie Viedomosti (As Novas de Moscou)” ou por “Novoie Vremia (Novo Tempo)”, da
mesma forma que Nietzsche não
teria apreciado os que foram estampados por “Vortwärts (Avante)” ou, por exemplo, por “Russkoie Bogatstvo (A Riqueza
Russa). Recordemos que o escandinavo Kiland afirma – e nisso
acreditamos bem espontaneamente – que todos os elogios da imprensa radical não
lhe propiciaram tanto prazer e satisfação moral quanto as injúrias venenosas,
propaladas pelos jornalistas reacionários. [6][7][8][9][10]
Se for necessário falar sobre “o bem” dos mortos ou nada dizer
sobre o tema, é preferível manter, nesse caso, um silêncio eloqüente a
obscurecer o significado social do desaparecido, mediante uma torrente de
louvores untuosos, desprovidos de sentido algum. Podemos e devemos ter uma
atitude imparcial para com as pessoas de nossos inimigos sociais,
conferindo-lhes – se é o caso – o tributo que é devido à sua sinceridade e às
suas diversas virtudes individuais.
Porém, um inimigo – seja ele
sincero ou desonesto, seja ele vivo ou morto – permanece sendo um inimigo,
máxime tratando-se de um escritor, o qual vive em suas obras, mesmo depois de
sua morte. Calando-nos a seu respeito, cometemos um crime social : “Não
se opor ativamente a um determinado célebre pensador russo, significa apoiá-lo
passivamente”. Disso não se deve esquecer, mesmo diante da tragédia da morte.
Essas reflexões incitaram-nos
a consagrar algumas palavras ao filósofo Friedrich
Nietzsche, falecido recentemente, e, em particular, aos aspectos de sua
doutrina, relacionados com suas concepções e julgamentos sobre a sociedade,
suas simpatias e antipatias, sua crítica social e seu ideal de sociedade.
Para muitas pessoas, a
personalidade e a vida de Nietzsche explicam
sua filosofia.
Tendo sido um homem
excepcional, não podia acomodar-se passivamente à situação, a que a enfermidade
o havia submetido. Seu abandono forçado
da vida pública havia de impulsioná-lo à elaboração de uma teoria que
forneceu-lhe não apenas a possibilidade de viver nessas condições, senão ainda
conferiu-lhe um sentido a essa sua vida. O culto do sofrimento foi a
conseqüência de seu mal.
“Vocês
desejam aniquilar o sofrimento tanto quanto possível e nós, ao que parece,
queremos aumentá-lo, torná-lo mais forte ainda do que já o era ... É possível que
vocês ignorem que o culto do sofrimento, do grande sofrimento, conduziu o homem
até as cumeeiras mais elevadas ?”[11]
“Nessas
palavras”, afirma Alois Riehl,
“escutamos a voz de um doente que transformou o sofrimento em meio de educação
da vontade.”[12]
Porém, o culto do sofrimento não constitui
senão uma parte – e não a mais característica – do sistema filosófico de Nietzsche,
parte essa que foi, de modo imponderado, colocada no primeiro plano por
alguns críticos e exegetas de nossa filosofia.
O eixo social de seu sistema (se é que
se permite que ofendamos os escritos de Nietzsche com um termo tão vulgar
para os olhos de seu autor quanto o é o termo « sistema ») é o reconhecimento do privilégio concedido a
alguns “eleitos” de gozar livremente de todos os bens de existência : esses
felizes eleitos estão dispensados não só do trabalho produtivo, senão também do
“trabalho” de dominação.
“Cabe a
vocês acreditar e servir (EvM.: Dienstbarkeit : servitude) ! - esse é o destino
que Zaratustra oferece, em sua sociedade
ideal aos mortais comuns, cujo número é excessivamente grande (EvM.: den
Vielzuvielen : os sobremaneira numerosos).”
Acima destes, mantém-se a casta (sic) dos
ordenadores, dos guardiães da lei, dos defensores da ordem, dos guerreiros.
Na cumeeira, encontra-se o rei “enquanto
a imagem mais elevada do guerreiro, do juiz e do guardião da lei.”
Comparados, porém, aos “super-homens” são todos
estes auxiliares de serviço : surgem empregados a serviço das “tarefas
grosseiras de dominação”.
Servem para transmitir à massa dos escravos “as
vontades dos legisladores”.
Enfim, a casta mais elevada é aquela dos “senhores”,
dos “criadores de valores”, dos “legisladores”, dos “super-homens”.
É ela que inspira a atividade de todo o
organismo social.
Desempenhará sobre a terra o mesmo papel que Deus,
segundo a fé cristã, desempenha no universo ...
Assim, mesmo o “trabalho” de direção
incumbe não aos seres superiores, senão tão somente aos mais elevados, entre os
inferiores.
No que respeita aos “eleitos”, os “super-homens”,
liberados de todas as obrigações sociais e morais, conduzem uma vida
repleta de aventuras, de alegria e felicidade.
“A partir do
momento em que vivo”, afirma Nietzsche,
“quero que a vida extravase, que seja
dentro e fora de mim tão pródiga, tão exuberante quanto possível.”
Trata-se da mais elevada questão do culto do
sofrimento - subentendendo-se o sofrimento físico -, o qual todas as devoções
dos “escravos”
não podem, na maioria das vezes, poupar ao “super-homem”.
Em face dos sofrimentos relacionados com os
desregramentos sociais, os “super-homens” devem, sem margem de
dúvida, ser absolutamente livres.
Se subsiste uma tarefa obrigatória para o “super-homem”
(e ainda, tão somente para o super-homem em “Werden (EVM: para aquele em processo de se
tornar super-homem), no curso do processo de sua transformação), é a do
aperfeiçoamento de si mesmo, entendendo-se por isso a cuidadosa eliminação de
tudo aquilo que possa fazer lembrar da “piedade”.
O “super-homem” arruina-se, caso se
deixe dominar por sentimentos de piedade, arrependimento, simpatia.
Em conformidade com a antiga “tábua
de valores”, a piedade é uma virtude.
Nietzsche a considera, porém,
como a maior tentação e o maior horrendo dos perigos.
O “último pecado” para Zaratustra,
o mais terrível dos males, é a piedade.
Se fraquejar diante das infelicidades, se
ficar tocado com a visão da aflição, seu destino estará determinado : será
vencido, seu nome há de ser eliminado das listas da casta dos “senhores”.
“Por todos
os lados,” diz Zaratustra,
“ressoa a voz daqueles que pregam
a morte e a terra está cheia de pessoas às quais é indispensável pregar a morte
– ou a “vida eterna”-.“, acrescenta,
com franco cinismo.
Para mim,
tudo isso é indiferente, desde que desapareçam (EvM.: dahinfahren –
distanciem-se) o mais rapidamente possível.”
Antes de chegar à elaboração de seu ideal
positivo, Nietzsche teve de submeter à crítica as normas sociais
dominantes, no domínio do Estado, do Direito e, sobretudo, da moral.
Julgou útil “reexaminar todos os valores”.
Aparentemente, que radicalismo sem limites,
que audácia do pensamento demolidor !
“Até Nietzsche,” afirma Alois
Riehl, “ninguém havia ainda
analisado os valores morais, ninguém havia criticado os princípios morais.”
A opinião de Riehl não é isolada, o
que não impede – digamos de passagem – que seja perfeitamente superficial.
Por mais de uma vez, a humanidade sentiu a
necessidade da revisão fundamental de sua ética e inúmeras pessoas realizaram
essa obra, de maneira mais radical e mais profunda do que Friedrich Nietzsche.
Se há alguma coisa de original em seu
sistema, não é o “reexame” em si
mesmo, senão, antes de tudo, o ponto de vista que encontra-se em sua origem : a
vontade de poder, situada na base das aspirações, das exigências, dos desejos
do « super-homem » :
Eis aí o critério de apreciação do passado,
do presente, do futuro.
Porém, até mesmo isso possui duvidosa
originalidade.
Nietzsche ele próprio escreve
que, em suas pesquisas sobre as morais que, no passado, dominaram e,
presentemente, dominam, encontrou duas tendências fundamentais : a
moral dos senhores e a moral dos escravos.
A “moral dos senhores” serve de base à
conduta do “super-homem”.
Com efeito, esse duplo caráter da moral
percorre, com um fio vermelho, a história da humanidade e não foi Nietzsche
que descobriu isso.
“Cabe a
vocês acreditar e servir”, afirma – tal
como acabamos de recordar, Zaratustra, ao endereçar-se àqueles
cujo numéro é sobremaneira grande.
A casta superior é aquela dos “senhores”,
dos “criadores
de valores”.
Para os senhores e apenas para eles foi
criada a moral do super-homem.
Que grande novidade, não é verdade ?
Mesmo nossos proprietários do tempo do
servilismo que, em verdade, pouco conheciam do tema aqui tratado, sabiam que
existem pessoas que possuem sangue azul e outros que não, de modo que aquilo
que a uns é necessário é a outros severamente condenável.[13]
Assim, sabiam precisamente – segundo as
palavras do genial satirista Saltykov-Shchedrin :
“... que não
era conveniente para um nobre ocupar-se com o comércio, possuir profissão,
assoar-se sem o auxílio de um lenço etc., mas que lhe não era inconveniente
apostar nas cartas uma vila inteira ou de trocar a jovem Arichka por um cão de
caça ; que não convinha a um camponês barbear-se, beber chá e vestir botas, mas
que lhe não era inconveniente percorrer uma centena de quilômetros a pé, por
causa de uma carta de Matriona Ivanovna à Avdotia Vassilievna, em que a
primeira desejava uma feliz festa à sua amiga, comunicando-lhe que, graças a
Deus, estava passando bem.”[14]
Um dos críticos mais brandos de Nietzsche
reconhecia que :
“Se
substrairmos aos pensamentos de Nietzsche a forma paradoxal ou poética, em que foram
encarnados por meio de sua pena, revelam-se aqueles menos novidadeiros do que à
primeira vista poderia parecer.”[15]
A filosofia de Nietzsche não é tão nova como de
início poderia dar a aparentar, porém haveria de ser original no aspecto que
seria necessário para a explicar, i.e. para referir-se exclusivamente à
individualidade complexa de seu autor :
Assim sendo, como explicar que, em um tempo tão exíguo,
adquiriu uma quantidade tão grande de adeptos ?
Como explicar que “as idéias de Nietzsche” –segundo a
expressão de Alois Riehl – “tornaram-se para muitas pessoas uma
profissão de fé ?”
Devemos constatar que o sol sob o qual medrou a filosofia
de Nietzsche
não possui nada de excepcional.
Há amplos grupos de pessoas, colocadas por condições de
caráter social em uma tal situação, que a filosofia de Nietzsche lhes
corresponde como nenhuma outra.
Em nossa literatura, já compararam, por diversas vezes, Maksim
Gorky a Friedrich Nietzsche.
Em um primeiro momento, uma tal comparação pode parecer
estranha : o que existe em comum entre o cantor dos humilhados e dos ofendidos,
dos últimos dos últimos, e o apóstolo do “super-homem” ?
Evidentemente, é enorme a diferença, ainda que a relação
entre ambos sejam muito mais estreitas do que uma primeira impressão poderia
permitir aparentar.
Os heróis de Gorky não são figuras humilhadas e
ofendidas, não são os últimos entre os últimos, devido às próprias intenções e,
em parte, à própria maneira consoante a qual seu criador os apresenta.[16]
São “super-homens”, à sua maneira.
Muitos e mesmo a maioria deles acham-se em uma situação
que não resulta absolutamente de sua derrota, em meio à cruel luta social que
os teria feito sair do justo caminho.
Não. Trata-se de uma escolha que fizeram, nomeadamente a
de não se acomodarem com a estreiteza da organização social contemporânea,
provida de seu Direito, de sua moral etc., bem como a de “saírem da sociedade
...
É isso o que diz o próprio Gorky.
Reservamo-lhe a responsabilidade de seus propósitos :
nessa temática, permanecemos sustentando nossas próprias posições.
Na condição de ideólogo de um grupo social determinado, Gorky
não podia raciocinar de modo diverso.
Todo e qualquer indivíduo, vinculado por laços materiais
e ideológicos a um determinado grupo, não pode considerar esse último como um
reservatório de detritos quaisquer. Deve encontrar um sentido para a existência
de seu grupo.
As camadas sociais fundamentais podem facilmente
encontrar um tal sentido, à medida que se apóiem sobre uma análise, ainda que
superficial, da sociedade contemporânea, dotada de seu sistema de produção,
cujos estratos constituem elementos indispensáveis. Tais camadas sociais são a
burguesia, o proletariado, os « trabalhadores intelectuais » ...
O mesmo não acontece, porém, com o grupo de que Gorky
se faz exaltador e apologista.
Vivendo fora da sociedade, mesmo que em seu território e
às suas expensas, o grupo de Gorky busca a justificação de sua
existência na consciência de sua superioridade sobre os membros da sociedade
organizada.
Tudo dá a crer que os quadros dessa sociedade são por
demais estreitos para os membros do grupo em tela, dotados, por sua natureza,
de particularidades excepcionais, mais ou menos “sobre-humanas”.
Aqui, estamos diante do mesmo gênero de protesto contra
as normas da sociedade contemporânea que encontramos descritos pela pena de Nietzsche.
[17]
Nietzsche tornou-se o ideólogo de um grupo vivo que age feito
um rapace, às custas da sociedade, porém, em condições mais felizes do que as
vivenciadas pelo miséravel lumpenproletário : trata-se do « parasitenproletariat
(proletariado parasitário), de calibre superior.
A composição desse grupo na sociedade contemporânea é
bastante heteróclita e fluída, dadas a extrema complexidade e a diversidade das
relações, havidas no interior do regime burguês.
Mas, o que liga todos os membros dessa ordem desigual da
cavalaria burguesa é a pilhagem dos bens de consumo, efetuada em uma imensa
escala, ,de modo declarado e, ao mesmo tempo (de modo geral, evidentemente),
impune, sem nenhuma – devemos destacar – sem absolutamente nenhuma participação
metódica no processo organizado de produção e de distribuição.
Na qualidade de representante do tipo que acabamos de
esboçar, podemos citar o herói Saccar do romance de Émile
Zola, intitulado “L’Argent (EvM.: O Dinheiro)”.
Obviamente, todos os aventureiros da finança não dispõem
a amplidão do célebre herói de Zola.
Possuimos um exemplo de menor transcendência na figura do
herói do romance (maldoso) de Rudolf Stratz, intitulado “Die Letzte
Wahl (EvM.: A Última Escolha)”, cuja tradução encontra-se disponível
nos anais de “Russkoie Bogatstvo (A Riqueza da Rússia) : trata-se aqui de um
conde que joga na bolsa.
Porém, a diferença de que se trata aqui é quantitativa e
qualitativa.
Em geral, há tantos personagens desse gênero na
literatura contemporânea que não saberíamos em quem nos deter.
Não se poderia deduzir de tudo isso que ser nietzschiano
significa ser um aventureiro da finança, um agiota rapace ...
Com efeito, a burguesia difundiu seu individualismo para
além dos limites de sua própria classe, graças aos laços orgânicos da
sociedade.
Pode-se assim dizer, no que respeita aos numerosos
elementos ideológicos do grupo do proletariado parasitário,
cujos membros em sua totalidade acham-se distantes de ser nietzschianos conscientes
o seguinte : provavelmente, a maioria dentre eles ignora até mesmo a existência
de Nietzsche,
visto que concentram sua atividade intelectual em toda uma outra esfera.
Inversamente, cada um deles é nietzschiano, “mesmo contra sua própria
vontade”.
Não é desnecessario destacar, contudo, que certos
ideólogos puramente burgueses desenvolveram, por mais de uma vez, idéias,
situadas, em muitos sentidos, bem próximas das de Nietzsche.
Por exemplo : um dos pensadores burgueses mais renomados,
o oráculo britânico, Herbert Spencer.[18]
Em Spencer, encontramos o mesmo
desprezo pelas massas - ainda que com mais moderação -, o mesmo elogio da luta
enquanto instrumento do progresso, o mesmo protesto contra o auxílio aos fracos
que pereceriam supostamente por sua própria culpa.
“Ao invés de sustentar a
lei fundamental da cooperação voluntária (!!), consistente em que cada vantagem
deve ser paga vom o dinheiro adquirido pelo trabalho produtivo”, declara o enciclopedista
burguês, “eles (entenda-se o que se esconde por detrás desses “eles”)
esforçam-se por entregar uma grande quantidade dos bens acessíveis a todos,
independentemente dos esforços prestados pela sua criação : as bibliotecas
gratuitas, os museus gratuitos etc., devem ser organizados às custas da
sociedade e tornados acessíveis a cada um, independentemente dos seus méritos.
Assim, as economias mais
meritórias devem ser tomadas pelos recebedores e servem para fornecer certas
comodidades aos que menos merecem, aos que nada economizam.”
Recordemos, aqui, a polêmica que N. K. Mikhailovsky levantou
contra Spencer, porque este não queria que se concedessem remédios,
nos casos decorrentes de conseqüências naturais da miséria e do vício.
Comparemos essa exigência com o discurso já conhecido de Zaratustra
:
“... a terra
está cheia de pessoas às quais é indispensável pregar a morte”.
Não se deve as ajudar, senão empurrá-las, para que caiam, o mais
rapidamente possível : “das ist gross, das gehört zur Grasse (EvM.:
Isso é grande, pertence ao sublime)”.
Porém, aqui se encerra a semelhança – aliás, muito formal
– entre Spencer e Nietzsche.
Spencer não quer absolutamente dispensar a burguesia do “trabalho”
de dominação e o tipo superior não é para Spencer o homem
desregrado.
A burguesia,
enquanto classe, e o regime capitalista, enquanto sistema histórico determinado
de relações de produção, constituem dois fenômenos, impensáveis um sem o
outro.
Spencer, na qualidade de representante ideológico da
burguesia não pode contestar as normas burguesas.
Se protesta contra o auxílio aos fracos, é justamente
porque teme a predominância desses fracos sobre a ordem social, tão cara ao seu
coração e, no mesmo sentido, sobre o seu gabinete, bem tranqüilo e protegido
pela ordem burguesa.
Esse não é, porém, o caso de Nietzsche.
Nietzsche contesta todas as normas da sociedade que o
circunda.
Todas as virtudes dos filinistinos causam-lhe
repugnância.
Para Nietzsche, o burguês médio é um ser
mesquinho, no mesmo sentido que também o é o proletário.
E isso é bem natural que assim seja.
O burguês médio é um indivíduo responsável.
Nutre-se lentamente, em conformidade com o sistema,
fazendo-se acompanhar de sentenças comoventes, sermões moralisadores,
declarações sentimentais sobre a missão sagrada do trabalho duro.
Um “super-homem” burguês não age
absolutamente desse modo : apreende, toma, pilha, come todas as coisas até aos
ossos, acrescentando as seguintes palavras : “sem comentários”.[19]
A burguesia “sã” não podia responder à atitude negativa
de Nietzsche
senão através de uma atitude igualmente negativa.
Sabemos, por exemplo, o que de Nietzsche pensava Max
Nordau, um dos representantes do burguês médio, mais grandiloqüente do
que profundo, invejoso até à mesquinharia, esbanjador de expressões enérgicas.[20]
Nordau escreve o seguinte :
“Era necessário surgir
um teórico para a imundíce sistemática e para os dejetos da humanidade,
exaltados pelo talento literário e artístico dos parnasianos e estéticos, até a
síntese do crime, da impureza e da enfermidade, conduzidos às nudezes pelo
demonismo e pela decadência, visando à criação de um homem livre e inteiro, à
la Ibsen.
Foi Nietzsche que, pela
primeira vez, proclamou essa teoria ou que pretende tê-la proclamado.” (In:
Degeneração, 1892.)
Nordau não é mais indulgente com os discípulos de Nietzsche.
Segundo suas próprias palavras :
“A declaração de
princípio segundo a qual nada é verdadeiro e tudo é permitido, que emana de um sábio
moralmente alienado, encontrou um imenso eco junto àqueles que, por decorrência
de uma deficiência moral, alimentam neles mesmos um ódio visceral à ordem
social.
Em particular, ante essa
grande descoberta, muito se alegra o proletariado
intelectual das grandes cidades
(In: ibidem, 1892.)
Aqueles que constroem sua
prosperidade sobre a queda de um ministro, a morte de homem de Estado, uma
chantagem jornalística, um escândalo político ou, então, baseados
na "baixa" e na "alta", não podem, naturalmente,
esperar serem encorajados pelos pequenos burgueses virtuosos e seus
ideólogos.
No romance já citado de Rudolf Stratz, encontramos a
mesma atitude que Nordau possui
em face de Nietzsche, a
mesma atitude dos heróis "virtuosos" (e, pelo intermediário destes,
da parte também do autor que é, ele próprio, um filistino) em face do conde
cínico que, fundando-se, aparentemente, na idéia de que "nada é
verdadeiro e tudo é permitido", considera os berlinenses
como ovelhas, destinadas a serem nobremente tosquiadas. E a atitude dos
berlinenses virtuosos em face do conde não virtuoso é bem compreensível.
A sociedade burguesa elaborou certos códigos
morais, jurídicos etc. cuja transgressão por parte do berlinense virtuoso
é estritamente proibida.
Uma vez que explora os outros, a
burguesia não gosta que a explorem.
Ora, os Übermenschen
(os super-homens) de todos os gêneros
enriquecem-se sacando dos fundos burgueses da "mais-valia", i.e.
vivem diretamente
às expensas da burguesia. É evidente que não se podem colocar
sob a proteção das leis éticas desta. Devem, por conseqüência, criar princípios
morais que correspondam ao seu próprio modo de vida.
Até os últimos tempos, essa categoria
superior de parasitenprolétariat
(proletariado parasitário) não possuía nenhuma ideologia global
que lhe conferisse a possibilidade de justificar os motivos
"superiores" de suas maquinações rapaces.
A justificação da rapacidade da burguesia
industrial "sã" através de seus méritos históricos, suas capidades
organizativas, sem as quais parece que a produção social não poderia
existir, não convém, evidentemente, aos cavaleiros da
"alta" e da "baixa", aos aventureiros da finança, aos "super-homens" da
bolsa, aos maîtres chanteurs sans
scrupule (mestres de cantoria inescrupulosos) da
política e do jornalismo, em suma, a toda essa massa do proletariado
parasitário que se enredou solidamente no organismo burguês e que, de
uma forma ou de outra, vive - e, em geral, não vive mal - à custa da sociedade,
sem nada lhe oferecer em troca.[21]
Representantes individuais desse grupo
contentavam-se com a consciência de sua superioridade intelectual em relação
àqueles que se deixavam "tosquiar" (e como fazê-lo de modo diverso
!). Porém, o grupo em realce, por demais numeroso e sempre crescente, tinha necessidade
de uma teoria que lhes
outorgasse o Direito de "ousar", dada
a sua superioridade intelectual.
Esperava por seu apóstolo e o encontrou na
pessoa de Nietzsche.
Com sua sinceridade cínica, seu grande
talento, Nietzsche lhes apareceu, proclamando sua "moral dos senhores", seu "tudo é permitido", conduzindo-os
à sua nudez ...
Nietzsche pontifica :
“A vida de
um ser nobre é uma cadeia ininterrupta de aventuras repletas de perigo. A
felicidade não o interessa, mas sim a excitação, proporcionada pelo
jogo."
Encontrando-se em uma instável
situação social, um dia lá no ápice da prosperidade, estando arriscada,
porém, de ser colocada, no dia subseqüente, no banco dos acusados,
essa ralé perniciosa da sociedade burguesa havia de encontrar as idéias de
Nietzsche acerca de uma
vida repleta de aventuras, mais apropriadas do aquelas de um qualquer
desses filistinos como Samuel
Smiles que prega
uma moderação e uma pontualidade pequeno-burguesas vulgares,
tornando superficiais todas as existências (Smiles é o padrinho da
pequena-burguesia que começa a se desenvolver).[22]
Essa ralé havia de rejeitar também as teses
da moral utilitária, fundada sobre os princípios severamente
moralistas, pontificados por Jeremy Bentham,
o chefe espiritual da grande burguesia britânica "sã", escrupulosa e
honesta (no sentido comercial do termo, evidentemente).[23]
Depois de Nietzsche, a humanidade elevar-se-á até ao "super-homem", quando rejeitará a
atual hierarquia de valores e, sobretudo, o ideal cristão e
democrático.
A sociedade burguesa - ao menos em palavras -
respeita os princípios democráticos. Nietzsche,
ele próprio, como vimos, divide a moral em moral dos senhores e moral dos escravos.
Ao ouvir a palavra "democracia", bolhas
de saliva escumosa sobem-lhe aos lábios. Odeia inteiramente o
democrata, entusiasmado pelo igualitarismo que se esforça por transformar
o homem em um animal desdenhável de rebanho. Mal seria para o "super-homem", se os escravos
conscientizaram-se de sua moral, se a sociedade dela julgar indigno o
consagrar-se ao lento trabalho produtivo.
Eis porque Nietzsche, munido do cinismo declarado que o
caracteriza, escreve, em uma carta, que a popularização de sua doutrina :
"... apresenta, provavelmente, um
risco (Wagnis) considerável não por causa daquele que ousa agir em
conformidade com essa doutrina, mas sim por causa daqueles a quem ele dela
fala ... Minha consolação", acrescenta Nietzsche, "é o fato de
que não existem orelhas para minhas grandes novidades."
Do perigo referido decorre o duplo caráter da
moral.
Para a inteira humanidade, não apenas
não é necessário seguir a "moral
dos senhores", criada para os senhores e tão somente
para estes, senão, pelo contrário, exige-se de todas as pessoas comuns,
os não-super-homens
que "executem as tarefas comuns, em fileiras cerradas", em
obediência aos que nasceram para levarem uma vida superior. Destes
se exige que encontrem a felicidade no cumprimento consciencioso das
obrigações que lhe são impostas para a existência da sociedade, na cumeeira da
qual se encontra o ínfimo número de "super-homens".
Pretender que as "castas" inferiores
encontrem uma satisfação moral na execução do serviço prestado aos grandes
não se trata também - como vocês podem ver - de algo particularmente novo
...
Ainda que freqüentemente ocorra de os
membros desse brilhante proletariado burguês encontrarem-se nas alavancas de
direção, não detêm, em geral, o poder governamental na sociedade
burguesa. Este lhe cai entre as mãos, após um tipo de mal-entendido
social e seu governo se encerra perpassado por todos os modos de
enomes escândalos, tais quais aqueles no estilo do Processo Panamá, do Caso
Dreyfus, do Caso Crispi etc.[24][25][26]
Não se apoderam do poder, com o objetivo de reorganizar
a sociedade - a qual apreciam de modo
extremamente negativo-, senão simplesmente para gozar das riquezas
públicas. Também nesse ponto, Nietzsche
poderia, consegüintemente, encontrar um eco favorável da parte
deles, pois dispensa seus "super-homens" do
trabalho de direção.
Em sua atitude negativa, o lumpenproletariat,
esse proletariado parasitário de hierarquia inferior, é mais conseqüente
que os admiradores de Nietzsche, uma
vez que rejeita a sociedade por inteiro. Considera por demais estreitos
não apenas os quadros espirituais dessa sociedade, senão também sua organização
material.
Ao rejeitarem as normas de Direito e éticas
da sociedade burguesa, os nietzschianos,
eles mesmos, não possuem contra as comodidades, criadas pela sua organização material.
O "super-homem" de
Nietzsche não se
encontra se dispõe absolutamente a renunciar aos conhecimentos, às vantagens e
às novas forças que a humanidade adquiriu, ao longo de um caminho tão longo e
difícil.
Pelo contrário, toda a concepção de mundo (se
aqui podemos utilizar esse termo), toda a filosofia dos nietzschianos serve
para justificar o usufruto de bens, de cuja criação não tomam
parte em lugar algum, ainda que fosse de modo
formal.
Nietzsche pretende que
cada um, antes de ser enquadrado entre o número dos eleitos, responda à
seguinte questão :
"Trata-se
de um daqueles que possuem o Direito de escapar à submissão ?"
Porém, Nietzsche
não pode fornecer um critério objetivo para a resposta dessa questão :
a resposta positiva ou negativa depende, pois, da boa vontade e dos
talentos de rapacidade de cada um.
O sistema filosófico de Nietzsche - tal como ele
mesmo indicou por mais de uma vez - abarca não poucas
contradições.
Eis alguns exemplos : Nietzsche rejeita a
moral contemporânea, pirncipalmente, porém, aqueles seus aspectos - a
piedade, a caridade etc. - que disciplinam (apenas na forma, é
verdade) a atitude em face daqueles "cujo número
é demasiadamente grande". Inversamente, os "super-homens", em suas relações recíprocas, não estão
liberados de objeções morais.
Quando Nietzsche
fala dessas relações, não receia empregar palavras como bem e mal, e até mesmo respeito,
reconhecimento.
Embora tenha "reexaminado todos os valores",
esse revolucionário da moral considera, com muito respeito, as tradições das classes privilegiadas e
se orgulha de descender dos Condes
Nietzky, o que é, porém,
extremamente duvidoso.
Esse famoso individualista alimenta as mais tenras simpatias pelo Ancien Régime (Antigo Regime Francês), no qual
"a individualidade" possuía muito pouco lugar.
O aristocrata, o representante das simpatias
sociais bem determinadas, sempre dominou em Nietzsche o individualista, o enunciador de um princípio
abstrato.
Dadas essas contradições, não é
surpreendente que elementos sociais perfeitamente opostos possam se
colocar sob a bandeira do nietzchismo.
"Esquecendo-se de seu parentesco", um
aventureiro pode ignorar inteiramente o respeito nietzschiano às tradições
aristocráticas. Não toma, em Nietzsche, o
que corresponde à sua posição social. A divisa "nada há de verdadeiro, tudo é permitido" corresponde
aos seus hábitos de vida, tal como nenhuma outra semelhante. Ao
extrair das obras de Nietzsche tudo
o aquilo que pode servir ao desenvolvimento do pensamento, contido nesse
aforismo, pode-se construir uma teoria bastante bem torneada, apta, com efeito,
a servir de folha de parreira aos valentes heróis do Panamá francês ou ... da epopéia patriótica de Mamontov.[27]
Porém, ao lado desse grupo que é inteiramente
o produto da sociedade burguesa, encontramos, entre os admiradores de Nietzsche, representantes de uma
formação histórica efetivamente diversa, pessoas cuja a genealogia tem
origem remota. Não falamos daqueles que - tal como o conde do romance de Schtratz - modificaram suas
virtudes cavalheirescas em troca de ações na bolsa. Essas pessoas
já não pertencem mais à sua ordem. Desclassificados, são também pouco
atentos às "nobres tradições" de um plebeu qualquer.
Referimo-nos àqueles que se agarram às ruínas
de quem, outrora, colocava-os no alto da escala social. Banidos do
circuito social, possuem razões particulares para estarem
insatisfeitos com o sistema social contemporâneo, suas tendências democráticas,
suas leis, sua
moral.
Tomemos, exemplificativamente, Gabriele D'Annunzio, o célebre poeta
italiano, aristocrata por nascimento e convicções.[28]
Não sabemos se D'Annunzio se reivindica nietzschiano e, de um modo
geral, em que medida as idéias de Nietzsche
encontram-se na origem de suas concepções. Porém, para nós, isso
não possui a menor importância. O que aqui importa é o fato de
que as idéias ultra-aristocráticas de D'Annunzio
são quase idênticas a muitas daquelas de
Nietzsche. Tal como convém a um aristocrata, D'Annunzio odeia a democracia
burguesa :
"Em
Roma", diz ele, "vi as mais vergonhosas profanações que jamais foram
perpetradas contra as coisas sagradas.Tal como uma cloaca em
transbordamento, uma torrente de baixos instintos invadiu as praças e as ruas
... Descendendo de uma linhagem de guerreiros, o rei dá um exemplo de paciência
surpreendente, no cumprimento das vulgares e aborrecidas obrigações que
lhe prescreve um decreto plebeu."
Dirigindo-se aos poetas, diz-lhes o
seguinte :
"Em que
consiste, doravante, a nossa missão ? Devemos fazer o elogio do sufrágio
universal, devemos apressar, através de nossos hexâmetros de curto respiro, a
derrubada da realeza, o advento da república, a tomada do poder pela plebe ?
Por uma soma razoável, poderíamos convencer os incrédulos de que na massa
encontra-se a força, o Direito, a sabedoria e a iluminação."
Mas, essa não é a tarefa dos poetas :
"Marquem
os frontes insensatos daqueles que quiseram tornar todas as cabeças humanas
uniformes, parecidas com pregos, debaixo do martelo do trabalhador. Que vosso
riso indômito suba até aos céus, quando tiverdes de ouvir, nas
reuniões, a balbúrdia dos vaqueiros do grande animal que é o
populacho."
Dirigindo-se às ruínas impotentes do passado
aristocrático, escreve :
"Esperai
e preparai os acontecimentos. Não vos será difícil de reconduzir
o gado à obediência. As pessoas do povo permanecerão sempre sendo
escravos, porque neles vive a necessidade congênita de estender as mãos em
direção das correntes. Recordai-vos que a alma da massa não conhece senão
o pânico."
Inteiramente de acordo com Nietzsche, D'Annunzio julga indispensável o
reexame de todos os valores que haverá de surgir :
"O novo
César romano, predestinado à dominação por natureza, virá aniquilar ou
transformar todos os valores admitidos desde há muito tempo por todos os tipos
de doutrinas. Será capaz de construir e de arremessar em direção do futuro esse
ponto ideal de graça, no qual as espécies privilegiadas poderão, enfim, superar
o precipício que as separa ainda aparentemente da dominação ardentemente
desejada. Esse novo César romano será um aristocrata, belo, forte, cruel,
apaixonado." (as citações de D'Annunzio
são aqui apresentadas em conformidade com o artigo de Ukrainka, contido em "Jizn
(A Vida)", Nr. 7. 1900).
Dotado de um comportamento típido dos brutos,
esse ser distingue-se um pouco do "super-homem" de Nietzsche. Com efeito, segundo a expressão de Nietzsche :
"A
aristocracia bruta e rapaz atribui o seu valor ao homem e a cada
coisa : o que lhe é útil e nocivo, é bom ou mal por si mesmo ..."
Já é hora de concluirmos, tanto mais
porque nosso estudo prolongou-se além do que havia sido previsto.
Evidentemente, não aspiramos a uma crítica exaustiva das fantásticas
criações de Friedrich Nietzsche,
filósofo na poesia e poeta na filosofia. Sê-lo-ia impossível, no quadro de
alguns artigos jornalísticos.
Queremos apenas, em largos traços, descrever
a base social que se demonstrou capaz de engendrar o nietzschismo, não enquanto sistema
filosófico, contido em certo número de volumes e, em grande parte, explicável
pelas particularidades individuais de seu autor, senão enquanto corrente social que suscita uma
atenção particular, na medida em que se trata de uma corrente da atualidade.
Pareceu-nos tanto mais
imprescindível reconduzir o nietzschismo
das alturas literárias e filosóficas às bases puramente terrestres das
relações sociais, porque uma atitude estritamente ideológica, condicionada
pelas reações subjetivas de simpatia ou de antipatia para com as teses
morais ou de outro gênero, criadas por Nietzsche, não nos conduz a nada
de bom.
Disso, o Sr. Andreievitch deu-nos
recentemente um exemplo, ao entregar-se a acessos de histeria, nas colunas
de "Jizn (A Vida)".[29]
Certamente, não seria tão
difícil descobrir, nas obras volumosas de Nietzsche, algumas páginas que, fora
de contexto, poderiam servir de ilustração a qualquer tese preconcebida,
particularmente no quadro de uma exegese global que - diga-se entre parênteses
- tão útil se demonstraria para o estudo das obras de Nietzsche, mais obscuras do que
profundas.
É o que fizeram, p. ex., os anarquistas da Europa ocidental
que se apressaram em considerar Nietzsche
como "um deles" e acabaram
sofrendo uma cruel rejeição : o filósofo da "moral dos senhores" os
repudiou com toda a grosseria de que é capaz.
Esperamos que esteja claro para o leitor
que julgamos estéril possuir uma semelhante atitude literária,
textual, em relação a obras ricas em paradoxos do pensador alemão, recentemente
desaparecido, cujos aforismas são freqüentemente contraditórios e permetem, em
geral, dezenas de interpretações.
A via natural rumo a uma clarificação
correta da filosofia nietzschiana
é a análise da base social que deu origem a esse produto
complexo.
O presente trabalho esforçou-se por proceder
a uma análise desse gênero.
A base revelou-se podre, perniciosa,
envenenada, de onde sacamos a seguinte conclusão : Que nos convidem,
tanto quanto queiram, a mergulharmos, com toda a confiança, no nietzschismo, a respirar, com pulmões
amplamente abertos, nas obras de Nietzsche,
o imenso ar do individualismo orgulhoso !
Não responderemos a esses apelos e, não
temendo as fáceis reprovações de estreiteza e de exclusivismo,
contestaremos com ceticismo, tal como Natanael do
Evangelho : "Será que poderia mesmo existir
alguma coisa de bom em Nazaré
?"
EDITORA DA
ESCOLA DE AGITADORES E INSTRUTORES
“UNIVERSIDADE
COMUNISTA REVOLUCIONÁRIA J. M. SVERDLOV”
PARA A FORMAÇÃO,
ORGANIZAÇÃO E DIREÇÃO MARXISTA-REVOLUCIONÁRIA
DO
PROLETARIADO E SEUS ALIADOS OPRIMIDOS
MOSCOU - SÃO
PAULO - MUNIQUE – PARIS
[1] Cf. TROTSKY,
LÉON DAVIDOVITCH BRONSTEIN. In : Sotchinenia (Obras), Vol. XX : Kultura
Starovo Mira (Cultura do Velho Mundo)(23 de Dezembro de 1900),
Moscou-Leningrado : Gosud. Izd-vo, 1926, pp. 7 e s. O presente texto de Trotsky
foi igualmente publicado em “Vostotchnoie Obozriene (Revista do
Oriente)”, Nrs. 284, 286, 287, 289, respectivamente de 22, 24, 25 e 30
de dezembro de 1900.
[2] DJANCHIEV,
G. A. (1851-1900), foi um historiador e
publicista russo de tendência liberal, autor do célebre livro
sobre história das reformas durante o reinado de Alexandre II, intitulado "Iz Epokhi Velikikh Reform (Sobre a Época das Grandes
Reformas)". Djanchiev
gozava de grande autoridade nos círculos liberais. (Nota
do Editor Russo)
[3] SOLOVIOV,
VLADIMIR SERGUEIEVITCH (1858-1900) foi um
célebre filósofo, publicista e poeta russo, cujas concepções místicas e
religiosas uniam-se a idéias liberais, nas questões sociais e
políticas. A filosofia de Soloviov desfrutou
de muito sucesso junto aos círculos da inteligência russa pré-revolucionária,
orientadas para o misticismo. (Nota do Editor Russo)
[4] LIEBKNECHT, WILHELM (1826-1900) foi um dirigente da classe operária alemã e um dos fundadores do Partido Social-Democrata Alemão. Começou sua atividade política, participando do movimento revolucionário de 1848. Depois de alguns anos de imigração, ao longo dos quais aproximou-se de Marx e Engels, em Londres, tornou-se um discípulo destes e retornou à Alemanha, em 1862, quando passou a impulsionar a corrente marxista desse país. Encabeçou, então, o movimento operário alemão, continuando a fazê-lo até os últimos dias da sua morte. Em 1868, fundou, em Leipzig, o jornal "Demokratisches Volksblatt (Diário Democrático do Povo)", fechado, a seguir, em 1878. Em 1874, foi eleito para o Reichstag, onde opôs-se ao revisionismo de Eduard Bernstein e seus colaboradores, adeptos da ala direita da Social-Democracia Alemã. A partir de 1890, dirigiu a redação do órgão central da Social-Democracia Alemã, em Berlim, quando veio a fomentar posições irreversivelmente centristas e oportunistas - em franca oposição a Engels e o socialismo científico -, defendendo a possibilidade de um suposto atingimento do socialismo mediante a via parlamentar-pacifista e a democratização do Estado. Em sentido histórico, a luta interna contra a paulatina integração da Social-Democracia Alemã de August Bebel e Wilhelm Liebknecht à democracia do Estado Prussiano havia sido travada, já a partir dos anos 70 do século XIX, sob a inflexível batuta ideológica de Marx e Engels, seja no quadro de suas contudentes críticas a todos os Programas do SDAP/SAP/SPD, seja no contexto da luta revolucionária em face da Lei contra os Socialistas de 1878 a 1890. A seguir, Engels continuou combatendo implacavelmente, até ao dia de sua morte, a direção alegadamente “marxista” de Wilhelm Liebknecht, August Bebel, Eduard Bernstein et alii que, na década de 90 do século XIX, seguiram imprimindo, enquanto "friedfertige Anbeter der Gesetzlichkeit quand même (veneradores pacifistas da legalidade, sob todas as condições)", uma orientação invarialvelmente pacifista e reformista ao Partido Social-Democrático Alemão. Por isso, os artigos de Engels foram repetidamente censurados ou simplesmente não publicados por Wilhelm Liebknecht. Por isso, falar-se, pura e simplesmente, do “Partido de Engels” como sendo a Social-Democracia Alemã - sem destacar a luta travada por esse último contra o filistinismo do “livre pensar” -, constitui um equívoco patente : caberia falar ou do Partido Social-Democrático da Alemanha (SPD) com que Marx e Engels colaboraram criticamente a partir da Inglaterra – pois, ambos haviam sido expulsos da Alemanha, logo após a Revolução de 1848 – 1849, tendo sido Marx forçado a tornar-se apátrida - ou do Partido que se opunha à orientação de Marx e Engels, em vez de falar, sem mais nem menos, do “Partido de Engels”. Cabe, em verdade, a Ernst Mandel e aos incorrigíveis adeptos e colaboradores do mandelismo – no estilo de Daniel Bensaïd - defenderem a tese arenosa de que o “Partido de Engels” se integrou ao imperialismo alemão, por permanecer em sua “velha e preservada tática”, finalmente antagonizada por Rosa Luxemburgo. Vide MANDEL, ERNST. Rosa Luxemburg und die deutsche Sozialdemokratie (Rosa Luxemburgo e a Social-Democracia Alemã) (Março de 1971), in: Ernst Mandel – Karl Mandel. Rosa Luxemburg Leben – Kampf – Tod (Vida – Luta – Morte), Frankfurt a.M. : isp – Verlag, Mai 1986, pp. 46 e s. Por fim, cumpre destacar que a grandiosa e corajosa luta subseqüente, travada pela águia revolucionária do proletariado, Rosa Luxemburgo contra a direção social-reformista do Partido Social-Democrático Alemão (SPD), possuía como elementos de enfraquecimento a própria postura equivocada de Rosa Luxemburgo, em diferentes temas científico-políticos. Defendendo, por um lado, a derrubada de Wilhelm II, Rosa mantinha invariável sua posição de rejeitar abertamente o Direito de auto-determinação das nações oprimidas – contra a orientação de Marx e Engels -, propugnar uma teoria de acumulação do capital inteiramente revisionista – contra os posicionamentos de Marx e Engels -, postular, nas lutas proletárias, uma defesa essencialmente democratista de direitos e liberdades fundamentais para todos os indivíduos e organizações sociais – contra a concepção de Marx e Engels -, repudiar a teoria de Partido centralizado e clandestino – contra a concepção de Marx, Engels, Lenin e os bolcheviques -, o que, sem dúvida, favorecia estrategicamente, em grande parte, as posições do social-reformismo e do oportunismo organizativo da Social-Democracia Alemã. Entre os proletários revolucionários alemães desse período histórico encontraremos também aqueles que, não apenas defendendo a derrubada do Imperador Alemão, inclinavam-se também – ainda que intermediados por Karl Radek - a favor da defesa do modo de funcionamento e da linha geral internacionalista do Partido Bolchevique de Lenin. Reuniam-se em torno de Paul Fröhlich, Johan Knief e Julian Borchard e de seu trabalho surgiram também importantes sustentáculos, indispensáveis para a fundação do Partido Comunista da Alemanha (Liga Spartakus), em fins de 1918 e início de 1919. (Nota de de Portau Schmidt von Köln)
[5] MIKHAILOVSKY,
NIKOLAS K. (1842-1904) foi publicista, sociólogo e
crítico. Um dos mais eminentes teóricos do populismo. Exerceu grande
influência sobre a jovem geração da Rússia, nos anos 80 do século XIX. Foi
membro da redação dos "Otietchestvenye
Zapiski (Anais da Pátria)". Publicou "Chto Takoie Progress (O Que é o Progresso?)",
"Gueroi i Tolpa (Os Heróis e a Massa)", "Teoria Darvina i Obtchestvenaia Nauka (A Teoria de Darwin e a Ciência Social)".
A partir de 1892, dirigiu a "Rousskoie
Bogatstvo (A Riqueza Russa)". Membro da organização
populista-terrorista "Narodnaia Volia (A
Vontade do Povo)". Nos anos 90 do século XIX,
impulsionou luta ideológica contra os defensores do marxismo. (Nota
do Editor Russo)
[6]"Moskovskye Viedomosti
(Notícias de Moscou)" foi um jornal reacionário russo, fundando em
1756. Entre 1855 e 1860 - e, a seguir, entre 1863 e 1887 - foi dirigido por Katkov. Dos demais diários reacionários
russos, distinguia-se por seu reacionarismo extremo e sua grande
continuidade de edições. Seus slogans eram os seguintes : ortodoxia,
autocracia e nacionalismo. Sob a direção de Gringmut, tornou-se, em 1905,
o órgão oficial do Partido Monarquista
e impulsionou sistemática campanha de perseguição contra os
trabalhadores revolucionários, intelectuais e judeus, pronunciando-se,
abertamente, em favor dos progrons. (Nota do Editor Russo)
[7] "Novoie Vremia (Novos
Tempos)"
foi um diário de Petersburgo,
publiado desde 1876. Seu diretor de edição foi Souvarine. Veiculava posição
conservadora. Revestindo-se de um caráter oficioso, conduzia,
invariavelmente, campanha raivosa contra a democracia revolucionária, a classe
trabalhadora e a inteligência radical. A perseguição dos "alófilos", em particular, a dos
judios, constituía o fio vermelho de todos os principais artigos desse
jornal. Enquanto órgão colocado a serviço dos encontros burocráticos do
Estado Autocrático Russo, não se distinguia por possuir particular constância
em sua linha política de direita, visto que,
habitualmente, modificava de tendência, seguindo mudanças
ministeriais ocorridas. Durante a Revolução
de 1905, ocupou posição de extrema direita, exigindo
medidas rigorosas contra os revolucionátios e os trabalhadores grevistas.
(Nota do Editor Russo)
[8] "Vorwärts (Avante)" foi o órgão central do Partido Social-Democrata Alemão, tendo
sido publicado em Berlim. O
jornal foi fundado em 1883, sob o título "Berliner Volksblatt (Diário do Povo de Berlim)". Depois
da supressão da Lei contra os Socialistas de
1878 a 1890, ressurgiu, depois de 1° de outubro de 1890,
sob o título "Vorwärts
(Avante)", sob a direção de Wilhelm Liebknecht, sendo sua publicação, então,
organizada na cidade de Leipzig. A
partir de então, veiculou - em oposição às orientações de Engels - posições reformistas-pacifistas e
veneradoras da legalidade, sob todas as condições. Depois do início
da I Guerra Mundial Imperialista de
1914, o "Vorwärts
(Avante)" - tal como a maioria da imprensa
social-democrática alemã - propugnou posições socias-patrióticas. No momento da
ruptura da Social-Democracia Alemã,
entre ala direita e ala dos independentes, o "Vorwärts (Avante)" permaneceu
nas mãos da direita social-democrática alemã. Logo após a Revolução Proletária de Outubro de 1917,
conduziu uma campanha encarniçada contra o Partido
Comunista Bolchevique, dirigido por Lenin, e a Rússia Soviética.
(Nota de Portau Schmidt von Köln)
[9] "Rousskoie
Bogatstvo (Riqueza Russa)" foi uma das
revistas mensais de maior influência antes da Revolução Proletária de Outubro de 1917. Começou
a ser publicado em 1880, sob o título em destaque. Em 189, passou para as
mãos dos velhos colaboradores de "Otietchestvennye
Zapiski(Anais da Pátria)". Em 1895, Mikhailovsky tornou-se o
inspirador dessa revista e, a partir desse momento, "Rousskoie Bogatstvo"
converteu-se em órgão do populismo. A partir de 1916, apareceu sob o
título "Rousskye Zapiski (Anais
Russos)". Deixou de ser publicada depois da Revolução de 1917. (Nota do Editor
Russo)
[10] KILAND
(1849-1888) foi um escritor norueguês, representante da corrente realista, na
literatura da Noruega.
[11] Nesse passo de sua exposição, Trotsky formula a seguinte
nota de pé de página : "Não forneceremos referências, tendo em conta que a
edição das Obras de Nietzsche, em Oito Tomos,
sem contar os volumes suplementares, constitui uma artilharia demasiadamente
pesada para alguns poucos artigos jornalísticos."
[12] RIEHL, ALOIS
(1844-1924) foi um filósofo alemão da corrente neo-kantiana, autor do livro "Der
philosophie Kritizismus und seine Bedeutung für die positive Wissenschaft, (O
Criticismo Filosófico e seu Significado para a Ciência Positiva)",
3 Volumes, 1876-1887.
[13] Literalmente : os que são de ossos negros e os de ossos brancos.
[14] cf. SALTYKOV-SHTCHEDRIN, MIKHAIL EVGRAFOVITCH. Sátiras e
Prosa, in : Sotchinienia(Obras), São Petersburgo, 1887, Vol. 7, p. 318.
[15] Cf. LICHTENBERG, Die Philosophie F. Nietzsche.
[16] Acerca do tema, vide TROTSKY, LEON DAVIDOVITCH BRONSTEIN.
O Romane Voobtche i o Romane Troie v Tchastnosti (Sobre o Romance em Geral e
sobre as Três Partes em Particular, in: Sotchinienia (Obras), Op. Cit.,
Moscou-Leningrado : Gosud. Izd-vo, 1926, pp. 13 e s.
[17] A respeito desse parágrafo, Trotsky
observa, em nota de pé de página: "Destaquemos o sequinte, passando um
traço comum entre os dois escritores mencionados : o respeito que nutrem pelos
"homens fortes". Gorky perdoa em qualquer homem
qualquer o ato negativo, mesmo que, segundo Gorky, resulte de
uma força que aspire a exteriorizar-se. Descreve tão bem esses atos e com tanto
amor que, mesmo o leitor que não esteja em pleno acordo com ele, dispõem-se a
apaixonar-se por aquela "força" e o admirar ... Tais são o velho Gordieiev
e alguns outros heróis de Gorky."
[18] SPENCER, HERBERT. (1820-1903) foi um filósofo inglês, um dos fundadores do
evolucionismo. Sua obra principal intitula-se "A System of
Synthetic Philosophy (Um Sistema de Filosofia Sintética)",
surgida em 1860. Spencer parte da oposição existente o
passível de conhecimento e o impossível de ser conhecido. A análise dos
princípios fundamentais do conhecimento conduziria à conclusão de que, muito
além dos fenômenos conhecíveis, existiria algo de absolutamente inacessível ao
conhecimento, constituindo, consegüintemente, o domínio legítimo da fé
(princípio do ignorabimus). Assim, a tarefa da filosofia, considerada
enquanto a mais elevada generalização dos nossos conhecimentos científicos,
seria a de estabelecer a lei que rege todos os fenômenos. Segundo Spencer,
esta seria a Lei da Evolução, à qual se encontram submetidos
todos os fenômenos. Examinando as formas especiais da evolução, Spencer
debruçou-se, antes de tudo, sobre o desenvolvimento dos organismos, das formas
sociais e da vida física. Em suas teses sociológicas, utilizou-se,
abundantemente, da analogia entre sociedade e organismo, a partir da qual
construiu seu sistema sociológico. No domínio da política social, foi inimigo
de toda e qualquer intervenção do Estado na vida do ser humano, contemplado enquanto
indivíduo, e, desse ponto de vista, opôs-se ao socialismo. No marco de sua
defesa da liberdade do ser humano contra o "poder tirânico" do
coletivo, tão como no quadro de sua oposição dualista entre conhecimento e fé,
revela-se, claramente, a natureza de classe burguesa desse célebre pensador
inglês.
[19] Nessa passagem de seu texto assinala Trotsky: Seria
interessante de estabelecer uma analogia entre o Senhor Feudal que explora
sistematicamente o campesinato servil e o "super-homem" da sociedade feudal,
o "Raubritter (o cavaleiro assaltante)", que proclama
: Rauben ist keine Schande, das tun die besten im Lande(Roubar não
é nada de vergonhoso, pois são os melhores nesse país os que roubam)".
[20] NORDAU, MAX
(1849-1923) foi um escritor alemão, autor de obras atraentes, porém
superficiais. Suas produções mais célebres são estas : "Paradoxe(Paradoxo)",
surgida em 1885, "Entartung(Degenerescência)",
em 1892-93, "Die Konventionnellen Lügen der Kulturmenschaft (As
Mentiras Convencionais da Humanidade Cultural)", em 1883. Na
segunda metade de sua vida, tornou-se um dos adeptos mais fervorosos do
sionismo.
[21] Em francês, no texto de Trotsky.
[22] SMILES, SAMUEL
(1812-1904) foi um escritor e moralista inglês. Já mesmo os títulos de suas
obras - "Character(O Caráter)", "Self Help. Conduct and
Perseverance (Ajudar a Si Mesmo. Conduta e Perseverança)", "Men of
Invention and Industry (Homens de Invenção e de Indústria), "Duty
(Dever)", "Life and Work(Vida e Trabalho)" -
fornecem uma idéia de sua moral e de sua filosofia simplista que se estrutura,
lançando mão de uma grande quantidade de exemplos edificantes, retirados da
vida dos inventores e dos industriais.
[23] BENTHAM, JEREMY (1746-1832) foi um célebre jurista e filósofo inglês, fundador do
utilitarismo, doutrina segundo a qual o princípio da moral é o maior bem para o
maior número possível de pessoas. Assim, Bentham chega à
conclusão de que, em política, o que corresponderia a esse princípio seria tão
somente a democracia, enquanto forma de governo fundado na vontade da maioria.
A monarquia, seja ela absoluta, seja ela limitada, onde uma minoria governa,
surge, aos olhos de Bentham, como uma tirania, perpetrada
contra a natureza. Posicionou-se a favor das liberdades individuais e
econômicas burguesas, separação entre a Igreja e o Estado, melhoria
dos Direitos da mulher na sociedade capitalista, Direitos dos
animais, abolição da escravidão, supressão dos castigos corporais, aplicados em
adultos e crianças, Direito de divórcio. Foi favorável à criação de um imposto
incidente sobre a transmissão da herança, à restrição do poder dos
monopólios, às aposentadorias e ao seguro de saúde.
[24] O Caso Panamá foi um processo que veio à luz devido a
abusos verificados no âmbito da direção de uma sociedade por ações, criada
para a construção do Canal do Panamá, projetado para ligar o Atlântico
ao Pacífico. No curso do processo, foram revelados muitos
detalhes escandalosos que comprometiam toda uma série de ministros, deputados e
representantes, conhecidos na imprensa da época. O Caso Panamá
tornou-se, assim, nome comum designativo de todos os tipos de grandes
escândalos sociais e políticos.
[25] O Caso Dreyfus foi uma questão de espionagem
francesa que envolveu um oficial de artilharia, capitão-estagiário, de
origem judia-alsaciana, de nome Alfred Dreyfus, acusado
injustamente de alta traição. Seu processo encontrou-se no centro da vida
política da III República Francesa, ao longo de todos os anos
90 do século XIX. Surgiu devido a uma série de documentos de acusação, cujo
teor e forma foram impugnados, posteriormente, por serem inteiramente
forjados. O processo em tela foi todo ele conduzido tendo como base uma
falsa pista e inúmeras manobras conscientemente empreendidas pelo Ministério da
Guerra e o Estado Maior da França. Na realidade, tratava-se de um pretexto para
a deflagração de uma série de ataques dos elementos monarquistas contra as
instituições republicanas. Diante disso, teve início uma campanha
favorável a Dreyfus que reuniu todos os círculos republicanos,
encabeçados por Jean Jaurés e Émile Zola. Por
fim, Dreyfus foi absolvido. O Processo Dreyfus revelou,
outrossim, diversos crimes, perpetrados por altas autoridades francesas, bem
como a monstruosa venalidade da imprensa burguesa e dos parlamentares da
França.
[26] CRISPI, FRANCESCO. (1818-1901) foi um advogado
liberal, que, de início, exerceu sua profissão na Itália.
Quando em 12 de janeiro de 1848, irrompeu a Revolução Italiana, em Palermo,
integrou o Comitê de Guerra dessa cidade e dirigiu a corrente radical
democrático-autonomista, na Câmara dos Comuns. Em 1859, então,
aproximou-se da corrente nacional-patriótico-unitarista de Giuseppe Mazzini. A
seguir, foi um dos principais articuladores da Spedizione dei Mille(A Expedição
dos Mil) e Secretário de Estado de Giuseppe Garibaldi,
empenhado em postergar a anexação das regiões do sul da Itália pelo Reino
do Piemonte, até que Garibaldi empreendesse a conquista
de Roma
e Venezia. A partir de 1861, no quadro da Unificação Italiana, Crispi
tornou-se um dos maiores expoentes do Parlamento Burguês Italiano, por
defender uma linha de oposição ao conservadorismo de direita piemontês,
protagonizado pelo Conde Camilo Benso di Cavour. Em 1864, depois de afastar-se do
republicanismo de Mazzini, pronuncia suas mais célebres palavras : “la
monaquia ci unisce, la repubblica ci dividirebbe (a monarquia nos une, a
república nos dividiria)”. De 1887 a 1891 e, posteriormente, de 1893 a
1896, Crispi exerceu, respectivamente, as funções de Ministro
do Interior e Presidente do Conselho do Estado
Burguês-Monárquico Italiano. Por fim, assumiu a pasta de Ministro
do Exterior. Durante seus mandatos, grassaram à solta, na Itália,
escândalos sobre abusos comentidos pelos grandes bancos. A partir de 1893, a
sucessiva publicação de leis e decretos contra as forças socialistas, levou Crispi
a se opor abertamente aos militantes de esquerda da Itália.
Procurou responder a esse confronto aberto contra os socialistas italianos
mediante o impulsionamento de uma Política Colonial de Conquista da Etiópia.
Faleceu em Nápoles, em 1901.
[27] A Epopéia de Mamontov
foi um processo sobre as malversações, as falsificações e outros abusos na
gestão da Sociedade das Estradas de Ferro
Moscou - Yaroslavl - Arkhangelsk que teve lugar no Tribunal de Moscou,
entre 23 e 31 de julho de 1900. O principal acusado no processo em
referência foi Savva Ivanovitch Mamontov,
uma das figuras mais importantes da burguesia industrial russa. Durante vinte
anos, Mamontov foi,
sem interrupção alguma, o presidente da sociedade referida e,
concomitantemente, o principal acionista da Indústria de Metalurgia de Nevsky. Foi acusado de
ter desviado, em seu próprio benefício, mais de 2 (dois) milhões de
rublos. Todos os acusados foram, porém, absolvidos.
[28] D'ANNUNZIO, GRABRIELE (1863-1938) foi, enquanto poeta e
dramaturgo, o símbolo máximo do decadentismo, do egocentrismo e do
nacionalismo reacionário, elitista, e super-homeniano italiano do início
do século XX. Filho de rico comerciante, dedicou-se a uma vida perdulária, romântica
e aventureira. De início, jornalista e deputado da direita italiana. A
seguir, oportunisticamente, aderiu à
esquerda. Em suas produções literárias posteriores a
1892, nutriu-se dos pensamentos, universo de valores e
motivos filosóficos aristocrático-reacionários, originalmente formulados
por Arthur Schopenhauer e Friedrich Nietzsche, muito lidos no
curso dos anos 80 e 90 do século XIX. No próprio ano de 1892, D'Annunzio encontrara-se
pessoalmente com Nietzsche,
convertendo-se em seu adepto. Suas obras intituladas "Il Trionfo della Morte (O Triunfo da Morte)", de
1894, "Le Vergini
delle Rocce (As Virgens das Rochas)", de
1896, "Il Fuoco (O Fogo)", de
1900, constituem o exemplo mais patente do nietzschismo de D'Annunzio. Nessas obras, D'Annunzio concebe o mundo como uma cena em
que as massas de seres escravos trabalham e sofrem para tornar a vida mais
viável e agradável aos poucos seres livres, pródigos de seus dotes de
espírito e beleza. Espera pelo dia em que emergerá a revanche contra a opacidade
da democracia. Em 1906, publicou um livro de poesias, intitulado "In Memoriam Friedrich Nietzsche(Em Memória de
Friedrich Nietzsche)". D'Annunzio impulsionou o
deslocamento do significado educativo que a cultura positivista
francesa havia atribuído à figura do cientista rumo à imagem do
artista, o verdeiro "homem
representativo", sintetizador eclético de termos
que parecem excluir-se reciprocamente, não se atendo a fórmulas, mas
criando voluntaristamente a vida que lhe aprouver. Compôs também
diversos livros de ópera, entre eles a ópera em versos para a celebração
da Guerra Imperialista da Itália contra a
Líbia. Ajudou a difundir na imprensa italiana de
massa o mito super-homeniano, enquanto
modelo expressivo aristocrático-elitário, veiculando os valores, as emoções
e os conteúdos irracionais típicos desse código comunicativo, a ponto de
torná-lo uma arma política desenfreada para a luta ideológica, em que as
palavras possuíam o objetivo direcionado de ofender e
golpear. Assim, D'Annunzio
foi o mentor espiritual que antecipou o estilo propagandístico do
fascismo italiano. O prazer físico e gestual da palavra conscientemente
pesquisada, a sonoridade em si mesma, a mentalidade do som, enquanto
aspecto da sensualidade, o estilo retórico-linguístico, voltado à conquista física
e ideológica do público, em sentido direto, o verbo carismático e místico,
levado ao paroxismo, a escalação narcisista, expressa em comunicação
teatral-eletrizante : eis alguns traços típicos da concepção d'annunziana
do mundo. Participou da I Guerra
Imperialista Mundial. Em 12 de setembro de 1919, organizou
um ataque para-militar italiano que conduziu à ocupação da cidade de Fiume, situada no Norte do Adriático - então sob
dominação austro-húngara -, não cedida mediante tratados à Itália pelas potências aliadas
vitoriosas. Em 1920, foi forçado, porém, pelo Governo Italiano de Giovanni Giolitti, apoiado pelos
nacionalistas e por Mussolini, a confinar-se em sua vila de Gardone, até o advento de sua morte.
[29] Andrekseievitch foi o pseudônimo de SOLOVIOV, EUGENE ANDREIEVITCH
(1866 - 1905), crítico literário do jornal "Jizn (A Vida)", onde
publicou ensaios de literatura e político-sociais dos último quartel
do século XIX.