CAPÍTULO I.
Texto de Autoria de
Portau Schmidt von
Köln
Emil Asturig von
München
A Enfermidade Gramsciana
no Movimento Trotskysta Contemporâneo
e nas Lutas de Emancipação do Proletariado
Polêmica Trotsky e Gramsci :
Gramsci e Trotsky
de Atualização, Correção
e Superação do Marxismo
(O Meta-Marxismo de Actuel Marx)
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O repúdio
clarevidente por parte do Secretariado Unificado da Quarta
Internacional (SU-QI) da herança doutrinária mais sólida, legítima e
secular do proletariado revolucionário processa-se, no contexto histórico de
nossos dias, em favor da defesa de concepções políticas movediças e falaciosas,
relacionadas, antes de tudo, com a defesa da “Democracia Socialista como
pressuposto e condição para a transição rumo a uma sociedade realmente
comunista” e de “Uma Europa Social e Democrática e um Mundo
dos Cidadãos” – para empregar-se aqui, estritamente, essa arenosa
terminologia estético-linguística dos próprios dirigentes políticos e expoentes
teóricos do Secretariado Unificado da Quarta Internacional (SU-QI).
Aqui, caberia,
antes de tudo, indagar : a nova inclinação doutrinária e política dos
principais quadros do Secretariado Unificado da Quarta Internacional
(SU-QI) no sentido da Democracia Socialista e de Uma
Europa Social e Democrática e um Mundo dos Cidadãos, tratar-se-ia
efetivamente de um passo inovador e inédito do SU-QI, no cenário das
idéias acerca do conteúdo e forma de atingimento do socialismo, que incidem
sobre a formação da consciência política dos trabalhadores e demais socialmente
oprimidos ?
Quanto a tal
indagação, cumpre assinalar, de partida, que, em verdade, o atual processo de
remundialização neoliberal do capitalismo imperialista, bem como as revoluções
do Leste
Europeu, a derrubada do Muro de Berlim, a dissolução da União
Soviética, são eventos históricos de relevância mundial que, sem a
menor dúvida, reavivaram e recolocaram na ordem do dia dos debates de diversas
organizações da esquerda socialista mundial a problemática da Via
Democrática ao Socialismo, marcada essencialmente pela gradativa e
progressiva Democratização da sociedade civil burguesa e do Estado Burguês, enquanto
hipotético meio de transição rumo à edificação de sociedades regidas
supostamente por uma Democracia Socialista, seja no seio
dos países capitalistas imperialistas, seja naqueles situados na periferia do
processo de exploração despótica do capitalismo remundializante, bem como
nesses últimos, provindos da derrocada dos Estados operários burocratizados,
particularmente submetidos à restauração acelerada das relações
capitalistas-imperialistas.
Nada obstante, é
imperioso afirmar que a presente orientação ideológica e política dos
principais dirigentes e intelectuais do Secretariado Unificado da Quarta
Internacional (SU-QI) em favor da Democracia Socialista - plenamente
inserida na perspectiva central defendida pelos Espaces Marx e os Espaces
Marx Réseau International. Pour Une Construction Citoyenne du Monde -, não
é, com efeito, resultado de sua própria iniciativa intelectual e política
independente, moderna, atual e inédita, razão porque resulta razoável, falar-se
aqui, não de uma descoberta ou dimensionamento da Via Democrática ao Socialismo
e de seus corolários teóricos, mas sim de sua reatualização e de seu crescente
redimensionamento por parte da direção do Secretariado Unificado da Quarta
Internacional (SU-QI).
Sem embargo, a
postulação do conteúdo teórico e forma transicional da Via Democrática ao Socialismo e
da Democracia
Socialista, tal como hodiernamente defendida pelos principais
dirigentes e expoentes intelectuais da Ligue Communiste Révolutionnaire (LCR)
e, conseqüentemente, também do Secretariado Unificado da Quarta
Internacional (SU-QI), encontra seu surgimento histórico-político e seu
refinamento teórico-doutrinário, efetivamente mais abrangentes e
especulativamente mais complexos, muito além da expressão intelectual adquirida
ao longo das últimas décadas.
Examinando-se,
ainda que superficialmente, a mais recente história do após-guerra concernente
às oscilações ideológicas dos partidos políticos franceses que se reivindicaram
e se reivindicam socialistas-revolucionários – e não portanto
socialistas-reformistas ou sociais-reformistas -, é mister assinalar que os
mais expressivos defensores da Via Democrática e Pacífica ao Socialismo
e, mais precisamente, da Democracia Socialista, despontaram,
exatamente, entre os mais expressivos dirigentes e intelectuais do Partido
Comunista Francês (PCF), do curso dos anos 70.
Com efeito, em 7
de janeiro de 1976, Georges Haddad, Secretário da Célula Pablo-Neruda – Epinay-sous-Sénart,
do Partido Comunista Francês (PCF), propôs, no quadro do período
pré-congressual do XX Congresso do PCF, fosse revista a redação de certos
parágrafos do preâmbulo – em particular do parágrafo IX - dos Estatutos
do PCF, no sentido de suprimir da redação de tal documento partidário a
expressão “Ditadura do Proletariado”.
Nessa ocasião, sua
intervenção surgia à luz da reflexão de que tal supressão resultaria mais
adequada à realidade da luta de classe na França daquele momento histórico.
Naquela ocasião, Haddad
assinalou, literalmente, nas colunas de L’Humanité :
“Porque evitar (a expressão) “ditadura do proletariado” ?
Porque, se noção histórica e fundamental foi, a “ditadura
do proletariado” correspondeu da
melhor maneira a certas circunstâncias da luta de classes, em certas condições
históricas, sociais e econômicas.
Porque também “ditadura” não tem a mesma ressonância nem
o mesmo conteúdo de outrora, antes e depois do surgimento dos regimes
fascistas, alemão e italiano, bem como depois da existência das ditaduras
espanhola, grega, portuguêsa, recentemente falidas nos dois últimos casos ...
sem esquecer das ditaduras da América Latina, em particular o Chile.
Porque, enfim, “ditadura”, é o oposto da democracia
sempre mais ampla e das liberdades sempre mais extensas em favor das quais
lutamos.
Porque “ditadura do proletariado”
não é mais hoje uma verdade efetiva. Ela era uma verdade no fim do século XIX e
no início do século XX. Ela permanece sendo uma verdade hoje, porém não reflete
toda a realidade da atualidade, porque as perspectivas de vitória não repousam
mais unicamente na luta de classe
operária e do proletariado camponês, mas essencialmente
na luta de classe operária em aliança
com as largas camadas sociais
anti-monopolistas, e não somente do campesinato proletário, no sentido de uma
larga reunião em torno da classe
operária, força decisiva da união do
povo da França.”
Indicando, então,
a forma redacional que os parágrafos 9 e 11 dos Estatutos do PCF haveria
de, doravante, assumir, propôs Georges Haddad :
“Assim, o parágrafo 9 poderia ser redigido da forma a
seguir :
‘ Esse novo poder político, cuja forma pode variar,
assegura a democracia mais ampla, em
particular para todos os trabalhadores, seja no plano econômico como no plano
político.
Ele velará também por fazer progredir as liberdades em ligação com as necessidades econômicas,
sociais e humanas.
Esse novo poder político dos trabalhadores abrirá e
trabalhará sobre a via que conduzirá, progressivamente, do governo dos homens à
administração das coisas, à sociedade comunista. ’
E depois, proponho acrescentar, ou completar o parágrafo
1, com a frase seguinte: ‘ Apenas como classe, a classe trabalhadora pode
conduzir ao sucesso da luta revolucionária, porque ela é a força dirigente da
luta pela transformação da sociedade. ’”[2]
A proposta de Georges
Haddad de supressão da expressão “Ditadura do Proletariado”, levantada
no início de 1976, no quadro do período pré-congressual do PCF, não pode ser
devidamente entendida, senão em face do contexto histórico de solidificação e
aprofundamento da política burocrática stalinista-brejeneviana de coexistência
pacífica – e, portanto, de colaboracionismo de classes -,
construção do socialismo em um só país e internacionalismo socialista, bem
como tendo em vista o Programa Comum de Governo, celebrado
entre o PCF e o Partido Socialista Francês, nos idos
de 1972.
Naquele mesmo ano
de 1976, Georges Marchais, Secretário Geral do PCF, intrevistado por Christian
Guy, teve, precisamente, a oportunidade de observar acerca do tema, em
pleno acordo com aqueles eixos ordenadores maiores de todos os PCs
stalinizados :
“Christian
Guy interroga, a seguir, Georges Marchais acerca da ‘ via democrática ao
socialismo ’.
Georges
Marchais – É a passagem ao socialismo sem a guerra civil.
Qual
solução ? A LUTA : nos rejeitamos a guerra civil, mas não pode existir passagem
ao socialismo sem uma dura luta sob todas as formas, na União do Povo da
França, tendo como eixo a União da Esquerda e o meio das consultas eleitorais.
A
maioria pronunciar-se-á, a cada etapa, pela via das eleições. ...
E, a cada
etapa, o sufrágio universal decidirá ! ...
Nós estamos
em 1976 .... o Partido Comunista não se encontra paralisado.
Ele não é
dogmático. Ele sabe se adaptar às condições de seu tempo.
Ora, hoje a
palavra “ditadura” não corresponde mais ao que queremos.
Ela possui
um significado insuportável, contrário a nossas aspirações e a nossas teses ...
Mesmo a
palavra “proletariado” não convém mais, porque nós queremos reunir, junto com a
classe operária, a maioria dos trabalhadores assalariados ...
Mas, isso
não significa que nós abandonamos o nosso objetivo: o socialismo com as cores
da França ....
Porque sem
socialismo não há saida da crise ....”[3]
Com base na
simples natureza desse reposicionamento teórico-político, sacramentado, então,
solenemente e com ampla maioria de votos pelo PCF, no quadro de seu XX
Congresso, torna-se já possível entender-se o fato de não se tratar
absolutamente de um produto novidadeiro as posições políticas fundamentais defendidas,
na última década e nos dias que correm, pelos principais dirigentes e mais
expressivos intelectuais da Liga Comunista Revolucionária (LCR), bem
como do Secretariado Unificado da Quarta Internacional (SU-QI).
Nada obstante,
mesmo o mais profundo e detalhado exame da desenvoltura dos debates travados no
quadro PCF, por ocasião da preparação e realização de seu XX
Congresso, tendo como problemática crucial a questão da Via
Democrática e Pacífica ao Socialismo, da Democratização da sociedade civil
burguesa e do Estado Burguês, bem como da Democracia Socialista, é
ainda plenamente insuficiente e inapto para divisar-se, percucientemente, as
raízes históricas e os elementos doutrinários que embasam, originariamente, o
surgimento de um tão profundo revisionismo democrático-pacifista dos
fundamentos mais elementares contidos no pensamento socialista-revolucionário
de Marx
e Engels, Lenin e Trotsky.
Com efeito, aquilo
que se pode ler nos debates travados no interior do PCF, ao longo de todo ano
de 1976, nada mais representa senão uma vulgata, adaptada à realidade francesa,
da temática concernente à Via Democrática e Pacífica ao Socialismo e
da Democratização
da sociedade civil burguesa e do Estado Burguês, como forma de ascender
ao socialismo.
Transcorreram já
mais de 20 anos desde que Moreno deu à publicação seu livro
intitulado “A Ditadura Revolucionária do Proletariado”, em cujo quadro
voltou seu pensamento crítico contra a Resolução sobre “Democracia
Socialista e Ditadura do Proletariado”, apresentada pelo SU-QI,
no final da década de 70.[5]
Nessa sua obra
político-polêmica, Moreno posicionou-se, ostensivamente, decidida e publicamente,
no ano de 1979, contra a resolução do SU-QI em referência, alertando ser
imprescindível retornar às fontes da doutrina revolucionária para reavivar a
velha fórmula marxista relativa à Ditadura do Proletariado enquanto
instrumento de impulsionamento da revolução socialista dos trabalhadores e
demais socialmente oprimidos, incorpadora da mais ampla Soberania proletária, muito
mais do que se esfalfar clamando, irrefletida e monotonamente, por Democracia
Socialista e Ditadura do Proletariado, com sufrágio universal para todos os
cidadãos e liberdade política ilimitada para todos os partidos políticos,
inclusive contra-revolucionários.
Quanto às linhas
gerais da temática em causa, Moreno frizou, com penetração, já
desde duas décadas :
„Nós
acreditamos que as citações acima, tal como nossos argumentos, provam
suficientemente que o SU-QI revisou, completamente, a posição
marxista-revolucionária acerca da Ditadura do Proletariado.
Não
queremos dizer, nesse ponto, que o SU-QI está equivocado.
Estamos meramente provando o significativo fato de que
suas presentes concepções estão opostas à posição marxista tradicional. ...
O que está acontecendo é que uma seção do movimento
trotskysta europeu e ocidental tornou-se porta-voz dos preconceitos
democrático-burgueses dos trabalhadores do ocidente, que se combinam com os
traços ideológicos das influências ultra-esquerdistas, prevalentes, até
recentemente, no movimento estudantil na Europa(p. 27).
Esses preconceitos estão manifestados no seu programa de
“liberdade política ilimitada”, sendo que a influência ultra-esquerdista está
demonstrada na negação, formal, acadêmica, das instituições
democrático-burguesas.
Contudo, essa influência está sendo gradativamente
substituída pelas instituições burguesas, tal como resulta demonstrado pelo
desejo de Mandel de impor o “sufrágio universal” acima da Ditadura do
Proletariado.
Essa corrente do movimento trotskysta está seguindo um
caminho simétrico àquele do Euro-Comunismo : tanto o programa do SU-QI quanto o
dos Partidos Comunistas ocidentais são o da “liberdade política ilimitada”,
ainda que o primeiro apresente-a como um programa para a Ditadura do
Proletariado, enquanto que os últimos levantam-na no contexto do sistema
capitalista e transitório(p. 28).”[9]
Colocando em
evidência os fundamentos sócio-materiais de tal capitulação do SU-QI,
Moreno
anotou, a seguir, em sua obra em destaque :
“A
Internacional Comunista sob a direção de Lenin e, posteriormente, os
trotskystas frizaram, insistentemente, a existência de preconceitos
democrático-burgueses entre as massas do ocidente.
A força dos Partidos Sociais-Democrátas e Comunistas é uma
clara expressão política desse fato. ....
Isso coloca um problema político-teórico.
A Quarta Internacional da Europa e dos EUA vive em uma
sociedade e com massas que sofrem, imersas nos preconceitos
democrático-burgueses.
Inevitavelmente, alguns líderes e correntes de nosso
movimento tem de refletir esses preconceitos. Quem podem ser essas pessoas?
Infelizmente, essa questão é respondida por si mesma : a
maioria do SU-QI. Quem mais poderia ser ? Alguém tem de refletí-los.
No final dos anos 60, quando o movimento estudantil
europeu deu apoio massivo à Revolução Cubana, fez de Che Guevara seu herói e da
guerra de guerilha seu método, esse fenômeno sócio-político foi, também,
representado em nossa Internacional. ...
O
que está ocorrendo agora é que o SU-QI expressa os preconceitos
democrático-burgueses dos trabalhadores ocidentais em seus documentos, em suas
políticas, bem como no interior das fileiras trotskystas.
A resolução sobre “Democracia Socialista e Ditadura do
Proletariado” é a mais perfeita síntese da mais nova tendência revisionista que
começou a se cristalizar.(p. 29)”[10]
Após essas
observações de Moreno - que tornam convidativo o exame de
sua mencionada obra, visando à análise do perfil lógico-político do SU-QI
nas últimas décadas -, cumprirá verificar e desenvolver, no presente
trabalho, antes de tudo, de modo suplementar, os elementos básicos da
orientação teórica e política assumida e defendida por essa organização
internacional, ainda pretendidamente trotskysta, nos dias de hoje, i.e.
no apagar das luzes do século XX, quando se situa nos umbrais de seu XV
Congresso Mundial.
Em verdade, o SU-QI prosseguiu percorrendo politicamente e
aprofundando intelectualmente, ao longo das últimas décadas, um “caminho
simétrico” à herança teórica
legada post mortem pelo
revisionismo do antigo Euro-Comunismo, mesmo depois de
concluído o malfadado e efêmero interstício de manifestação
político-existencial desse último, no final dos anos 70.[11]
A partir do fracasso
conteudístico e declínio formal desse fenômeno político, em princípio
tipicamente europeu-ocidental, verificado nos principais partidos
comunistas-stalinizados desse continente, o SU-QI dedicou-se, com
efeito, a reajustar suas concepções doutrinárias e políticas, difusa e
gradativamente, disfarçada e especulativamente, gravitando em conformidade com
as oscilações teóricas dos intelectuais mao-stalinistas reciclados e
democrático-humanistas dos Partidos Comunistas, que
sobreviveram à falência do período eurocomunista.[12]
Uma significativa
transformação do perfil ideológico e político da direção do SU-QI
estaria, porém, por ocorrer nos anos seguintes.
Com o surgimento
da década de 80, no quadro da derrocada paulatina e insofreável dos Estados
operários burocratizados do Leste Europeu, estimulador do avanço
da remundialização neoliberal do capitalismo imperialista e, em particular, da
edificação capitalista-imperialista da União Européia, a direção política e
doutrinária do SU-QI haveria de expor-se, muito mais exponecial e
progressivamente, ao impacto penetrante dos preconceitos democrático-burgueses,
difundidos principalmente entre as massas proletárias dos países
capitalistas-imperialistas, dando expressão articulada a esses últimos através
de suas produções intelectuais, caracterizações políticas e consignas práticas.
O “crime teórico, político e histórico” que
viria a cometer contra a doutrina socialista-revolucionária da emancipação do
proletariado preencheria todas as suas possíveis condições agravantes já a
partir de fins dos anos 80, i.e. mais precisamente a partir de 1986, quando os
principais expoentes teóricos do SU-QI passaram a intervir, manifesta
e fraternalmente, em estreita e aberta colaboração com os teóricos franceses de
linhagem gramsciana de Actuel Marx, comandados por Jacques
Texier e Jacques Bidet.
A partir desse
momento o “caminho simétrico” do SU-QI em relação àquele do Euro-Comunismo,
referido por Nahuel Moreno, nos fins dos anos 70,
deixou progressivamente de existir enquanto tal, na medida em que a direção do SU-QI
dirigiu-se da “simetria eurocomunista” ao mais total abandono da perspectiva
da luta de classes voltada à libertação do proletariado e, por consegüinte,
rumando para a mais cabal renegação da própria defesa teórico-fundamental e
político-prática da Ditadura Revolucionária do Proletariado, enquanto fase
transitória para a construção de uma sociedade sem classes e sem Estado, i.e. o
socialismo ou ainda a primeira fase da sociedade comunista.[13]
Nesse sentido, cumpre
atestar, literalmente, o modo e a forma segundo os quais, já nos primeiros anos
da década de 90, o principal fundador da Ligue Communiste Révolutionnaire (LCR), em
abril de 1969, e, também, o mais consagrado intelectual do Secretariado
Unificado Internacional da Quarta Internacional (SU-QI) da atualidade, célebre
professor da Universidade de Paris – Vincennes, Daniel Bensaïd, pronunciou-se
acerca do ”pequeno escorregão” que conduziu o SU-QI a abdicar da
concepção de Ditadura do Proletariado, em função da defesa da Democracia
Socialista ou do Poder Popular:[14]
Escorregões de palavras, deslocamento de sentidos(no
original francês : glissements de mots, déplacement de sens)(p. 214).”[15]
„Desagrada aos neo-stalinistas que essa concepção de
democracia na transição é, em todos os sentidos, conforme à tradição marxista.
Desde 1848, o Manifesto Comunista a proclama (p. 57) ...
A ofensiva ideológica contra o socialismo faz suas
grandes encrencas (no original francês : fait ses choux gras) em virtude de que
Marx apelava para uma „ditadura do proletariado“.
Mas, essa „ditadura“, para ele, não era nada senão o que
a Comuna de Paris havia instaurado na prática.
O termo „ditadura“ choca hoje.
Esquece-se, simplesmente, de o recolocar no contexto da
época.
A burguesia exercia, desmascaradamente, uma verdadeira
ditadura da minoria.
Os parlamentos não eram eleitos senão pelos cidadãos de
fortuna, o direito de greve e o direito de associação não existia para os
trabalhadores.
Todas essas conquistas democráticas foram arrancadas pelo
movimento dos trabalhadores, ao preço de lutas freqüentemente sangrentas(p.
58).“[18]
Segundo Vercammen,
outrora, a burguesia exercia, desmascaradamente, uma verdadeira
ditadura da minoria – essa sem aspas -, os parlamentos eram exclusivamente
eleitos pelos cidadãos de fortuna, não existia nem direito de greve nem direito
de associação.
Presentemente, há
direito de greve, há direito de associação, a burguesia exerce, não mais
desmascaradamente senão apenas mascadaramente, sua verdadeira ditadura da
minoria, os parlamentos são eleitos por sufrágio universal, secreto, livre e
direto, e não apenas pelos cidadãos de fortuna.
„Todas essas conquistas democráticas foram arrancadas
pelo movimento dos trabalhadores, ao preço de lutas freqüentemente sangrentas.“
Consegüintemente :
le
terme “dictature” choque aujourd’hui, sendo que o escorregão de Bensaïd
resulta, então, justificado, pois, em verdade, se bem verificado, não
se trata de um escorregão, mas sim do fato de que “esquece-se, simplesmente, de recolocar o termo “ditadura” no contexto
da época”.
Acerca do papel da
“democracia na transição”, François
Vercammen conclui, então, “desmascaradamente”,
ao leitor:
“O exercício mais amplo dos direitos democráticos na
sociedade de transição não tem somente por função impedir a critalização de uma
burocracia.
Essa função é, ao mesmo tempo, uma função econômica : uma
economia orientada rumo à satisfação das necessidades não pode funcionar
segundo os comandos de um aparelho de funcionários. ...
Democracia política, satisfação das necessidade e
emancipação dos indivíduos estão, estreitamente, imbricadas.
A democracia é o único meio para a sociedade tomar seu
destino nas mãos, começar a se desembaraçar de toda a maquinaria estatal que a
enquadra e a oprime.
É pela mesma razão
o único meio para cada homem e cada mulher dessa sociedade se realisar,
tornando-se, por assim, dizer proprietário privado do patrimônio coletivo(p.
59).
É-o na medida em que esse patrimônio coletivo será ao
mesmo tempo “privado” que ele será coletivo, não no papel, mas na vida real(p.
60).”[19]
Eis aqui um
impressionante colôsso analítico, equacionado por François Vercammen, em
conjunto com Alain Tondeur, em relação aos “direitos democráticos na
sociedade de transição”, confirmado, percucientemente, com suas
seguintes concepções, em matéria de “liberdade total” de organização e
atuação de todos os partidos políticos no contexto de sua “Democracia Socialista”:
“Marx
falava da necessidade para a classe trabalhadora de se constituir em partido
político.
Porém,
ao dizer isso, ele tinha em mente não a forma organizativa do partido, senão a
consciência de pertencer a uma classe.
Nesse
sentido, existe um partido, um campo de oprimidos, não no sentido de que é
necessário a essa classe um único partido de vanguarda para representá-la.
Pretender
encontrar em Marx um argumento do monopartidismo revela má-fé.
Por quê ?
É, efetivamente,
surpreendente verificar que o maior expoente político do SU-QI da atualidade não
compreende o porquê de não poder existir “liberdade
total de organizar... os partidos” nem
“florescimento pleno e completo dos
direitos democráticos das pessoas”, tendo-se em conta a experiência
histórico-efetiva dos processos revolucionários do proletariado que conduzem à Ditadura
Revolucionária do Proletariado, na medida em que essa última supõe,
necessariamente, formas claras de supressão política em face das forças
político-partidárias contra-revolucionárias restauracionistas.
Nesse sentido, Marx e Engels esforçaram-se por elaborar,
ao longo de mais de cinqüenta anos de investigações revolucionárias concretas,
uma concepção clara e precisa das tarefas do proletariado revolucionário em
face do fenômeno estatal.
Já em sua obra a Miséria da Filosofia, produzida
entre dezembro de 1846 e abril de 1847, Karl Marx afirmou que a
tarefa central da classe trabalhadora seria a de lutar por estabelecer uma
associação livre e igual de produtores que excluisse as classes sociais e seus
antagonismos.
Uma vez estabelecida esse nova situação social, já deixaria de existir o
poder político propriamente dito, já que esse último é a síntese oficial das
contradições de classes na sociedade civil burguesa.[23]
Com a publicação do Manifesto Comunista, escritos por Marx e
Engels em novembro de 1847, resultou nitidamente claro que a fase geral
de desenvolvimento do proletariado, conduzida no quadro de uma guerra civil
mais ou menos oculta, haveria de explodir em uma revolução aberta que teria
como objetivo a derrubada violenta da burguesia e o estabelecimento de seu
próprio domínio político-proletário.[24]
O primeiro passo da revolução proletária deveria ser, assim, a elevação do
proletariado em classe dominante, conquistando sua democracia, i.e.
conquistando a soberania proletária, servindo-se de sua supremacia política
para arrancar da burguesia, pouco a pouco, todo o capital e concentrar todos os
instrumentos de produção nas mãos do novo Estado Proletário, i.e. do
proletariado mesmo, organizado enquanto classe dominante, aumentando com a
máxima rapidez possível a massa das forças produtivas.
Nesse sentido, o Estado, para Marx e Engels, no quadro da irrupção
da revolução proletária, seria, pois, o próprio proletariado organizado
enquanto classe dominante e opressora da antiga classe exploradora no poder,
i.e. a burguesia.
Tratar-se-ia, pois, agora de um Estado em via de extinção, organizado de
forma a ser colocado a serviço da repressão da imensa maioria do povo contra a
ínfima minoria dos modernos escravistas, i.e. os proprietários fundiários e
capitalistas, com o objetivo de introdução de medidas transicionais rumo a uma
sociedade socialista.[25]
Detalhando ainda mais precisamente sua concepção acerca do Estado em face
das revoluções proletárias, Karl Marx elaborou, em sua obra
intitulada O 18 Brumário de Luís Bonaparte, redigida entre dezembro de 1851
e março de 1852, o balanço histórico das primeiras revoluções proletárias
européias de 1848 a 1851.
Nessa sede, Marx assinalou que a revolução do proletariado, trabalhando
metódica e progressivamente, teria empurrado, inicialmente, o Poder
Legislativo para poder derrubá-lo, seguindo, então, imediatamente,
adiante em sua luta contra o Poder Executivo, a fim de reduzí-lo
à sua expressão mais pura, isolá-lo, levantando-se diante desse último,
entrevisto como o único obstáculo, concentrando contra ele todas as forças de
destruição da revolução.[26]
A partir daqui, passou a tornar-se mais claro o posicionamento de que as
revoluções do proletariado deveriam destruir, despedaçar, demolir a máquina
estatal burguesa, o poder do Estado Burguês, concepção essa que,
como se vê, a direção do SU-QI renegou absolutamente, através
de um
escorregão rumo à Democracia Socialista.
Esse ponto decisivo da revolução proletária, Lenin viria a considerar,
posteriormente, como o traço prinicipal e fundamental da doutrina de Marx sobre
o Estado (glavnoe, ocnovnoe v utchenii marksizma o gosudarstve), traço
esse plenamente desnaturado e esquecido pelos teóricos sociais-democrátas mais
célebres da II Internacional, novos e velhos ideólogos dos Partidos
Comunistas Stalinizados, gramscianos de todas as espécies e
nacionalidades e, igualmente, dirigentes políticos e intelectuais do Secretariado
Unificado da Quarta Internacional(SU-QI).[27]
Em sua carta de 5 de março de 1852, dirigida a Joseph Weydemeyer, Marx assinalou,
então, que sua contribuição particular e inovadora para a doutrina da luta de
classes foi, efetivamente, o de
esclarecer que, estando as classes sociais ligadas a determinadas fases de
desenvolvimento histórico da produção econômica, a luta travada entre elas
haveria de conduzir, inevitavelmente, à Ditadura Revolucionária do Proletariado, entendida
essa última tão somente como uma passagem rumo à supressão de todas as classes
e o estabelecimento de uma sociedade sem classes.[28]
Tal colocação
destacou, claramente, a imprescindibilidade de edificação de um Estado
democrático sim, porém de novo gênero – i.e. um Estado para os proletários e
não para os proprietários capitalistas em geral -, e, essencialmente,
ditatorial de novo gênero, para o abatimento e a aniquilação completa da
burguesia.[29]
Confrontada a
concepção de Lenin acerca do tema com essa malsinada e absurda declaração de
François
Vercammen, resulta clarevidente qual é, efetivamente, o caminho que
percorre o SU-QI na atualidade.
Com efeito,
permanentemente preocupado em fixar os fundamentos do Direito Proletário Revolucionário
no processo de edificação da Ditadura Revolucionária dos Trabalhadores,
forma transicional para o socialismo, Lenin, dirigindo-se a Dimitri
Kurski, Comissário do Povo da Justiça que substitui Piotr
Stutchka, demonstrou compreender profundamente a essência do Direito
Burguês, sabendo apontar, com perspicácia, uma alternativa concreta
capaz de superá-lo :
“Nós não reconhecemos nada de “privado”.
Para nós, tudo, no domínio da economia, é de natureza
jurídico-pública, e não privada.
Permitimos apenas o capitalismo de Estado.
Conseqüentemente, devemos fazer uso ampliado da
ingerência estatal nas relações “jurídico-privadas”, alargando o Direito do
Estado de dissolver contratos “privados”.
No que concerne às “relações de Direito Civil”, devemos
aplicar não o Corpus Iuris Romani, mas sim nossa consciência revolucionária do
Direito, sistematicamente, insistentemente, rigorosamente, demonstrando em uma
série de processos paradigmáticos como deve-se proceder com compreensão e
energia.”[30]
Tendo-se em conta
a efetiva doutrina de Marx e Engels, Lenin e Trotsky, acerca
do Estado, da Democracia e do Direito no contexto da época histórica das
revoluções proletário-socialistas já é possível entrever-se como a própria
expressão linguística Democracia Socialista ou Socialismo
Democrático representa uma contradição
em si e por si mesmo.
Com efeito,
levando-se em conta os fundamentos normativos da Constituição de Lenin e Sverdlov,
o socialismo, ou ainda a primeira fase da sociedade comunista,
implicaria a superação da fase transitória relativa à Ditadura Revolucionária do
Proletariado, incorporadora da mais ampla e historicamente superior Soberania
proletária, destinada à construção de uma sociedade sem classes e sem
Estado.[31]
Com efeito, Karl Marx assinalou, em sua Crítica ao Programa de Gotha, que
entre a sociedade capitalista e a sociedade comunista, existe um período de
transformação revolucionária de uma em outra, um período de transição, no qual
o Estado não poderia ser outro senão a Ditadura Revolucionária do Proletariado.[32]
Emergindo do seio do capitalismo, trazendo os vestígios da velha sociedade
de cujo âmbito procede, essa Ditadura pode conduzir, segundo Marx,
à primeira fase, i.e. à fase inferior do comunismo, ou, como se diz comumente,
ao socialismo.
Nessa primeira fase, se princípios advindos do Direito Proletário
passarão a reger as relações de propriedade dos meios sociais de produção,
consagrando sua estatização, regras oriundas do antigo Direito Burguês, que
pressupõe a desigualdade material dos homens, seguirão existindo como regulador
no domínio da repartição dos bens de consumo e necessários à vida, segundo o
seguinte axioma de conteúdo ainda expressamente jurídico-burguês : “para
igual quantidade de trabalho, igual quantidade de produtos”.[33]
Assim, o socialismo, pressupondo a superação da fase transitória da Ditadura
Revolucionária do Proletariado, incorporadora essa última da mais ampla
Soberania
proletária, não pode, entretanto, ainda realizar integralmente a
justiça material e a igualdade real, na medida em que sigam existindo as
injustas diferenças de riqueza, embora não seja mais possível, sob sua égide,
perpetrar-se a exploração capitalista do homem pelo homem.
Apenas na fase mais elevada da sociedade comunista - ou, como se diz
habitualmente, no quadro do comunismo -, quando resulta eliminada à
subordinação do homem à divisão do trabalho, bem como o contraste entre
trabalho físico e trabalho intelectual, deixando o trabalho de ser um meio de
subsistência para tornar-se a primeira necessidade de vida, apenas então o
horizonte do Direito Burguês pode ser totalmente superado no domínio da
repartição dos produtos econômicos, podendo os homens trabalharem para a
sociedade sem qualquer Direito e sem qualquer norma
jurídica, segundo o seguinte princípio comunista de convivência social : “de
cada um segundo sua capacidade, a cada um segundo sua necessidade”.[34]
No curso da consolidação das primeira e segunda fases da sociedade
comunista, já não existirão as forças burguesas e latifundiárias a serem
oprimidas, que tornam indispensáveis uma força repressiva particular exercida
contra elas pelas grandes massas oprimidas, i.e. um Estado Proletário, e
conseqüentemente – cumpriria acrescentar -, na medida em que desaparecessem
progressivamente as diferenças de riqueza e as desigualdades materiais, seria
possível caminhar-se rumo à própria extinção de toda e qualquer forma de Direito
ou fenômeno jurídico.
Sendo assim, procedendo dessa forma, o proletariado percorre, entretanto,
um processo de supressão de si mesmo enquanto classe, abrindo a perspectiva de
abolição de toda diferença e antagonismo de classe e, por consegüinte, de extinção
do Estado e do Direito Proletários enquanto tais, bem como de sua
correspondente forma política, i.e. da Soberania proletária, rumo à
edificação de uma sociedade comunista.
Nesse quadro, o primeiro ato com o qual o Estado se apresentaria
efetivamente como autêntico representante de toda a sociedade, i.e. através da
tomada de posse de todos os meios de produção em nome da sociedade, já deve
representar, segundo Engels, o seu último ato
independente enquanto Estado.
No lugar do governo sobre as pessoas, tende a surgir a administração sobre
as coisas e a direção consciente dos processos produtivos.[35]
Sendo assim, é correto afirmar que o Estado não é abolido – tal como o
afirmam os anarquistas, porém sim que ele se extingue.[36]
Como tornar-se possível falar, de Democracia Socialista ou mesmo Socialismo
Democrático é algo que podem explicar apenas os expoentes intelectuais
mais renomados do Secretariado Unificado da Quarta Internacional(SU-QI), que
deformaram e rejeitam, agora, crescentemente, os fundamentos essenciais da
doutrina marxista, em favor de sua capitulação à ideologia gramsciana, veiculada
pela corrente de correção, atualização e superação do marxismo, no sentido
meta-marxista franco-gramsciano de Actuel Marx.
Dê-se provas ao leitor do que aqui se afirma, trazendo-se à luz os próprios
argumentos acerca do tema, elaborados pela mais célebre dirigente político e
intelectual da Ligue Communiste Révolutionnaire (LCR), e, por consegüinte,
também do SU-QI da atualidade, Mestre de Conferências da Universidade de
Paris IX – Dauphine (Sorbonne), Catherine Samary.
Escrevendo nas páginas da Revista INPREKORR, órgão oficial do SU-QI,
Samary assinala, de modo meridianamente claro, em seu artigo, de
janeiro de 1998, intitulado Revolução de Outubro : Problemas Econômicos
e Sociais :
„No contexto
de um ambiente hostil, de guerra civil, a questão da democracia era, ao mesmo
tempo, decisiva e difícil.
Não se deve
confundir as medidas de exceção adotadas pelos bolcheviques em tais condições
com aquelas surgidas sob Stálin, no quadro da „Construção do Socialismo“.
Porém, pode-se
compreender como a proibição das frações e dos partidos ou a dissolução da
constituinte favoreceu a degeneração stalinista.
Além disso,
nas medidas tomadas não se tratava sempre de casos de necessidade.
Depois da
tomada do poder, não havia nenhuma experiência e também nenhum debate acerca da
questão da Democracia Socialista e do Estado de Direito.
Hoje, pode-se
verificar até que ponto o conceito de „Democracia dos Trabalhadores“ (que foi
interpretada como a „boa versão“ da Ditadura do Proletariado) foi pervertido e
limitado ...
É
imprescindível existir uma confrontação de idéias (também com aqueles que se
posicionam hostilmente contra o socialismo).
Uma coisa
diferente significa repressão política de pessoas, que lutam armadas contra o
projeto socialista(p. 19).
O „Outubro“
não representa nenhum modelo.
Apesar disso,
não podemos enterrar tão rapidamente nem o conceito de crise revolucionária nem
a concepção de duplo-poder(p.20).“[37]
Eis como Catherine
Samary observa que, depois da tomada do poder, os bolcheviques não
possuíam nenhuma experiência no debate acerca da Democracia Socialista e do Estado
de Direito, i.e. acerca de um Estado de Direito Democrático e Socialista,
ou ainda um Estado Socialista, Democrático de Direito (!) etc. etc., razão
pela qual o „Outubro“ não representaria mais nenhum modelo a ser
reivindicado, defendido e perseguido.
Conclusão imediata da maior dirigente e intelectual do SU-QI da atualidade,
seguindo, fielmente, os passos de seu inspirador Ernst Mandel, procurando,
porém, superá-lo, no quadro do atual colaboracionismo do SU-QI com o
franco-gramscismo meta-marxista de Actuel Marx : „É imprescindível existir uma confrontação de idéias (também com
aqueles que se posicionam hostilmente contra o socialismo). Uma coisa diferente
significa repressão política de pessoas, que lutam armadas contra o projeto
socialista.“, caso contrário não será possível rumar-se para o horizonte da
Democracia
Socialista e o Estado de Direito, situados para
além dos confins de todas as experiências e desilusões históricas, à margem da
eternidade, nos longes mais afastados dos descortinos humanos, ali onde a
pureza dos conceitos gerais metafísicos, absolutamente racionais, resplandece
nas entreabertas das luzes celestiais misteriosas do conhecimento
transcendental, válido em si, por si e para si mesmo.
Em suma, para que
haja Democracia
Socialista e Estado de Direito, idéias mestras e
norteadoras da política e da doutrina atual do SU-QI – em franca
rejeição e afastamento do conceito marxista relativo à Ditadura do Proletariado, segundo
Catherine
Samary, „interpretada na sua boa
versão como “Democracia dos
Trabalhadores” – é imprescindível que os proletários revolucionários
concedam direitos políticos ilimitados também a todos aqueles que se posicionam
„hostilmente contra o socialismo“, i.e.
também às forças contra-revolucionárias capitalistas-restauracionistas, até o
momento em que essas, certamente, recorrerão às armas e desencadearão uma
ofensiva militar contra o poder público instaurado pela revolução
socialista-proletária.[38]
Com base nesses
fundamentos, cumpre afirmar que a direção do SU-QI percorreu uma
trajetória que foi do “caminho simétrico” àquele do Euro-Comunismo
– tal como observado por Moreno, em fins da década de 70 –
rumo, diríamos assim, não propriamente ao “caminho idêntico” ao do Euro-Comunismo
– mesmo porque esse último faliu em seu projeto essencial, antes mesmo
de conhecer sua conformação mais acabada.
Mais precisamente
: o SU-QI
percorreu, nas últimas décadas, e segue, presentemente, percorrendo uma
trajetória que, partindo desse “caminho simétrico”, veio a
desembocar, cada vez mais irreversivelmente, no caminho da capitulação à
ideologia original que inspirou o Euro-Comunismo nos anos 70, i.e. o caminho
da capitulação ao gramiscismo, enquanto doutrina essencialmente
renegadora do trotskysmo, parasitária e revisionista de toda tradição
proletário-revolucionária marxista-leninista, o que lhe conduziu a empreender,
definitivamente, seu “pequeno escorregão” de abandono
integral da Ditadura do Proletariado em prol da Democracia Socialista.[39]
Sendo assim, o SU-QI,
absorvendo e reproduzindo a ideologia gramisciana, passou a
adotar, nas últimas décadas, teorias e práticas radicalmente antagônicas às
tarefas de organização da revolução violenta dos trabalhadores para a
destruição, desmantelamento, demolição do Estado Burguês, para a Sprengung
der bürgerlichen Staatsmacht, tal como diria Engels, i.e. para a implosão,
o
fazer saltar pelos ares do poder do Estado Burguês, visando à
edificação da Ditadura do Proletariado, enquanto instituição estatal
proletária eminentemente transitória, incorporadora da mais ampla Soberania
proletária, voltada ao fomento da abolição de todas as classes e
estabelecimento de uma sociedade sem exploração do homem pelo homem.[40]
Convém demonstrar,
nesse passo, como tal caracterização histórico-política acerca da trajetória do
SU-QI
encontra seu fundamento teórico mais coerente e cristalino no sentido e
significado conteudístico das posições por ele defendidas, nas últimas décadas.
Com efeito, a
alegoria conceitual de Nahuel Moreno acerca do “caminho
simétrico”, percorrido pelo SU-QI em face do Euro-Comunismo,
é valiosíssima e teve como pressuposto mínimo e elementar, no quadro
dos anos 70, a referência e orientação - ainda que canhestra, tacanha,
deformada, i.e. meramente formal -, dessa organização trotskysta internacional
na concepção de revolução dos trabalhadores, deflagrada contra as instituições
democrático-burguesas, bem como na Ditadura Revolucionária do Proletário.
Nesse sentido,
escreveu Nahuel Moreno, de maneira plenamente detalhada, acerca do
estágio de desvirtuação teórica e política orquestrada pela direção do SU-QI,
nos idos de 1979 :
“Essa
corrente do movimento trotskysta está seguindo um caminho simétrico àquele do
Euro-Comunismo : tanto o programa do SU-QI quanto o dos Partidos Comunistas
ocidentais são o da “liberdade política ilimitada”, ainda que o primeiro
apresente-a como um programa para a Ditadura do Proletariado, enquanto que os
últimos levantam-na no contexto do sistema capitalista e transitório(p. 28). ...
Hoje, podemos dizer que o Euro-comunismo e as atuais
políticas do SU-QI são, grosso modo, fenômenos simétricos, motivados pelas
mesmas razões sócio-políticas : os avanços do movimento europeu dos
trabalhadores e o fardo dos preconceitos democrático-burgueses das massas.
Eles são simétricos, porém não são idênticos.
Contra os eurocomunistas, os companheiros do SU-QI
defendem, formalmente, a Ditadura do Proletariado e a necessidade da revolução
dos trabalhadores contra as instituições democrático-burguesas, alegando
enfaticamente serem os guardiães dos ensinamentos de Lenin e Trotsky.
Eles tentam convencer os trabalhadores e a opinião
pública de que a Ditadura do Proletariado, tal como a definem – mais
legitimada, judiciosa, generosa, libertária e democrática em relação aos
partidos contra-revolucionários –, é a Ditadura, contemplada por nossos
mestres(p. 29).
Contudo, esse não é o caso.
A maioria do SU-QI tem o mesmo programa para a Ditadura
do Proletariado que os eurocomunistas possuem para o socialismo e o sistema
capitalista.
A maioria do SU-QI e os eurocomunistas estão em completo
acordo com o sistema multi-partidário e a concessão de absoluta liberdade aos
partidos burgueses em todos os estágios da luta de classes, contrariamente às
concepções marxistas tradicionais(p. 30)”[41]
E, concluindo, sua
análise política acerca da orientação do SU-QI no final dos anos 70, Moreno
assinalou:
“Para resumir
: o SU-QI não responde às pressões eurocomunistas do modo segundo o qual um
trotskysta deveria fazê-lo, porém aceita em grande parte suas premissas,
declarando que :
« Nós
ainda apoiamos a Ditadura do Proletariado e a revolução dos trabalhadores,
porém eliminemos as confusões : nossa Ditadura dará “liberdade política
ilimitada” imediata a todos os cidadãos, incluindo os contra-revolucionários,
substituindo parlamentos com soviets, os quais serão muito mais democráticos,
abertos à toda a população e não apenas aos trabalhadores ».
O
companheiro Mandel fortalece essa capitulação ao Euro-Comunismo, declarando que
é “um defensor intransigente do sufrágio universal antes, durante e depois da
tomada do poder pelos trabalhadores(El País, Madrid, 7 de Agosto de 1978)(p.
30)”.[42]
O impacto colossal
produzido pela bancarrota e derradeira dissolução dos Estados Soviéticos degenerados
pelo stalinismo, bem como a expansão da remundialização do capitalismo financeiro
na últimas décadas, lançaram as bases para a consumação da mais aberta
capitulação da direção do SU-QI ao gramscismo, e,
através desse último, também às representações teóricas e políticas da
ideologia capitalista-imperialista, plasmada, da maneira mais refinada,
nas instituições jurídico-públicas e
privadas do Direito e do Estado Burgueses.
Tais novos
fenômenos sócio-econômicos e político-institucionais, dinamizados pela força da
pressão incomensuravemente maior dos preconceitos democrático-burgueses das
massas proletárias ocidentais, revivificados no quadro da ofensiva imperialista
neoliberal remundializante, pressionaram e seguem pressionando o SU-QI
a deformar e abandonar, da maneira mais absoluta, todos os principais elementos
da doutrina de emancipação socialista-revolucionária do proletariado.
Nesse quadro, é
precisamente correto afirmar que, para seguir existindo enquanto organização
política situada oportunisticamente no seio do movimento dos trabalhadores e
das massas exploradas, o SU-QI foi forçado a mover-se, no
curso das últimas décadas, do “caminho simétrico” àquele do Euro-Comunismo,
em direção ao sendeiro do acolhimento, absorção e reprodução da ideologia
original que inspirou o Euro-Comunismo nos anos 70, i.e. o
caminho da capitulação ao gramiscismo, enquanto doutrina revisionista e
parasitária da tradição proletário-revolucionária marxista, essencialmente
hostil ao trotskysmo e mais refinadamente adaptada aos preconceitos
democrático-burgueses que dominam e oprimem as massas proletárias dos países
capitalistas-imperialistas, bem como adicionalmente, aquelas dos principais
países situados na periferia da remundialização capitalista-imperialista.
O intuito de tal
iniciativa de aliança de forças ecléticas de esquerda – que parte de bases
mao-stalinistas recicladas e encontra sua coroação mais ostensiva no
franco-gramscismo meta-marxista de Actuel Marx - não é outro senão o de
tentar dissipar, na mais plena cumplicidade, os vestígios do “crime teórico, político e histórico” que
perpetraram antes, de maneira mais velada, e, agora, com mais numerosas
agravantes, os principais dirigentes do SU-QI contra a doutrina
revolucionária de Marx e Engels, Lenin e Trotsky.
Cabe, agora,
portanto, demonstrar, cabal e literalmente, ao leitor interessado, lançando mão
dos próprios posicionamentos de outro preclaro teórico da Ligue Communiste Révolutionnaire
(LCR), e, de igual forma, um dos mais renomados intelectuais e,
poder-se-ia dizer também, um dos certamente mais ínclitos especialistas em
matérias bíblico-messiânicas do Secretariado Unificado Internacional da
Quarta Internacional (SU-QI) da atualidade, célebre professor da Universidade
de Paris – Nanterre, Michaël Löwy, como esse colaboracionismo
“trotskysta-gramsciano”
- ou ainda um pouco mais ousadamente – como esse colaboracionismo “trotskysta-gramsciano”
com o “neo-mao-stalinismo democrático-humanista” tornou-se plenamente
viável, sob a base da atualização, correção e superação do marxismo.
Com efeito, Michaël
Löwy, em seu célebre artigo O “Manifesto” no Passado e no Presente, escreve
da seguinte maneira, nas colunas principais do órgão oficial, Revista
INPREKORR, Correspondência de Imprensa Internacional, do SU-QI,
em maio de 1998, em saudação aos 150 anos do Manifesto do Partido Comunista, de
Marx
e Engels :
“Enquanto
o capitalismo existir, o marxismo foi, é e será uma ferramenta irrenunciável
para a compreensão e transformação do mundo. ...
Isso
não significa, naturalmente, que na obra de Marx não existam problemas e
limites ou que os marxistas nada possam aprender de outras experiências e
formas do pensamento emancipatório.
O
“Manifesto do Partido Comunista” é o mais conhecido dos escritos marxistas.
Nenhum
outro livro, a não ser a Bíblia, é tão freqüentemente traduzido e repetidamente
editado.
Com
a Bíblia, ele não tem, naturalmente, muito em comum, a não ser a denunciação
profética da injustiça social. Tal como Esaías e Jacó, Marx e Engels levantaram
sua voz contra os crimes dos ricos e dos poderosos, colocando-se ao lado dos
pobres e dos fracos ... Naturalmente, existem passagens, idéias e argumentos no
“Manifesto Comunista” que, entrementes, tornaram-se obsoletos, que precisam ser
criticados e desconstruídos (no original alemão : kritisiert und
dekonstruiert). Porém, a orientação essencial do documento, seu cerne central,
seu espírito – pois, existe, de fato, algo como o “espírito” de um escrito – é
não apenas ainda importante : ela é ainda mais
relevante do que há 150 anos ! ...(p. 21).
Por
outro lado, o documento padece de algumas insuficiências, que não decorrem de
excesso de zelo revolucionário, tal como a maioria dos críticos do marxismo
afirmam, senão, pelo contrário, da escassa distância crítica em relação à
civilização burguesa moderna e industrial.
Gostaria
aqui de dar alguns exemplos :
1.
De modo tipicamente eurocentrista,
Marx e Engels louvaram a burguesia. Ela teria impelido todas “as nações mais
bárbaras na civilização”. Marx e Engels pareciam considerar o domínio colonial
do ocidente como parte do papel histórico-“civilizador” da burguesia : “Tal
como o campo em relação à cidade, os países bárbaros e semi-bárbaros
tornaram-se dependentes dos países civilizados, os povos camponeses dos povos
burgueses, o oriente do ocidente.” ...
2.
Inspirados pelo “otimismo do livre
comércio” burguês e por uma metodologia inteiramente economista, Marx e Engels
pressupuseram, erroneamente, que : “As segregações e as oposições nacionais dos
povos desaparecem, mais e mais, com o desenvolvimento da burguesia, a liberdade
de comércio, o mercado mundial, a uniformidade da produção industrial e de seus
modos de vida respectivos”. ....
Marx
e Engels vangloriaram a burguesia por sua inigualável capacidade de desenvolver
as forças produtivas.
Marx
e Engels glorificaram a “subjulgação das forças da natureza” e a “cultivação de
partes do mundo inteiras”.
A
destruição do meio ambiente natural pela indústria capitalista, a ameaça ao
equilíbrio ecológico pelo desenvolvimento ilimitado das forças produtivas
situavam-se muito além do horizonte espirtual de Marx e Engels. ...
Essas
insuficiências foram, mais tarde, corrigidas apenas insatisfatoriamente por
Marx e Engels, como também por porsteriores marxistas.
Apenas
nas últimas décadas, com o surgimento do socialismo ecológico, foram
empreendidas sérias tentativas de integrar visões fundamentais da ecologia no
quadrante da teoria marxista.
Porém, apesar de todos esses erros e limitações, foram
corretas as presunções básicas do Manifesto Comunista ...(p. 22)“[43]
Identificando o
suposto sentido bíblico, profético e caritativo do Manifesto do Partido Comunista – posto
que Marx
e Engels colocaram-se “ao lado
dos pobres e dos fracos”, tal como fizeram-no Esaías e Jacó, à época do
Velho
Testamento – examinando, cuidadosamente, “as obsolescências, os problemas,
as insuficiências e os erros” do Manifesto do Partido Comunista, Michaël Löwy
procede à sua crítica e à sua desconstrução da obra mais conhecida de Marx
e Engels – anote-se bem, apenas menos divulgada do que as Escrituras
Sagradas -, colocando em evidência o
euro-centrismo, a inspiração pelo otimismo do livre cambismo
burguês, o método inteiramente
economicista dos autores do Manifesto do Partido Comunista.
Marx e Engels teriam, pois, segundo o crítico e “desconstrutivista” professor sorbonnard, Michaël Löwy, glorificado
e vangloriado o industrialismo positivístico da burguesia, tendo o problema
ecológico permanecido muito além de seus horizontes espirituais.
É verdadeiramente
sintomático e plenamente corente com o caminho de onde foi e para onde vai o SU-QI,
título do presente capítulo dessa investigação, o fato de que, em todas as
linhas de seu referido artigo intitulado O “Manifesto” no Passado e no Presente, de
maio de 1998, o nímiamente célebre expoente intelectual da atual Ligue
Communiste Révolutionnaire (LCR) e do Secretariado Unificado
Internacional da Quarta Internacional (SU-QI) não se tenha demonstrado
interessado em destacar, em letras garrafais, qual a importância da Ditadura
Revolucionária do Proletariado para a única grande, profunda e
essencial atualização, empreendida conjuntamente por Marx e
Engels, no Manifesto do Partido Comunista e em sua doutrina
dialético-materialista sobre o Estado, tendo como base a experiência revolucionária
dos communards
parisiens.
O mestre
intelectual mais pranteado e sobejamente venerado pela LCR Francesa e pelo SU-QI,
renomado internacionalmente nos dias que ocorrem por sua auréola intelectual
impávida e sobranceira em questões doutrinárias relativas ao marxismo,
pretendeu, evidentemente, de maneira propositada, ocultar ao leitor da INPREKKOR
o sentido e o significado político para o proletariado mundial do
evento revolucionário mais decisivo e mais instrutivo, ocorrido em seu próprio
país natal no curso do século XIX – i.e. a Commune de Paris -, que permitiu a Marx
e Engels, eles mesmos “corrigirem,
atualizarem e superarem”, em 24 de junho de 1872, no Prefácio à nova edição
alemã do Manifesto do Partido Comunista, sua concepção
revolucionário-proletária acerca do Estado.[44]
Como é, realmente,
possível que esse professor sorbonnard, dirigente do SU-QI e da LCR, candidato
à correção das insuficiências e obsolescências do Manifesto Partido Comunista, estreito
e fraternal aliado dos franco-gramscianos de Actuel Marx, no que
concerne às atividades de corrigir, atualizar e superar o marxismo, no sentido
do meta-marxismo,
possa ter desprezado, em seu artigo em destaque, a menção à única grande e
profunda alteração empreendida por Marx e Engels em sua concepção
revolucionário-proletária acerca do Estado, constante em seu Prefácio
ao Manifesto Comunista, de 24 de junho de 1872 ?
Michaël Löwy não afirma pretender, ele mesmo, examinar as insuficiências
e obsolescências, contidas no Manifesto do Partido Comunista, após
150 anos de seu aparecimento público ?
Porque, então, não
fez qualquer referência ao Prefácio ao Manifesto Comunista, de 24 de
junho de 1872 ?
O leitor atento e
mais avisado já percebeu, evidentemente, que Löwy dissimula,
grotescamente, o fato de que, na Comuna de Paris, Karl Marx entreviu
uma experiência histórica de incomparável relevância, a primeira tentativa de
revolução proletária voltada à destruição do Estado Burguês, um passo
adiante na revolução proletária mundial, um passo muito mais significativo do
que uma centena de programas e de formulações teóricas.
Esse professor
sorbonnard, Michaël Löwy, preocupado em decifrar o sentido
bíblico-profético e eclesiático-messiânico, bem como “as obsolescências, os problemas,
as insuficiências e os erros” do Manifesto do Partido Comunista, deixou
de dizer, adrede, que Marx e Engels consideraram,
eles mesmos, o Manifesto do Partido Comunista envelhecido, não há 50 anos depois de
sua vinda ao público, senão há apenas 25 anos transcorridos após seu
aparecimento, tendo em conta os novos eventos da Comuna de Paris.
Envelhecido, sim,
no preciso e particular aspecto de que a classe operária não se poderia
limitar, tal como afirmam Marx e Engels, a apenas conquistar,
ocupar ou apoderar-se, pura e simplesmente, de uma máquina estatal já pronta e
colocá-la em movimento para os seus próprios fins : seria indispensável para o
proletariado precisamente despedaçar, i.e. no original alemão zerbrechen,
tal máquina militar e burocrática do Estado, sendo essa a condição
preliminar de toda e qualquer revolução proletária e popular.[45]
Com argumentos
situados no quadrante oportunista do socialismo ecológico, Michaël Löwy demonstra,
pelo contrário, ser capaz de deslocar-se não apenas para uma dimensão
argumentativa “meta-marxista ou meta-engelsiana”, tal como se diz na
linguagem franco-gramsciana de Actuel Marx : ele demonstra que a
intelectualidade do SU-QI está apta para sublimar-se espiritualmente - pois, existe, de fato, algo como o
“espírito” de uma organização internacional ..., se se quiser parodiar um
dos profundos pensamentos críticos e desconstrutivos de Löwy –, i.e. para sublimar-se, portanto, um pouco mais acima e mais
além da fronteira espiritual do próprio gramscismo, i.e. no sentido do caminho
do gramscismo crítico ou do franco-gramscismo, i.e. o gramscismo
francês.
Esse pressuposto
lógico-epistêmico do socialismo ecológico, defendido por Löwy e
pelas direções da LCR e do SU-QI nos dias de hoje,
demonstra-se, realmente, como sendo imprescindível, para a mais perfeita
compatibilização dos trabalhos teóricos dos dirigentes e intelectuais do SU-QI
com aqueles dos meta-marxistas franco-gramscianos de Actuel Marx, pois
precisamente na crítica ao industrialismo positivístico do capitalismo,
supostamente presente esse último nas obras de Marx e Engels, e
alegadamente herdado por Antonio Gramsci, a ideologia ítalo-gramsciana
se transforma, mais original e propriamente, em franco-gramsciana.
Acerca desse tema,
cumpre apresentar ao leitor, suplementarmente, como o principal dirigente e
representante político do Secretariado Unificado da Quarta
Internacional (SU-QI) da atualidade, membro do Bureau Político do Partido
Operário Socialista, da Bélgica, François Vercammen, concorda com os
posicionamentos de Michaël Löwy sobre as insuficiências e obsolescências de Marx
e Engels, no que concerne ao socialismo ecológico.
Com efeito, François
Vercammen assinala, à maneira descontrutiva de Löwy, em seu mais profundo
e extenso trabalho teórico, realizado em colaboração com Alain Tondeur, intitulado
Reinventar
a Esperança. Um Socialismo da Libertação para o Século XXI :
„Os Verdes vêem no marxismo um culto da tecnologia e um
produtivismo.
Eles o censuram por não ter desenvolvido uma concepção
das relações entre a sociedade e a natureza alternativa àquela do capitalismo.
Em razão da crise ecológica, essa crítica tem um impacto
certeiro nos meios progressistas de hoje
...
É exato o fato de que Marx e Engels eram fascinados pelo
fantástico desenvolvimento das forças produtivas sob o capitalismo.
Nelas, eles viam a base material que permite à humanidade
sair da miséria e libertar-se do trabalho.
Eles reprovavam as crises periódicas de super-produção,
características do capitalismo, por entravar o desenvolvimento das forças
produtivas que o socialismo, portanto, permitiria „liberar“.
Podemos
censurá-los por essa formulação(p. 33) ...
É evidente que o projeto socialista está incompleto.
Como poderia ser diferente ? As ciências evoluem.
A humanidade evolui e novos problemas lhe são colocados.
Marx e Engels não conheciam a psicanálise nem a mecânica
quântica.
Esses avanços do conhecimento devem incitar a enriquecer
e a corrigir o projeto socialista, não a o abandonar.
Eles não conheciam também a ecologia, enquanto ciência
das interações nos eco-sistemas.
Eles não viveram a crise ecológica mundial, que apareceu
há apenas quinze anos atrás. ...
A correção mais importante a ser aportada ao programa socialista
é certamente aquela que decorre da crise ecológica(p. 36).
O objetivo do reexame necessário é, assim, bem definido :
trata-se de eliminar todo traço de produtivismo e de tecnocratismo nas relações
com a natureza(p.37).“[46]
Eis aí como François
Vercammen, despertando o leitor para as supostas devidas censuras a
serem dirigidas ao pensamento revolucionário de Marx e Engels, bem como
sobre a problemática do socialismo ecológico, surgere „completar, enriquecer e corrigir“ aquilo
que no marxismo é reprovável : sua alegada fascinação pelo desenvolvimento das
forças produtivas sob o capitalismo, ainda que ambos contemplassem nisso a base
material que permitiria à humanidade sair da miséria e libertar-se do trabalho,
assim também sua crítica às crises periódicas de super-produção,
características do capitalismo, por entravar o desenvolvimento das forças
produtivas que o socialismo, portanto, permitiria „liberar“.[47]
François Vercammen
preceitua, então, detalhadamente, como a correção, o
enriquecimento, a completação, da doutrina revolucionária marxista deve se
fundar, nos dias de hoje, em face dos avanços dos conhecimentos que Marx
e Engels não conheceram, a saber : a psicanálise terapêutica
freudiana, i.e. a teoria de Sigmund Freud, baseada na
intepretação dos sonhos e a análise distintiva entre o consciente e o
insconsciente, a mecânica quântica, teoria essa baseada, sob o aspecto
epistemológico, no princípio da incertitude de Werner Heisenberg, e,
por fim, a ecologia.[48]
O método segundo
qual Vercammen pretende formular seu paradoxal ecletismo
teórico-místico de vinculação das concepções de Sigmund Freud às
de Marx e Engels pode ser apenas considerado como absolutamente
estapafúrdio, posto que é sabido e consabido que o próprio guia
espiritual da psicanálise terapêutica sempre manifestou-se hostil,
reticente, repulsiva e ardilosamente em relação à doutrina do materialismo
histórico-dialético, golpeando-a, de maneira solerte, desleal, velhaca e
enganadora, em seus fundamentos mais gnosiologicamente essenciais.
Com efeito, Sigmund
Freud, em sua publicação intitulada “Nova Conseqüência das Aulas
de Introdução à Psicanálise”, surgida em 1933, teve a oportunidade de
formular, clara e expressamente, suas apreciações inteiramente desacertadas e
desconchavadas acerca do materialismo histórico-dialético de Marx e
Engels, tal como a seguir destaca-se :
“Na teoria marxista estranhei frases tais quais « o desenvolvimento das
formas sociais são um processo histórico-natural » ou « as transformações na
estratificação social emergem, variadamente, por meio de um processo
dialético».
Não estou seguro, de maneira nenhuma, de que entendo corretamente essas
afirmações.
Elas também não soam « materialisticamente », senão antes como uma cristalização daquela obscura
filosofia hegeliana, através de cuja escola também Marx percorreu.
Não sei como posso libertar-me de minha opinião leiga, acostumada a atribuir
a formação das classes na sociedade às lutas que, desde o início da história,
entre as hordas humanas, diferenciadas em elementos menores.
Entendo que as diferenças sociais foram, originariamente, diferenças
tribais e raciais.
A força do marxismo reside, ostensivamente, não sobre sua concepção da
história e na predição do futuro, que naquela se funda, mas sim na comprovação
aguçada da influência cogente que as relações econômicas dos seres humanos
possuem sobre seus comportamentos intelectuais, éticos e artísticos.
Uma série de contextos e dependências foi, assim, descoberta, a qual, até
então, havia sido quase inteiramente desconhecida.
Porém, não se pode admitir que os motivos econômicos sejam os únicos que
determinam o comportamento dos seres humanos na sociedade.
Já o fato indubitável de que diversas pessoas, raças, povos comportam-se,
diversamente, sob denominadas condições econômicas, exclui a dominação isolada
dos momentos econômicos.
Não se compreende, absolutamente, como se pode passar ao largo dos fatores
psicológicos, em cuja sede trata-se de reações de seres humanos vivos.”[49]
A despeito de tudo
isso e apesar disso ..., não obstante tudo isso e mesmo assim, como se tudo
isso não bastasse ..., François Vercammen, pretedendo
corrigir o industrialismo de Marx e Engels com a teoria da
interpretação dos sonhos e o princípio da incertitude,
indica, precisamente, com que contribuição em matéria de ciências ecológicas é,
efetivamente, possível enriquecer-se o marxismo :
„Uma contribuição dos Verdes é de ter popularizado a
idéia de que rentabilidade e a produtividade capitalistas são calculadas sobre
bases falsas, porque os custos da produção não contabilizam as degradações do
meio-ambiente ou o exaurimento dos recursos naturais.
Essa abordagem é fecunda. Estendida a outros domínios,
ela permitiria estabelecer, de maneira numérica, a irracionalidade do sistema
do ponto de vista da sociedade em seu conjunto.“[50]
Mais uma vez :
sintomático e corente com o caminho de onde foi e para onde vai o SU-QI,
título do presente capítulo dessa investigação, o fenômeno de que, em todas as linhas
de sua obra maior, realizada em colaboração com Alain Tondeur, intitulada
Reinventar
a Esperança. Um Socialismo da Libertação para o Século XXI, François Vercammen nada
dedique uma linha sequer ao fato de que Lenin, em O Estado e a Revolução, escrito
em agosto de 1917, fundado nas experiências históricas concretas da luta de
classes de emancipação do proletariado em todo mundo, operou uma profunda e
relevante alteração no programa socialista lançado por Marx e Engels, não no
sentido do alegado industrialismo positivístico contido nas obras desses dois
pensadores do proletariado.
Extraordinariamente
alucinado com a teoria da interpetração do sonhos de Freud, o princípio da
incertitude de Heinsenberg e as contribuições em matéria de
ecologia aportada pelo Verdes, François Vercammen distancia
a atenção do leitor da circunstância de que, com a deflagração da I
Guerra Mundial Imperialista de 1914, Lenin afirmou, peremptoriamente,
que a reserva de Marx, contida no 18 Brumário de Luis Napoleão, concernente
à necessidade de despedaçamento da máquina militar e burocrática do Estado
Burguês apenas no quadro das revoluções proletárias do continente
Europeu, também estava, essencialmente, envelhecida.
Na Inglaterra
e nos EUA, últimos países representantes da liberdade anglo-saxônica
- consagradora da ausência de um militarismo e de uma burocracia administrativa
já, pelo contrário, existentes nos Estados Burgueses da Europa
Continental na virada do século XX -, haviam emergido as mesmas
instituições militaristas e burocráticas características da violenta dominação
burguesa dos países do continente europeu.
A partir de então,
a condição preliminar de toda e qualquer revolução proletária, inclusive a
serem realizadas nesses dois países, passava a ser, igualmente, a ruptura e
destruição de suas máquinas estatais burguesas engendradas para reprimir
violentamente as classes exploradas e oprimidas.
Tal contexto,
colocou, em escala incomparavelmente mais ampla, a atual tarefa de concentração
de todas as forças da revolução proletária para a destruição do poder dos Estados
Burgueses Imperialistas da atualidade.[51]
Ora, diante de
toda essa verdadeira desconstrução do Manifesto do Partido Comunista e do
projeto socialista de Marx e Engels, pelos chefes
ideológicos de maior calibre do SU-QI, da LCR Francesa, e do POS
Belga, haveriam de resultar evidentes as aspirações político-práticas,
pretensamente socialistas-ecológicas, de renovação, atualização, correção e
superação do marxismo.
Com efeito, Michaël
Löwy teve já a oportunidade de as retirar, da gibeira de seu paletó
acadêmico – não, entretanto, naturalmente,
como os tantos naturalmentes de Löwy,
a partir da experiência histórico-material da luta de classes revolucionária de
emancipação do proletariado -, a fim de oferecê-las ao conhecimento de todo
público interessado na leitura da Revista INPREKORR :
“Marx e Engels levantaram não apenas :
Proletários de todo mundo uni-vos !, na conclusão de seu
Manifesto.
Eles tentaram também criar uma expressão concreta e
organizada para a solidariedade internacional, inicialmente através da
unificação dos revolucionários alemães, franceses e ingleses na Liga dos
Comunistas, em 1847 e 1848 e, mais tarde, através de sua contribuição para
construção da Associação Internacional dos Trabalhadores (1864). ...
Hoje, os problemas prementes de nosso tempo são
internacionais, mais do que no passado e muito mais do que no tempo da redação
do “Manifesto”. ... (p. 22)
Está
na hora de um novo início. Está na hora de levantar as melhores tradições
internacionalistas do passado.
Aqui e ali, revelam-se as sementes de um novo
internacionalismo, independente de Estados ou alianças militares.
Sindicalistas radicais, socialistas de esquerda,
comunistas desestalinizados, trotskystas não sectários e anarquistas procuram
por caminhos para renovar as tradições do internacionalismo proletário.
Novas sensibilidades internacionalistas surgem em
movimento sociais com projeção planetária, tal como o feminismo e a ecologia, o
movimento anti-racista ou as organizações não-governamentais (ONGs), que lutam
pelos direitos humanos ou pela solidariedade com o Terceiro Mundo. ...(p. 23)“[52]
Sintetize-se,
portanto, em termos claros, três caracterizações :
I. A direção do SU-QI regride do “caminho
simétrico” àquele do Euro-Comunisto ao caminho da capitulação ao
gramiscismo, enquanto doutrina revisionista e parasitária da tradição
proletário-revolucionária marxista, essencialmente hostil ao trotskysmo e mais
refinadamente adaptada aos preconceitos democrático-burgueses que dominam e
oprimem as massas proletárias dos países capitalistas-imperialistas, bem como
adicionalmente, aquelas dos principais países situados na periferia do processo
de remundialização capitalista-imperialista. Para percorrer esse sentido, a
direção do SU-QI empreendeu um “pequeno escorregão” de abandono
integral da Ditadura do Proletariado em prol da Democracia Socialista ;
II. A direção do SU-QI desvia-se dos princípios
fundamentais relacionados com o fomento da revolução violenta do proletário para
a destruição do Estado Burguês, i.e. do pensamento de Marx e Engels, Lenin
e Trotsky, para vegetar em torno do socialismo ecológico, do franco-gramscismo,
do projeto socialista psicanalítico-quântico-ecológico, ligado à
questão da interpretação dos sonhos, do princípio da incertitude e das
contribuições do Verdes à problemática ecológica ;
III. A direção do SU-QI assume a trajetória que vai do
caminho
da abdicação da herança da IV Internacional e da III Internacional, regressivamente,
àquele da refundação de uma suposta I Internacional, na medida em que
postula dever o movimento dos trabalhadores re-instituir, aquilo que o SU-QI
imagina ser, “uma nova Associação Internacional dos
Trabalhadores, tal como Karl Marx a vislumbrava no século passado”, reunindo, porém agora, ecologistas,
feministas, gramscianos, socialistas de esquerda, comunistas desestalinizados,
anarquistas, trotskystas não sectários, lutadores do movimento anti-racistas,
ativistas do movimento sem-terra, bem como organizações não-governamentais
(ONGs) que lutam pelos direitos humanos ou pela solidariedade com o Terceiro
Mundo.
Convém que o presente trabalho examine, agora,
essa terceira caracterização de maneira mais pormenorizada e, sobretudo,
aportando provas documentais irrefutáveis.
Analisando-se a
atualíssima consigna do SU-QI relativa à defesa de “Uma
Europa Social e Democrática dos Cidadãos”, tornar-se-á, meridianamente
claro, para o leitor o que propriamente, em sentido semântico-conceitual,
pretendem dizer os atuais parlamentares europeus da Ligue Communiste Révolutionnaire
(LCR), integrantes do grupo Esquerda Unitária Européia-Esquerda Verde
Nórdica(GUE-NGL) atuante no Parlamento da União Européia, nos
dias que correm, i.e. nos albores do novo milênio, às vésperas do XV
Congresso Mundial do SU-QI, quando discorrem, prolixa e repetidamente,
sobre uma ”Revolução Democrática e Social na Europa” e a “refundação
de
uma nova « Associação Internacional
dos Trabalhadores » :
“Uma Europa Social e Democrática pode ver a luz do dia
sem romper a coerção da atual construção européia, baseada nos critérios de
convergência escolhidos para a realização da união monetária ? ...
Nossa escolha, aquela de uma esquerda “100% à esquerda”,
é radicalmente diferente : ela se apóia nos movimentos sociais, na aspiração
democrática das populações a controlar a Europa que querem construir. ...
O déficit democrático da Europa é gritante : tais como
são concebidas, as instituições européias visam à subtrair-se à pressão
democrática e social das populações, para impedir ou retardar, no máximo
possível, a transferência, no plano comunitário, dos direitos sociais
adquiridos em nível nacional e o impacto das sociedades civis nacionais. As instituições da União Européia não possuem nenhuma
legitimidade democrática, operam sem nenhum outro controle senão aquele dos
governos, que as nomeiam, de um Banco Central ou dos lobbies das
multinacionais. O Parlamento Europeu não possui nenhum poder e as instâncias
executivas ou judiciárias não são responsáveis perante nenhum congresso que
represente os deputados eleitos pelas populações. Trata-se de uma clara ruptura
com a democracia parlamentar tradicional. Uma situação que exige uma revolução
democrática européia !
Porém, a palavra deve ser dada aos cidadãos que terão
competência para todas as questões.
Entre outras :
·
a redifinição das competências e das condições de eleição
de um verdadeiro Parlamento Europeu ;
·
a definição de uma efetiva complementaridade entre os
parlamentos nacionais e o assim chamado Parlamento Europeu ;
·
a adoção de regras que estabeleçam as instâncias
representativas da União Européia, o controle dos executivos pelas instâncias
legislativas, nacionais e européias ;
·
a criação de órgãos que assegurem a representação das
forças sindicais e associativas, dispondo de um direito de veto, em caso de
violações aos direitos sociais
fundamentais ;
·
direito à auto-determinação das nações oprimidas
(Irlanda, Córsega, País Basco), seu direito à secessão, caso elas o pretendam,
do Estado nacional que as oprime e seu direito à aderir novamente à União
Européia, se elas o escolherem. Essa revira-volta democrática radical é a única
que pode dar corpo à uma Europa dos Cidadãos.
Uma perspectiva que refutam todos os que falam de uma
“Europa Democrática”, não preconizando nada além do que pequenas reformas das
instituições atuais, incapazes de modificar um sistema concebido para impedir
as populações de fazer valer seus direitos. ...
Porém, uma revolução democrática européia poderá deter-se
às portas das empresas, das multinacionais, dos mercados financeiros ? ...
A democracia real supõe uma “Cidadania Econômica” na
empresa, um poder dos trabalhadores, condição de eficácia indispensável para
que os assalariados e as populações retomem o controle de uma máquina econômica
que opera contra seus interesses ....
A refundação e a reapropriação de um projeto socialista,
auto-gestionário, ecológico, feminista, que gire às costas à ditadura dos
mercados tal como na caricatura dos regimes stalinistas, forjar-se-á através de mobilizações de
envergadura, de novas práticas, de novas formas de organização.
Ela se baseará na mais ampla extensão da democracia na
sociedade.
A potência dos movimentos democráticos que sacodem, a
intervalos regulares, os países europeus, no momento em que são colocadas em
questão todas as conquistas, mostra que a exigência de democracia estará no centro de todo processo de ruptura
radical.
Assim, pode-se avançar rumo à uma planificação
democrática, apoiando-se sobre as necessidades expressadas pelos assalariados,
os funcionários, a população, evitando a estatização burocrática da economia e
da sociedade que existiu e fracassou nas economias de comando dos regimes
stalinistas.
Em face da construção da Europa capitalista, o movimento
operário deve se vincular à refundação de uma nova “Associação Internacional
dos Trabalhadores”, tal como a vislumbrava Karl Marx, no século passado.
É nesse combate que reassumirá vida o projeto socialista
que é o nosso :
uma Europa unida, democrática e socialista, verdadeiramente
capaz de unificar a Europa para a igualdade, a liberdade, a fraternidade,
colocando um fim às guerras, ao desemprego e à miséria.”[53]
O elenco de provas
do presente trabalho estaria necessariamente incompleto se deixasse de destacar
o posicionamento do maior dirigente e representante político do Secretariado
Unificado da Quarta Internacional (SU-QI) da atualidade, Diretor
da Fundação Ernest Mandel, François Vercammen, professor e coordenador do Groupe
Regards Critiques da Universidade de Lausanne, acerca da
questão decisiva relacionada com essa „Europa Social e Democrática“, de
que falam os parlamentares europeus da Ligue Communiste Révolutionnaire (LCR).
Cite-se, portanto,
aqui um extrato do bastante divulgado artigo de Vercammen, intitulado Contra
a União Européia e o Euro, Por uma Outra Europa, publicado na
contra-capa do órgão oficial, Revista INPREKORR, Correspondência de
Imprensa Internacional, do SU-QI, em julho-agosto de 1998 :
„A construção da União Européia ocorre atrás das costas
dos povos e contra as classes trabalhadoras.
A „Carta dos Direitos Sociais“, proposta pelos sindicatos
europeus, porém perseguida apenas semi-cordialmente, não teve nenhum lugar no
Tratado de Maastricht.
Consequência : a União Européia debuta com a consigna „O
Mercado Acima de Tudo“, sem normas sociais européias.
Esse é o portão de entrada para um desmonte abrangente
das conquistas.
A União Européia não tem caráter social e não terá jamais
caráter social.
Depois de cem anos, adquire espírito, em toda Europa, uma
nova „questão social“, inteiramente moderna. ...
ESTAMOS DIANTE DE UMA MUDANÇA !
Desde o fim do século XIX, o marxismo compreendeu que o
Estado Nacional havia se tornado muito estreito para um desenvolvimento
harmônico da economia e da sociedade.
Nossa resistência contra a União Européia ocorre em nome
de uma outra Europa, não em nome do Estado Nacional.
A União Européia não se opõe à globalização : ela nela
toma parte.
Ela não se opõe à „americanização“ de nossa sociedade :
ela a favorece.
Apenas uma outra Europa, uma Europa social (no original
alemão :
Nur ein anderes Europa, ein soziales), que rompa com o
capitalismo, encontrará a força e o impulso, de aniquilar „os velhos fantasmas“
do nosso continente e abrir uma esperança para o futuro.“[54]
Sob a alegação
oportunista e falaciosa de ser imprescindível lutar por “uma outra Europa”, François
Vercammen declara em seu artigo mencionado que essa Europa
deve ser uma “Europa Social”, afirmando a
possibilidade dessa mesma “Europa Social” romper com os
capitalismos-imperialistas europeu e norte-americano remundializantes.
Paralelamente, Vercammen
prefere não utilizar, em todo seu artigo, Contra a União Européia e o Euro,
Por uma Outra Europa, o incômodo e desagradável vocábulo “socialista”
ou “socialista dos trabalhadores”, a não ser para afirmar que “desde o seu nascimento, o movimento
socialista dos trabalhadores foi internacionalista”.
·
Essa Europa
Social e Democrática deverá consagrar a Cidadania Econômica na empresa, bem
como a „refundação e a reapropriação de
um projeto socialista, auto-gestionário, ecológico, feminista“, através da “criação de órgãos que assegurem a
representação das forças sindicais e associativas, dispondo de um direito de
veto, em caso de violações aos direitos
sociais fundamentais”, bem como „o
direito à auto-determinação das nações oprimidas (Irlanda, Córsega, País
Basco), seu direito à secessão, caso elas o pretendam, do Estado nacional que
as oprime e seu direito à aderir novamente à União Européia, se elas o
escolherem”.
Além disso, François
Vercammen prossegue escrevendo da seguinte forma sobre a Europa
Social e Democrática, em seu artigo O Euro Vem Aí – E Agora ?, publicado
na Revista
INPREKORR, em julho-agosto de 1998, sem tratar minimamente acerca da
perspectiva relacionada com a indispensabilidade da revolução socialista
violenta dos trabalhadores na Europa para sua emancipação.
Vercammen vegeta em torno de termos plenamente compatíveis com a
ideologia político-jurídica democrático-burguesa do capitalismo imperialista
remundializante :
„Porém, risco para cá, risco para lá, a União Monetária é
uma importante vitória do grande capital.
Ela abre o caminho para um afundamento das condições de
vida da maioria da população e para um desmonte histórico da democracia
política(p. 19). ...
A União Econômica e Monetária empurra para „fazer-se
política“, i.e. para a garantia do adensamento da atual direção dos
negócios.
Porém, em face das dificuldades externas e contradições
internas da União Européia, ela não fará funcionar essa „Europa Política“ em
sentido democrático.
Pelo contrário : tudo tende a que o Executivo se
fortaleça à custa do Legislativo e da Constituição(p. 21).
O movimento social e o movimento dos trabalhadores tem de
ter clareza acerca desses dois novos aspectos : uma ofensiva contra o fator
trabalho e um aparato de Estado europeu, estando em surgimento, que, de início
possui apenas pouca legitimidade. ...
Nós devemos estar alertas e, de tempo em tempo, sacar
nossas conclusões para o programa e a tática.
Se essa tendência prosseguir, será novamente colocada a
questão acerca dos objetivos políticos das lutas e, ainda mais profundamente, a
questão de como as consignas imediatas podem ser ligadas e dirigidas contra as
instituições de níveis nacional e europeu.
Quanto mais a construção de um novo poder político
europeu se delineia, no quadro da nova etapa da União Econômica e Monetária,
tanto mais importante se torna uma orientação „positiva“ para a elaboração de
uma alternativa, precisamente em relação à questão social (sobretudo o
desemprego) e à questão da democracia. ...(p. 22).“[55]
Nesse quadro do
mais profundo revisionismo do marxismo e adaptação às categorias ideológicas do
capitalismo-imperialista, através dos fundamentos lógicos do gramscismo, os
principais porta-vozes da Via Democrática e Pacífica ao Socialismo afirmam,
presentemente, que essa última não se trata, em verdade, da velha versão
bernsteiniana ou kautskyana da Via Reformista ao Socialismo, senão
propriamente de uma certa Via Revolucionária Pacífica ao Socialismo, na
medida em que tal estratégia democrática de passagem ao socialismo funda-se,
essencialmente, também sobre as manifestações das massas proletárias oprimidas
contra o Estado Burguês e o despotismo da exploração assegurada pelo
sistema econômico capitalista, bem como sobre a conquista da hegemonia
por parte das massas exploradas e dominadas das instituições da “sociedade
civil” e do “Estado”, no sentido precisamente concebido por Gramsci.
Tal Via
Democrática e Pacífica e pretensamente também Pacífico-Revolucionária ao
Socialismo excluiria ou substituiria, entretanto, a Via
Violenta da Ditadura do Proletariado, para atingir-se o socialismo, na
mesma medida e proporção em que a Democracia Socialista ou o Socialismo
Democrático excluiria ou substituiria, pretendidamente, o Socialismo
Ditatorial ou a Ditadura Socialista.
A mais perfeita
caracterização teórica desse contexto plenamente revisionista e parasitário do
marxismo, à maneira gramsciana, referente à possibilidade de uma Passagem
Pacífica ao Socialismo é formulada pelo mais destacado expoente de Actuel
Marx e um dos mais influentes pensadores franco-gramscianos dos Espaces
Marx Réseau International. Pour Une Construction Citoyenne du Monde, Jacques
Texier.
Segundo a
concepção de Jacques Texier, formulada da maneira mais plena e acabada em
sua obra intitulada Revolução e Democracia em Marx e Engels, vinda ao público em
1998, resultaria que :
“Acredita-se conhecer o pensamento político de Marx e de
Engels, porém dele não se conhece senão certos fragmentos que um certo
discípulo célebre isolou e integrou em um sistema (obs. Texier refere-se aqui à
Lenin).
É necessário, portanto, retomar tudo do zero ou quase do
zero.
O que é bem conhecido não é conhecido.
Daí a idéia de realizar uma investigação minuciosa,
segundo diferentes percursos, para retomar a questão central : Marx e Engels
subestimaram a democracia política como às vezes se diz ?
Não parece. Teóricos da revolução, eles, de início, foram
atraídos pelo problema das relações da revolução e da democracia.
Mas, existe um pensamento político de Marx e Engels e, se
existe, quais são suas categorias específicas ?
Revolução violenta e passagem pacífica, conquista da
democracia e ditadura do proletariado, revolução permanente e guerra de
posição, Estado instrumento de uma classe e relativa autonomia do Estado,
revolução pela base e revolução pelo ápice etc.
Os conceitos para pensar a política são numerosos e as
articulações, difíceis.
Primeira experiência decisiva : a revolução de 1848, com
o pano de fundo do modelo da Revolução Francesa.
Marx e Engels são blanquistas ? Em caso positivo,
permaneceram blanquistas?
Com efeito, seu pensamento político conheceu transformações
profundas no curso do século.
De 1885 a 1895, Engels introduziu algumas inovações
políticas nos quadros teórico-políticos introduzidos pela Comuna ?
Ainda aí, a importância das evoluções, se as tomamos em
consideração, coloca em causa a idéia do sistema.
Contrariamente a uma idéia fixa, trata-se de um
pensamento atento às instituições e às formas políticas.
Essa riqueza foi transmitida ?
Deploravelmente não.
Um livro célebre de Lenin, o Estado e a Revolução,
desempenha seu papel nesse empobrecimento.
Nele está ausente esse pensamento móvel, complexo,
constrastado, sensível às mutações históricas, multidimensional.”[56]
Esse trabalho de Texier,
perpassado desde seu primeiro ao seu último parágrafo pela ideologia
gramsciana
e defesa
da Via Democrática e Pacífica ao socialismo, possui nada menos do que
395 páginas densas, preenchidas com letras miúdas e diversas referências de
rodapé ao pensamento de Marx e Engels sobre a questão do Estado
e do caráter da Revolução Socialista do Proletariado.
Nos anexos dessa
mesma obra, Jacques Texier procura demonstrar que Marx e Engels foram
protagonistas - e continuaram sempre essencialmente a sê-lo - da possibilidade
de uma passagem pacífica ao socialismo.
No intróito do
primeiro anexo, intitulado La Possibilité d’un Passage Pacifique au
Socialisme. Bibliographie, Texier escreve da seguinte forma, procurando
persuadir o leitor mais desavisado acerca do desenvolvimento dos eventos
históricos da luta de classes no século XIX :
„Em 1847, Marx e Engels aderem a uma organização que se torna a Ligua dos
Comunistas.
Creio útil citar aqui um artigo atribuído a K. Schapper,
datado do ano de 1847, que demonstra a possibilidade de uma passagem pacífica
ao comunismo na Inglaterra já havia sido admitida na organização.
Essa é a referência bibliográfica Nr. 1.
A seguir, forneço duas referências de textos engelsianos
escritos na mesma época, que não são, propriamente, textos onde a possibilidade
de uma passagem pacífica é afirmada. Porém, no curso do processo revolucionário,
a primeira etapa consiste em conquistar a democracia e a transformação
socialista parece decorrer, naturalmente, na Inglaterra.
A quarta e a quinta referência são textos de Engels que
datam de 1850.
A passagem pacífica ao socialismo na Inglaterra é aí
claramente considerada. Porém, esses episódios pacíficos ingleses fazem parte
de um conjunto europeu que é revolucionário.
A sexta referência concerne a um escrito de Marx de 1852.
Esse é o primeiro no qual a tese é enunciada com uma total clareza.“[57]
Obviamente, Texier
não se dedica a colocar em relêvo o aperfeiçoamento da doutrina de Marx
e Engels, realizado por eles mesmos, acerca do Estado e da Revolução
Socialista do Proletariado, ocorrida em face da experiência da Comuna
de Paris.
De resto, o
posicionamento de Texier acerca do „discípulo célebre“ de Marx
e Engels, que teria, deploravelmente,
empobrecido a riqueza democrática do pensamento desses últimos
pensadores, em sua obra O Estado e a Revolução, manifesta,
de antemão e ostensivamente, seu repúdio ao pensamento
proletário-revolucionário de Lenin.
Com efeito, acerca
de Lenin,
escreveram, a uma só voz, Jacques Texier e seu mais leal
companheiro de armas meta-marxista franco-gramsciano, já mesmo em 1990, i.e nos
primeiros anos do colaboracionismo teórico-doutrinário e político-prático do Secretarido
Unificado da Quarta Internacional (SU-QI) com os intelectuais de Actuel
Marx :
„Se nos entregamos ao seu pensamento (i.e. ao pensamento
de Marx) sua face democrática (que, apesar de seus sarcasmos contra as
„litanias democráticas“, percorre toda a sua obra), descobre-se que ela diz
respeito a todos os aspectos da vida social e ameaça tanto as oligarquias do
poder estatal como as da riqueza.
Porém, isso não pode nos dispensar de perguntar a nós mesmos
sobre a parte do marxismo em seus aspectos negativos do comunismo, sobre o
papel desempenhado na orientação dessa experiência histórica e em seu fracasso,
em virtude de certas carências das análises de Marx.
Em primeiro lugar, por sua representação do socialismo
como uma sociedade pós-mercantil.
Não
seria sobre esse ponto que sua doutrina cumpriu o papel mais negativo,
combinando-se não com a idéia de um governo democrático da econômia, mas sim
tendencialmente com aquele de uma planificação integral e centralizada da vida
econômica e social?
É, sem dúvida, em torno desse problema que temos mais de
refletir.
No tempo de vida de Lenin, já havia sido instaurado um
regime ditatorial que nada tinha de transitório, mas que devia evoluir, sob
Stálin, em um sistema de economia gerenciada centralmente e controlada
policialmente. ...
Essa questão do mercado estava ligada junto a Marx àquela
do fetichismo, da autonomização das relações sociais tornadas poderes estranhos
que dominam os homens, ao que ele opunha o domínio pelos indivíduos associados
sobre seu próprio movimento social e suas liberdades de desenvolvimento
individual e solidário : essa problemática do „comunismo“ está longe de ter
perdido seu sentido na época da interdependência universal e dos problemas planetários
que a humanidade deve resolver hoje.
Os marxistas que afirmam a necessidade de manter aberto o
horizonte do comunismo referem-se a essa riqueza humana, àquela das obras e da
comunicação, dos seres e dos meios de vida, que a forma mercantil, tal como
Marx a analisou e tal como ela existe, detrói inexoravelmente.
Não se trata de sonhar com um futuro luminoso, mas de
salvar, aqui e agora, o que dá um sentido a existência humana.
Resta saber se a forma planificada não é menos
fetichisante. E se o velho projeto pode hoje se realizar de outra forma que não
seja uma luta conduzida, semelhantemente, contra os perigos comuns da opressão
a uma e outra forma.
Porém aí, precisamente, podemos pedir ao marxismo para
transformar-se e superar-se, despregar sua conceitualidade de modo mais amplo,
de tal sorte que englobe todo o espaço da modernidade.“[58]
Nesse contexto de
nefasta correção, completação, atualização e superação do pensamento de Marx
e Engels, empreendida pelos meta-marxistas franco-gramscianos e por
todos os demais doutrinadores da Via Democrática e Pacífica,
fundados, direta ou indiretamente, difusa ou conseqüentemente, na ideologia
gramsciana, surgem,
pretendidamente, os meios democráticos, pacíficos, culturais de luta
pelo socialismo com a aptidão de eliminar o emprego dos assim-chamados meios
violentos proletários-ditatoriais, supostamente por estarem mais bem
adaptados às novas circustâncias de
lugar e de tempo da lutas sociais das classes oprimidas de nosso presente
histórico.
A Via
Democrática e Pacífica ao Socialismo rejeitaria, pois, a insurreição armada
do proletariado, destinada à destruição, despedaçamento, implosão do Estado
Burguês, bem como a guerra civil do proletariado contra a burguesia, a
deflagração do terror vermelho como forma de implacável repressão da burguesia
pelo proletariado, enquanto estratégia de tomada do poder e de edificação da
fase transitória rumo à primeira fase do comunismo, i.e. o socialismo.
Sendo assim, os
proletários revolucionários não deveriam recorrer à mecanismos de coerção, tal
como o Estado Proletário, o exército, a guarda e a milícia vermelhas, para se
manter no poder conquistado à força das mãos da classe burguesa.
Pelo contrário,
não apenas os proletários senão também as grandes massas oprimidas pelo grande
capital, enquanto aliadas dos trabalhadores e camponeses proletários, deveriam
lançar mão, antes de tudo, da luta política eleitoral, fundada na
efetividade do sufrágio universal, bem como do impulsionamento e defesa
das reivindicações de ampla democratização da sociedade civil e do
Estado e expansão dos direitos e liberdades de cidadania das massas populares,
valendo-se da propaganda ideológica, como forma de consolidar um novo
consenso social e a fundação de um quimérico Estado Socialista, enquanto
poder alegadamente popular-democrático.
Solidificando a
união majoritária do povo oprimido, impulsionando a formação da vontade da
maioria dos socialmente oprimidos, exprimida pelo sufrágio universal e pelo
governo legal dos partidos políticos majoritários, a Via Democrática e Pacífica ao
Socialismo privilegiria, além disso, as mutações socialistas do Direito
e da Justiça Burgueses, abdicando dos meios ilegais de organização da
violência revolucionária do proletariado.
A transformação
democrática do Direito e do Estado Burgueses, no sentido de uma Democracia
Socialista - voltada à nacionalização das empresas oligopolistas, à
consagração do sufrágio universal e da elegibilidade de todos os mandatos
públicos, bem como à mais ampla democracia direta e à valorização da
participação direta das massas populares e oprimidas nos negócios públicos, em
todos os níveis, -, seria, par excellence, a via possível e
factível, racional e razoável, de passagem ao socialismo.
Uma tal passagem
ao socialismo não contraditaria, pois, os fundamentos formais, as garantias
fundamentais do homem e do cidadão e o princípio da soberania popular,
abarcados pelo Direito tal como já existente em nossos dias, apenas
privar-lhe-ia de seu conteúdo manifestamente capitalista-explorador e
burguês-dominador.
A dignidade de
tais meios legais e legítimos para o atingimento do socialismo, no quadro de
tal processo revolucionário pacífico, limitador estrito do uso da violência,
seria capaz de assegurar, paralelamente a uma revolução política democrática,
igualmente uma profunda reforma intelectual e moral para o
exercício do novo poder.
Sobre a base
dessas condições hipotéticas, sendo múltiplas as formas de passagem ao
socialismo, esse último poderia ser atingido através de um sendeiro político-
ditatorial – resultando em um Socialismo Ditatorial – ou, ainda,
por outra via, através de um atravessadouro político-democrático – com o que se
promoveria uma Democracia Socialista.
Ao longo dos
próximos títulos e capítulos, resultará claro que a ideologia gramsciana
surge, presentemente, não apenas como a doutrina de maior relevância para as
atuais organizações oportunistas de esquerda do movimento dos trabalhadores da
atualidade, por sua capacidade teórico-embasadora das postulações teóricas,
nascidas de preconceitos democrático-burgueses, de ampla e ilimitada democratização
da sociedade civil burguesa e do Estado Burguês, expansão hiperbólica dos
direitos e liberdades de cidadania das massas populares, transformação
democrática do Direito e do Estado Burgueses, enquanto componentes
políticos da Via Democrática e Pacífica ao socialismo.
Tal ideologia,
como adiante se demonstrará, constitui, além disso, nos dias de hoje, liga
metálica de fundição das concepções teóricas dos dirigentes e intelectuais do Secretariado
Unificado da Quarta Internacional(SU-QI), franco-gramscianos
meta-marxistas de Actuel Marx, velhos mao-stalinistas reciclados e novos
democrátas-humanistas, integrantes do Partido Comunista Francês(PCF), atuantes
todos no âmbito dos Espaces Marx Réseau International. Pour Une Construction Citoyenne du Monde.
EDITORA DA ESCOLA DE
AGITADORES E INSTRUTORES
“UNIVERSIDADE COMUNISTA
REVOLUCIONÁRIA J. M. SVERDLOV”
DO PROLETARIADO E SEUS ALIADOS
OPRIMIDOS
MOSCOU –
[1] De início, assinalo
que o termo “Euro-Comunismo” parece ter sido utilizado, pela primeira vez,
por um jornalista iugoslavo de matiz liberal, chamado Frane Barbieri, ao ter
publicado seu artigo “Le Scadenze di Brezhnev”, em 26 de
junho de 1975, no “Il Giornale Nuovo” de Indro Montanelli. Nessa ocasião, Barbieri
lançou mão do termo “Euro-Comunismo” precisamente para
descrever as supostas pretensões de Santiago Carillo, à época Secretário
Geral do Partido Comunista Espanhol, de desvincular-se, sempre mais, da
política stalinista-brejeneviana de Moscou, como forma de dar
sustentação às bases fundacionais da então Comunidade Européia. Nesse sentido,
vide BRUSCAGIN, MAURO. Ascesa e
Declinio dell’Eurocomunismo. Cause Endogene ed Esogene del Fenomeno, Tesi di
Laurea in Scienze Politiche, Università Cattolica di Milano, 1985, pp. 5 e s.
Há, entretanto, os que atribuem a paternidade do neologismo “Euro-Comunismo”
ao jornalista, igualmente de inclinação liberal, Arrigo Levi, que o estremou
conteudisticamente do termo “Neo-Comunismo”. Acerca do tema,
vide BETTIZA, ENZO. Il Comunismo
Europeo, Milano : Rizzoli, 1978, pp. 7 e s.; BROWN, ARCHIE & SCHOPLIN, GEORGES. La Sfida alla Leadership
Sovietica, in: Arrigo Levi. Filo della Torre Paolo, 1979, pp. 169 e s.
[2] Cf. HADDAD, GEORGES, A Propos de la
Dictature du Prolétariat. Tribune de Discussion du XXII Congrès, in:
L’Humanité, 7 de Janeiro de 1976.
[3] Cf. MARCHAIS, GEORGES, Liberté et
Socialisme. Extraits de L’Interview Accordée à Antenne 2, in : L’Humanité, 8 de
Janeiro de 1976.
[4] Destaco, desde logo, que jamais se
demonstrará excessivo realçar sempre os penetrantes trabalhos de Nahuel
Moreno, elaborados em meio à sua luta ideológica acesa, deflagrada seja
contra o euro-comunismo, seja contra o mao-althusserianismo,
seja contra o mandelismo, seja ainda contra o lambertismo, em defesa do
legado da Revolução Proletária de Outubro de 1917 e, em particular, em
prol dos princípios ético-organizativos do partido marxista-revolucionário.
Nada obstante, cumpre ressaltar que, entre outros aspectos, seria efetivamente
incorreto pretender apoiar, sem importantes reparos, seus posicionamentos, quer
no domínio
da lógica marxista – onde Moreno defende posições teóricas
amplamente coniventes com o construtivismo metodológico-radical de Piaget,
incompatíveis essencialmente com o socialismo científico de Marx
e Engels -, quer no domínio
da atualização do programa de transição – onde Moreno propugna,
abertamente, posições idealistas-subjetivistas e democratistas, ao pretender
inverter infundadamente relações causais dos acontecimentos históricos,
maximamente no período posterior à I Guerra Mundial, afastando-se,
assim, ostensivamente do método materialista histórico-dialético, defendidos
por Marx
e Engels, Lenin, Sverdlov e Trotsky -, quer ainda no domínio
ontológico do ser trotskysta nos dias de hoje - onde Moreno,
em sua excessiva acentuação da atividade criticista e ânsia de
superação do próprio trotskysmo, deixa de destacar que o marxismo, por ser
científico, deve ser considerado como um guia para a ação (Anleitung zum Handeln),
orientação para o agir, instrução para a prática de organização, mobilização e
luta permanente, independente e implacável das mais amplas massas
revolucionárias, sob a direção hegemônica do proletariado, em busca da
construção de uma humanidade socializada ou ainda de uma sociedade humanizada, o
que obsta, nos limites do marxismo revolucionário, qualquer tipo de criticismo
“criativo” e supostamente superador, elaborado em desconformidade e dissonância
com o rigoroso método do materialismo histórico-dialético. Acerca do tema, vide
MORENO, NAHUEL. Lógica Marxista y
Ciencias Modernas, México-Colômbia : Xólotl-Pluma, 1981, pp. 54 e 55.; IDEM. Actualización del Programa de
Transición, ed. CITO – Centro Internacional del Trotskysmo Ortodoxo, 1980, pp.
7 e s.; IDEM. Ser Trotskysta
Hoy(1985), in: Cuadernos de Correo Internacional, 1988, pp. 3 e s.
[5] Acerca do tema, vide KARIM,
DARIOUSH. The Revolutionary
Dictatorship of the Proletariat, Bogotá : Partido Socialista de los
Trabajadores of Colombia, 1979, pp. 15 e s.
[6] Cf. IDEM. ibidem, pp. retro-referidas.
[7] Cf. IDEM. ibidem, pp. supra-referidas.
Acerca das posições defendidas pela direção do SU-QI em face do fenômeno
eurocomunista, vide tb. MANDEL, ERNST. Critique
de l’Eurocommunisme, Paris : Maspero, 1978, pp. 7 e s. As palavras redigidas
por Nahuel
Moreno na passagem aqui citada estão revestidas de um extraordinário
alcance histórico, sobretudo na medida em que é possível registrar-se,
documentalmente, nos dias de hoje, o seguinte raciocínio de François
Vercammen, o maior representante do Secretariado Unificado da Quarta
Internacional(SU-QI) da atualidade, reproduzindo, cegamente, a
veneração superticiosa acerca da democracia, propalada, outrora, por seu
vangloriado mestre, Ernst Mandel : “Uma estratégia de transição ao socialismo deve
extrair, ao mesmo tempo, as lições da falência da social-democracia e daquela
do stalinismo. A ruptura com o Estado Capitalista e sua substituição por um
Estado da maioria social continua sendo o ponto de passagem obrigatório de toda
estratégia de saída do capitalismo. A humanidade não tem escolha. É necessário
desenvolver uma concepção da transição que dê à sociedade civil o máximo de
instrumentos para lutar contra a burocracia. Isso postula os direitos
democráticos mais amplos : o direito de reunião, o direito de expressão, o
direito de se organizar em partidos, em sindicatos e em associações, o direito
de fazer greve e de se manifestar etc. O único limite a esses direitos deve ser
a interdição de tentar derrubar o novo regime pela força. Em face de tais
tentativas ou de uma intervenção militar exterior, medidas de excepção podem
ser impostas, para salvar a revolução”.
Cf. TONDEUR, ALAIN &
VERCAMMEN, FRANÇOIS. Réinventer l’Espoir. Un Socialisme de la Libération
pour le XXème Siècle, Bruxelles : Fondation Léon Lesoil, 1993, pp. 56 e 57.
[8] O Encontro Bilateral de Livorno,
de julho de 1975, orquestrado pelo Partido Comunista Italinano(PCI) e
pelo Partido
Comunista Espanhol (PCE) pode ser considerado como o momento histórico
de surgimento formal do Euro-Comunismo. Na Declaração
Conjunta, subscrita por esses dois partidos, ao fim desse Encontro
consta, expressamente : “ ... os comunistas italianos e espanhóis declaram,
solenemente, que, em sua concepção de avanço democrático ao socialismo, na paz
e na liberdade, exprime-se não uma postura tática, mas sim uma convicção
estratégica que nasce da reflexão sobre o conjunto das experiências do
movimento operário e sobre as condições históricas específicas dos países
respectivos, no quadro da situação européia-ocidental ... A perspectiva de uma
sociedade socialista nasce, hoje, da realidade das coisas e tem como premissa a
convicção de que o socialismo pode afirmar-se, nos nossos países, apenas
através do desenvolvimento e realização plena da democracia. Isso tem como base
a afirmação do valor da liberdade pessoal e coletiva e da sua garantia, dos
princípios da laicidade do Estado, de sua articulação democrática, da
pluralidade dos partidos em uma dialética livre, da autonomia do sindicato, da
liberdade religiosa, da liberdade de expressão, da cultura, da arte e da
ciência”. Cf. DICHIARAZIONE CONGIUNTA
PCE-PCI(1975), in : Bernardo Valli, Gli Eurocomunisti, Milano : Bompiani,
1977, p. 217. O segundo Encontro
Bilateral de grande relevância política realizou-se, a seguir, em
novembro de 1975, com a participação do Partido Comunista Italinano(PCI) e
do Partido
Comunista Francês (PCF). Na Declaração Conjunta desse segundo Encontro
Bilateral, firmaram o PCI e o PCF os seguintes termos :
“... o socialismo constituirá uma fase superior da democracia e da liberdade,
i.e. a democracia realizada do modo mais completo. Nesse espírito, todas as
liberdades, fruto seja das grandes revoluções democrático-burguesas seja das
grandes lutas populares desse século, que tiveram à sua frente a classe
operária, deverão ser asseguradas e desenvolvidas .... Os comunistas franceses
e italianos pronunciam-se pela pluralidade dos partidos políticos, pelo Direito
de existência e atividade dos partidos de oposição, pela livre formação e
possibilidade do alternar-se democrático das maiorias e das minoriais, pela
laicidade e o funcionamento democrático do Estado, pela livre atividade e
autonomia dos sindicatos. Eles atribuem uma importância essencial ao
desenvolvimento da democracia na empresa, de modo que os trabalhadores possam
partecipar na sua gestão com direitos efetivos e dispor de amplos poderes de
decisão. .... Uma transformação socialista pressupõe o controle público sobre
os principais meios de produção e de troca, a sua progressiva socialização, bem
como a realização de uma programação econômica democrática em nível nacional
... “ Cf. DICHIARAZIONE CONGIUNTA PCF-PCI(1975), in : Bernardo Valli. Gli Eurocomunisti, Milano : Bompiani, 1977, pp. 218 e 219.
[9] Cf. KARIM, DARIOUSH. The Revolutionary Dictatorship of the Proletariat, Bogotá :
Partido Socialista de los Trabajadores of Colombia, 1979, pp. supra-indicadas.
[10] Cf. IDEM. ibidem, pp. supra-referidas.
[11] O primeiro e o último Encontro
Trilateral dos partidos eurocomunistas mais expressivos, i.e. do PCI,
PCE e PCF, teve lugar em 2 de março de 1977, em Madrid. Como
acertadamente assinala Mauro Bruscagin, esse Encontro
Trilateral ao invés de assinalar o apogeu do Euro-Comunismo, registrou
o início de sua fatal decadência. Acerca do tema, vide BRUSCAGIN, MAURO. Ascesa e Declinio dell’Eurocomunismo. Cause
Endogene ed Esogene del Fenomeno, Tesi di Laurea in Scienze Politiche,
Università Cattolica di Milano, 1985, pp. 5 e 7. Na Declaração Conjunta, firmada
ao final desse Encontro, é possível ler o seguinte : “Os três países conhecem
atualmente uma crise que é, conjuntamente, econômica, política, social e moral
... A crise do sistema capitalista exige, com ainda mais força, que se
desenvolva a democracia e se avance em direção ao socialismo. Os comunistas
espanhóis, franceses e italianos pretendem atuar em favor da construção de uma
nova sociedade, no pluralismo das forças políticas e sociais e no respeito, na
garantia e no desenvolvimento de todas as liberdades individuais e coletivas
... Essa vontade de construir o socialismo na democracia e na liberdade inspira
as concepções elaboradas com plena autonomia por cada qual dos três
partidos.” Cf. DICHIARAZIONE CONGIUNTA PCF-PCI-PCE AL VERTICE DI MADRID(1977), in
: Sergio Segre, A Chi Fa Paura l’Eurocomunismo ?, Rimini-Firenze : Guaraldi,
1977, pp. 216 e s.
[12] Cumpre assinalar, de
passagem, que os partidos comunistas que deram vida ao Euro-Comunismo foram, sem
dúvida, o Partido Comunista Italinano(PCI), o Partido Comunista Espanhol (PCE) e
o Partido
Comunista Francês(PCF). Nada obstante, é importante acrescentar que tal
fenômeno afetou, intensamente, também os partidos comunistas britânico, belga,
grego e, além disso, o japonês. O impacto do Euro-Comunismo sobre o Partido
Comunista Japonês (PCJ) registrado na segunda metade dos anos 70,
conduziu Mauro Bruscagin a problematizar, especulativamente, acerca do
devido campo de aplicação do termo conceitual relativo ao neologismo Euro-Comunismo,
a ponto de parecer sugerir a maior precisão vernacular do termo Neo-Comunismo
para a qualificação do fenômeno político em tela. A esse respeito, vide
BRUSCAGIN, MAURO. Ascesa e Declinio
dell’Eurocomunismo. Cause Endogene ed Esogene del Fenomeno, Tesi di Laurea in
Scienze Politiche, Università Cattolica di Milano, 1985, pp. 5 e 7.
[13] Com efeito, segundo Karl
Marx : “Entre a sociedade capitalista e a sociedade comunista, existe o
período da transformação revolucionária de uma em outra. A ele corresponde
também um período político de transição, cujo Estado não pode ser outro senão a
Ditadura Revolucionária do Proletariado.”
Cf. MARX, KARL. Kritik des Gothaer
Programms (Crítica do Programa de Gotha)(1875), in : Marx und Engels Werke
(Obras de Marx e Engels), Berlim, 1962, Vol. XXIX, p. 28. Em seu art. 9°, a Constituição
de Lenin e Sverdlov, de 1918, estabelece como seu fim essencial a
instauração “da Ditadura do Proletariado urbano e rural e dos camponeses
pobres, na forma de um poderoso poder soviético de toda a Rússia, com o
objetivo de derrotar completamente a burguesia, de aniquilar a exploração do
homem pelo homem e de instaurar o socialismo, no qual não existirá nem divisão
de classes nem poder estatal”. Acerca do tema, vide ainda STUTCHKA, PIOTR.
Constitutsia Grajdanskoi Voinyi (1918 - A Constituição da Guerra Civil.
Tradução em Língua Portuguesa de Emil von München), in: Textos Jurídicos de
Formação dos Juristas Socialistas da Classe Trabalhadora. Instituto Luís e Rosa
Sunderman : Ed. Jurídica Socialista dos Trabalhadores, São Paulo-Munique-Paris,
2000.
[14] Mais
pormenorizadamente acerca da orientação político-nostáligica da Ligue
Communiste, seção francesa do SU-QI, fundada em abril de 1969,
quando então oscilava ideologicamente entre guevarismo, leninismo apressado e
ultra-esquerdismo, impulsionando sobre essa base a campanha presidencial de Alain
Krivine, já em maio de 1969, vide sobretudo BENSAÏD, DANIEL & ARTOUS,
ANTOINE. Que Faire ?(1903) et la Création de Ligue Communiste(1969), in :
Marx ou Crève. Revue de Critique Communiste, Nr. 6, April-Mai 1976, pp. 2 e s.
A Ligue
Communiste foi, a seguir, dissolvida em 1973, sendo que, em 1974, teve
surgimento a Ligue Communiste Révolutionnaire (LCR), atual seção francesa do
SU-QI.
Também em 1974, a LCR impulsionou a campanha de Alain
Krivine à presidência da república.
[15] A presente citação de
defesa das qualidades vernaculares da Democracia
Socialista ou do Poder Popular, em prejuízo da Ditadura
do Proletariado, formulada aqui pelo já legendário dirigente intectual
do SU-QI
e da LCR
Francesa, professor sorbonnard, Daniel Bensaïd, prossegue traçando
considerações inteiramente corroídas pelas influências ideológicas
democrático-burguesas acerca da questão do Estado e do Direito, no quadro das
revoluções do século XIX e XX. Com efeito, Bensaïd escreve, a seguir,
malsinadamente : “Os revolucionários do século XIX estavam à procura da fórmula
do poder virtuoso, capaz de conduzir o povo de seu estado de subordinação ao
exercício de sua plena soberania : Triumvirato, Despotismo Iluminista, Ditadura
da Saúde Pública. A “forma enfim encontrada” colocava o acento sobre a Ditadura
majoritária da classe constituída no poder. Depois, os termos da equação evoluíram.
Como fazer para que esse poder de excepção não virasse um Estado de exceção e
negação durável do Direito. Foi necessário certo tempo para se desfazer de uma
ilusão tenaz, comum em muitos sentidos à Revolução Francesa e à Revolução
Russa. Os principais artesãos jacobinos da primeira acreditavam que, uma vez
derrubada a aristocracia parasitária, o povo, entregue a si mesmo, constituiria
um corpo são e homogêneo. O povo, a nação, o Estado, tudo isso era um todo :
nenhuma contradição no seio do povo ! A mesma coisa vale para os dirigentes da
Revolução Russa : a emancipação do proletariado significaria a fusão tendencial
da classe, do Estado e do Partido, tal como o perecimento acelerado do Estado.
A tal ponto que Lenin julgava que a história não lhe deixaria tempo para
formular um Direito escrito : uma jurisprudência oral faria transitoriamente o
trabalho”. Cf. BENSAÏD, DANIEL. “Rentrons
Dans La Rue”. Remettre Marx sur ses Pieds (“Reentremos na Rua” Coloquemos Marx
de Pé), in : Actuel Marx Confrontation. Fin du Communisme ? Actualité du
Marxisme ?, sob a direção de Jaques Bidet e Jacques Texiet, Paris : PUF,
1991, pp. 213 e 214. O enigma que
permitiu a Bensaïd formular uma afirmação tão estapafúrdia e completamente
falaciosa sobre a concepção de Lenin acerca do papel do Direito no
quadro da Revolução Russa e da edificação do Estado Proletário Soviético
permanece sem ter sido desvendado até o presente momento. Naturalmente, Bensaïd
não apresenta qualquer referência literária efetiva redigida por Lenin
ou mesmo por qualquer um dos mais renomados juristas soviéticos da Revolução
Russa acerca do posicionamento que atribui, sibilina e gratuitamente, a
Lenin.
A produção dos inúmeros decretos revolucionários, promulgados logo após a
vitória da Revolução Russa - e, em
particular, o Decreto sobre os Tribunais –, assim como a Constituição de Lenin e Sverdlov
– ou a Constituição da Guerra Civil, tal como a denomina Stutchka,
promulgada em 1918, não
constituem para Bensaïd qualquer vestígio de prova de que a concepção de Lenin
acerca do Direito na Revolução Proletária haveria de ser
bem mais complexa do que as bagatelizações teóricas sobre “uma jurisprudência oral faria
transitoriamente o trabalho”, tal como Bensaïd lança,
despudoradamente, entre os franco-gramscianos de Actuel Marx, em clima de
confraria acadêmica. Acerca da temática do Direito e revolução
proletário-socialista, vide BARBOZA,
ASDRUBAL & MÜNCHEN, EMIL VON. O Poder Judiciário no Estado Burguês e a
Perspectiva dos Tribunais da Revolução de Outubro, in : Textos de Formação dos
Juristas Socialistas da Classe Trabalhadora. Instituto Luís e Rosa Sunderman :
Ed. Jurídica Socialista dos Trabalhadores, São Paulo-Munique-Paris, Abril 2000.
[16] Com efeito, René
Bailly, membro do sindicato dos escritores e da Sociedade das Gentes de
Letras da França, teve a oportunidade de alertar, magistralmente, para o
fenômeno registrado em seu país de, com o tempo e a transformação continuada da
língua francesa, devida a fatores diversos e à prova de sua vitalidade, os
sentidos das palavras se modificarem sem cessar. Dando-nos um exemplo de como o
sentido das palavras podem, profundamente, metamorfosear-se, por força de tais
circunstâncias, escreve o lexicólogo em referência : “Nossos escritores
contemporâneos contemporâneos não se exprimem, efetivamente, como Fenélon ou
Montesquieu, nem mesmo como Chateaubriand. Muitos termos, distanciando-se de
sua etimologia no curso dos anos, adquiriram ou perderam sua força, quando não
mudaram quase completamente de sentido. Recordemos, a esse propósito, o caso de
LIBERTINO que, vindo do latim libertinus,
propriamente “escravo libertado”, designou, simplesmente, de início, aquele
que fazia uso de sua liberdade. Depois, aplicou-se-o, sob Luís XIV, segundo uma
passagem mal interpretada dos Atos dos Apóstolos (VI, 9), onde se trata de uma
seita judía com esse nome, àquele que se libertava da autoridade da religião,
das crenças, da disciplina, em suma ao livre
pensador. Por fim, assumiu, no século XVIII, a acepção que conhecemos hoje
de debochado. Isso por um escorregão
de sentido ( no original francês : un
glissement de sens ) que fez com que, em plena corrupção dos costumes sob a
Regência, chamou-se de libertino não mais o livre pensador, mas aquele que dava
prova de uma liberdade nos costumes em relação às mulheres, indo até a
licenciosidade. Ao lado de uma tal evolução, existe também o caso mais raro, em
que uma palavra terminou por ter uma acepção absolutamente contraditória com
sua etimologia. ....” Cf. BAILLY, RENE.
Dictionnaire des Synonymes de la Langue Française, Paris : Librairie Larousse,
1946, pp. IX e X. À guisa de exemplificação desse sintoma de transformação da
semântica francesa, é imperioso assinalar que tal tendência de glissement
de sens, registrada por Bailly, processa-se, igualmente, nos
mais distintos idiomas da humanidade, nos dias que correm, sobretudo tendo-se
em conta que esses últimos possuem como referência ordenadora a mais nobre e
celebrizada língua e cultura em que produziram os grandes pensadores do século
XVIII, inspiradores do sistema das liberdades políticas e garantias jurídicas
burguesas-capitalistas, ideologicamente dominante na atualidade.
[17]
Vide MANDEL, ERNST & VERCAMMEN, FRANÇOIS.
Oktober 1917 - Staatsreich oder Soziale Revolution? Zur Verteidigung der
Oktoberrevolution (Outubro de 1917 – Golpe de Estado ou Revolução Social. Em
Defesa da Revolução de Outubro), Karlsruhe: Neuer ISP Verlag, Agosto de 1993,
pp. 7 e s.
[18] Cf. TONDEUR, ALAIN & VERCAMMEN, FRANÇOIS. Réinventer
l’Espoir. Un Socialisme de la Libération pour le XXème Siècle, Bruxelles :
Fondation Léon Lesoil, 1993, p. 58.
[19] Cf. IDEM. ibidem, pp. 59 e 60.
[20] Cf. IDEM. ibidem, pp. 73 e 74.
[21] Cf. IDEM. ibidem, p. 74.
[22] Acerca do tema, vide ENGELS, FRIEDRICH & KAUTSKY, KARL Juristensozialismus (O
Socialismo dos Juristas)(1887), in: Marx und Engels Werke (Obras de Marx e
Engels), Vol. XXI, Berlim, 1961, p. 492.; STUTCHKA,
PIOTR. Das Problem des Klassenrechts und der Klassenjustiz (1922 - O
Problema do Direito de Classe e da Justiça de Classe. Tradução em Língua
Portuguesa de Emil von München) in : Textos de Formação dos Juristas
Socialistas da Classe Trabalhadora. Instituto Luís e Rosa Sunderman : Ed.
Jurídica Socialista dos Trabalhadores, São Paulo-Munique-Paris, 2000.
[23] Vide MARX, KARL. Das Elend der Philosophie
(A Miséria da Filosofia)(Dezembro 1846-Abril 1847), in : Marx und Engels Werke
(Obras de Marx e Engels), Berlim, 1962, Vol. IV, pp. 63 e s.
[24] Vide MARX, KARL & ENGELS, FRIEDRICH.
Manifest der Kommunistischen Partei (Manifesto do Partido Comunista) )(Dezembro
de 1847-Janeiro de 1848), in : ibidem, Vol. IV, pp. 473 e s.
[25] Vide LENIN, VLADIMIR I. Gosudarstvo i
Revolutsia. Utchenie Marksisma o Gosudarstve i Zadatchi Proletariata v
Revoliutsi (Estado e Revolução. A Doutrina do Marxismo sobre o Estado e as
Tarefas do Proletariado na Revolução) (1917), Moscou, 1989, especialmente Cap.
II.I : O Estado e a Revolução. A Experiência de 1848-1851 - As Vésperas da Revolução, pp. 23 e s.
[26] Vide MARX, KARL. Der Achtzehnte Brumaire des
Louis Bonaparte (O 18 Brumário de Luís Bonaparte) (Dezembro 1851-Março 1852),
in : Marx und Engels Werke (Obras de Marx e Engels), Berlim, 1962, Vol. VIII,
pp. 196 e s.
[27] Vide LENIN, VLADIMIR. Gosudarstvo i
Revolutsia. Utchenie Marksisma o Gosudarstve i Zadatchi Proletariata v
Revoliutsi (O Estado e a Revolução. A Doutrina do Marxismo sobre o Estado e as
Tarefas do Proletariado na Revolução) (1917), Moscou, 1989, Cap. II.2 : O
Estado e a Revolução. A Experiência de 1848-1851 - O Balanço de uma Revolução,
pp. 27 e s.
[28] Vide MARX, KARL. Brief an J. Weydemeyer
(Carta à J. Weydemeyer)(5 de Março de 1852), in : Marx und Engels Werke (Obras
de Marx e Engels), Berlim, 1962, Vol. XXVIII, pp. 507 e 508.
[29] Vide LENIN, VLADIMIR I. Gosudarstvo i
Revolutsia. Utchenie Marksisma o Gosudarstve i Zadatchi Proletariata v
Revoliutsi (Estado e Revolução. A Doutrina do Marxismo sobre o Estado e as
Tarefas do Proletariado na Revolução) (1917), Moscou, 1989, especialmente Cap.
II.2 : O Estado e a Revolução. A Experiência de 1848-1851 - O Balanço de uma
Revolução, pp. 35 e s.
[30] Vide IDEM. Notiz für D. I. Kurski. (Nota
para D. I. Kurski) (20 de Fevereiro de 1922), in : W. I. Lenin Werke, Vol.
XXXVI (1900-1923), p. 550. Acerca do mesmo tema, vide ainda IDEM. Brief an D. I. Kurski (Carta à D.
I. Kurski) (28 de Fevereiro de 1922), in : ibidem, Vol. XXXIII (De Agosto de
1921 à Março de 1923), pp. 186 e 187.
[31] Vide acerca do tema CONSTITUTION OF THE RUSSIAN SOCIALIST
FEDERATED SOVIET REPUBLIC, Adopted by the Fifth All-Russia Congress of Soviets
(Adotada pelo V Congresso dos Soviets de Toda Rússia), Moscou, 10 de Julho de
1918, Chapter V, art. 9°. No artigo em destaque, a Constituição em referência
estabelece nitidamente : “O problema fundamental da Constituição da República
Federal Socialista Soviética Russa envolve, em vista do presente período de
transição, o estabelecimento da Ditadura do Proletariado urbano e rural e dos
camponeses pobres, na forma de um poderoso poder soviético de toda a Rússia,
com o objetivo de derrotar completamente a burguesia, de aniquilar a exploração
do homem pelo homem e de instaurar o socialismo, no qual não existirá nem
divisão de classes nem poder estatal”.
Vide tb. comentários de STUTCHKA,
PIOTR. Constitutsia Grajdanskoi
Voinyi (1918 - A Constituição da Guerra Civil. Tradução em Língua Portuguesa de
Emil von München), in: Textos Jurídicos de Formação dos Juristas Socialistas da
Classe Trabalhadora. Instituto Luís e Rosa Sunderman : Ed. Jurídica Socialista
dos Trabalhadores, São Paulo-Munique-Paris, 2000.
[32] Vide MARX, KARL Kritik des Gothaer
Programms (Crítica do Programa de Gotha)(1875), in : ibidem, Vol. XXIX, pp. 28
e s.; LENIN, VLADIMIR I. Gosudarstvo
i Revolutsia. Utchenie Marksisma o Gosudarstve i Zadatchi Proletariata v
Revoliutsi (O Estado e a Revolução. A Doutrina do Marxismo sobre o Estado e as
Tarefas do Proletariado na Revolução) (1917), Moscou, 1989, especialmente Cap.
5.2 : Os Fundamentos Econômicos da Extinção do Estado – Transição do
Capitalismo ao Comunismo, pp. 87 e s.
[33] Vide MARX, KARL. ibidem, p. 30. Vide ainda LENIN, VLADIMIR I. ibidem,
especialmente Cap. 5.3. : Os Fundamentos Econômicos da Extinção do Estado – A
Primeira Fase da Sociedade Comunista. No mesmo sentido, ENGELS, FRIEDRICH. Zur Wohnungsfrage (Acerca da Questão
Habitacional)(Junho 1872 – Fevereiro 1873), in: ibidem, Vol. XXVIII, pp. 226 e
227.
[34] Vide MARX, KARL. ibidem, p. 31. Vide ainda LENIN, VLADIMIR I. ibidem,
especialmente Cap. 5.4. : Os Fundamentos Econômicos da Extinção do Estado – A
Fase Superior da Sociedade Comunista.
[35] Vide MARX, KARL. Der politische Indifferentismus (O Indiferentismo
Político)(Dezembro de 1873), in: ibidem, Vol. XVIII, pp. 299 e s.; ENGELS, FRIEDRICH. Von der Autorität (Sobre a Autoridade) (Dezembro de
1873), in : ibidem, Vol. XXXVIII, pp. 305 e s.
[36] Vide ENGELS, FRIEDRICH. Anti-Dühring. Herrn
Eugen Dühring‘s Umwälzung der Wissenschaft (Anti-Dühring. A Subversão da
Ciência do Sr. Eugênio Dühring) (Setembro 1876 – Junho 1878), in : Marx und
Engels Werke (Obras de Marx e Engels), Berlim, 1962, Vol. XX, p. 171.
[37] Cf. SAMARY, CATHERINE. Oktoberrevolution :
Wirtschafliche und Soziale Probleme(Revolução de Outubro : Problemas Econômicos
e Sociais), in : INPREKORR. Internationale Pressekorrespondenz, Nr. 319, Mai
1998, pp. retro-mencionadas.
[38] Acerca do tema, vide,
adicional e mais detalhadamente, KARIM,
DARIOUSH. The Revolutionary
Dictatorship of the Proletariat, Bogotá : Partido Socialista de los
Trabajadores of Colombia, 1979, sobretudo Capítulo 1 : Um Programa de
“Liberdade Política Ilimitada para o Xá ou um Programa para sua Destruição sem
Piedade ?”, pp. 37 e s. Além disso,
compare-se tb. a polêmica histórica travada por Lenin e Trotsky contra Karl
Kautsky acerca da problemática concernente à soberania proletária na
revolução socialista, KAUTSKY, KARL.
Die Diktatur des Proletariats (A Ditadura do Proletariado)(1918), Berlim,
Dietz, 1990, pp. 9 e s.; IDEM.
Terrorismus und Kommunismus. Ein Beitrag zur Naturgeschichte der Revolution
(Terrorrismo e Comunismo. Uma Contribuição à História Natural da Revolução) (1919),
Berlim, Dietz, 1990, pp. 177 e s.; IDEM.
Von der Demokratie zur Staatssklaverei. Eine Auseinandersetzung mit Trotzki (Da
Democracia à Escravidão Estatal. Uma Polêmica com Trotsky)(1921), Berlim, :
Dietz, 1990, pp. 175 e s.; TROTSKY,
LÉON. Terrorismus und Kommunismus. Anti-Kautsky, (Terrorismo e Comunismo.
Anti-Kautsky)(1920), Berlim : Dietz, 1990, pp. 9 e s.; LENIN, VLADIMIR I. Die
proletarische Revolution und der Renegat Kautsky, (A Revolução Proletária e o
Renegado Kautsky) (Outubro-Novembro de 1918), especialmente Título :
Bürgerliche und Proletarische Demokratie (Democracia Burguesa e Proletária), in
: W. I. Lenin Werke, Vol. XXVIII (De Julho de 1918 à Março de 1919), Berlim,
1962, pp. 89 e s.
[39] Acerca da influência
de Gramsci
sobre o Euro-Comunismo, Mauro Bruscagin, baseando seus argumentos nos
raciocínios imprecisos de Massimo Salvadori, assinala,
entretanto, com pouquíssimo acerto e proveito, desde uma perspectiva
social-democrática, sem examinar profundamente todas as implicações da doutrina
gramsciana e formular alegações com base nas próprias elaborações de Gramsci
: “Segundo os líderes dos partidos eurocomunistas, Gramsci foi o pai espiritual
dessa nova estratégia comum. Na realidade, ele teve nisso certamente uma função
decisiva, colocando a questão da nacionalização do bolchevismo, porém, depois,
criou-se uma tensão entre a herança gramsciana e a nova estratégia dos três
partidos, consistente na superação da experiêcia soviética (Salvadori, 1978).
Com efeito, Gramsci não chegou ao ponto de abandonar o princípio da ditadura do
proletariado, mas sim apenas elaborou-a no conceito de “hegemonia”. Os eurocomunistas se encontrariam, então,
mais próximos dos adversários de Lenin, como Kautsky, o qual afirmava uma linha
política destinada a alargar o sistema parlamentar até dar-lhe um conteúdo
nítido de participação democrática (Salvadori, 1978). Desse modo, então, o
Euro-Comunismo separaria aquilo que no leninismo e no gramscismo estava unido.
De resto, alguns admitiram, mesmo no interior do PCI, que o pluralismo
orgânico, fundado no conceito de hegemonia, criaria, por vezes, problemas de
inconciliabilidade com a verdadeira democracia e Ingrao sugeriu inserir
momentos de democracia de base no sistema representativo (Rizzo, 1977). É
inegável, porém, que Gramsci forneceu um ensinamento aos três partidos
comunistas : o de que o Estado é conquistado ocupando-se a sociedade civil.
Essa seria a revolução adaptada ao ocidente, não aquela violenta do modelo
bolchevique (Bettiza, 1978).” Cf. BRUSCAGIN,
MAURO. Ascesa e Declinio dell’Eurocomunismo. Cause Endogene ed Esogene del
Fenomeno, Tesi di Laurea in Scienze Politiche, Università Cattolica di Milano,
1985, pp. 14 e 15. Acerca do tema, vide ainda SALVADORI, MASSIMO. Eurocomunismo e Socialismo Sovietico. Problemi
Attuali del PCI e del Movimento Operaio, Torino : Einaudi, 1978, pp. 41 e s.; RIZZO, ALDO. La Frontiera dell’Eurocomunismo, Bari :
Laterza, 1977, pp. 92 e s.; BETTIZA,
ENZO. Il Comunismo Europeo, Milano : Rizzoli, 1978, pp. 96 e s. É,
realmente, surpreendente como Mauro Bruscagin elabora o fio
lógico-condutor dos seus argumentos : Gramsci
foi o pai espiritual da nova estratégia comum eurocomunista. Gramsci colocou a
questão da nacionalização do bolchevismo. Gramsci não chegou ao ponto de
abandonar o princípio da ditadura do proletariado, mas sim apenas
elaborou-a no conceito de “hegemonia”.
Os eurocomunistas se encontrariam, então, mais próximos dos adversários de
Lenin, como Kautsky e separariam aquilo que no leninismo e no gramscismo estava
unido. É inegável, porém, que Gramsci forneceu um ensinamento aos três partidos
comunistas : o de que o Estado é conquistado ocupando-se a sociedade civil.
Essa seria a revolução adaptada ao ocidente, não aquela violenta do modelo
bolchevique. Esses argumentos Mauro
Bruscagin permitem, então, formular-se diversos exercícios
escolático-sofísticos de altíssima veracidade e celebérrima coerência
histórica. Por exemplo : 1) Gramsci não chegou ao ponto de abandonar o
princípio da ditadura do proletariado, mas sim apenas elaborou-a no conceito de
“hegemonia”. Logo, Gramsci, logrou, mesmo sem chegar ao ponto de abandonar o
princípio da ditadura do proletariado, não formular o ensinamento daquela
revolução violenta do modelo bolchevique ; 2) Gramsci não formulou o ensinamento
daquela revolução violenta do modelo bolchevique, entretanto os eurocomunistas
separaram aquilo que no leninismo e no gramscismo estava unido. Ora, unidos
leninismo e gramscismo, Lenin não formulou o ensinamento da revolução violenta
do modelo bolchevique. 3) Os eurocomunistas se encontrariam, então, mais
próximos dos adversários de Lenin, como Kautsky, os quais afirmavam uma linha
política destinada a alargar o sistema parlamentar até dar-lhe um conteúdo
nítido de participação democrática. É inegável, porém, que Gramsci forneceu um
ensinamento aos três partidos comunistas : o de que o Estado é conquistado
ocupando-se a sociedade civil. Essa seria a revolução adaptada ao ocidente, não
aquela violenta do modelo bolchevique. E, assim, seria possível enchendo-se
rios de tinta, demonstrar-se “aquilo que
no leninismo e no gramscismo estava unido.”
[40] Nesse sentido, vide
precisamente ENGELS, FRIEDRICH. Anti-Dühring. Herrn Eugen
Dühring’s Umwälzung der Wissenschaft (Anti-Dühring. A Subversão da Ciência do
Sr. Eugênio Dühring) (Setembro 1876 – Junho 1878), in : Marx und Engels Werke
(Obras de Marx e Engels), Berlim, 1962, Vol. XX, p. 171.; MARX, KARL. Brief an L.
Kugelmann (Carta à L. Kugelmann) (12 de Abril de 1871), in: ibidem, Vol.
XXXIII, p. 205.; LENIN, VLADIMIR I.
Gosudarstvo i Revolutsia. Utchenie Marksisma o Gosudarstve i Zadatchi
Proletariata v Revoliutsi (O Estado e a Revolução. A Doutrina do Marxismo sobre
o Estado e as Tarefas do Proletariado na Revolução) (1917), Moscou, 1989,
especialmente Cap. I.4 : A Sociedade de Classes e o Estado - A „Extinção“ do
Estado e a Revolução Violenta, pp. 16 e s., tb. Cap. 4.5. : Prefácio de 1891 à
“Guerra Civil” de Marx, p. 80.
[41] Cf. KARIM, DARIOUSH. The Revolutionary Dictatorship of the Proletariat, Bogotá :
Partido Socialista de los Trabajadores of Colombia, 1979, pp. supra-indicadas.
[42] Cf. IDEM. ibidem, pp. supra-referidas.
[43] Cf. LÖWY, MICHAËL. Das „Manifest“ in
Vergangenheit und Gegenwart(O „Manifesto“ no Passado e no Presente), in :
INPREKORR. Internationale Pressekorrespondenz, Nr. 319, Mai 1998, pp.
supra-referidas.
[44] Vide MARX, KARL & ENGELS, FRIEDRICH.
Vorwort zum Manifest der Kommunistischen Partei – Deutsche Ausgabe
1872(Prefácio ao Manifesto do Partido Comunista. Edição Alemã de 1872), in :
Marx und Engels Werke (Obras de Marx e Engels), Berlim, 1962, Vol. XVIII, pp.
92 e s.
[45] Vide MARX, KARL. Brief an L. Kugelmann
(Carta à L. Kugelmann)(12 de Abril de 1871), in: ibidem, Vol. XXXIII, p. 205. ;
IDEM. Der Bürgerkrieg in Frankreich
(A Guerra Civil na França)(1871), in : ibidem, Vol. XVII, pp. 336 e s. Com
efeito, a experiência da Comuna de Paris concedeu a Marx e
Engels
a possibilidade de estudarem abrangentemente um novo e grandioso
processo revolucionário proletário em curso, conduzindo-os a sintetizarem suas
conclusões na obra redigida por Marx em abril e maio de 1871, intitulada
a Guerra
Civil na França. Nessa sua obra, Marx assinalou que a Comuna
de Paris foi a antítese direta do Estado Imperial Francês, a forma
positiva de uma República que não apenas havia de eliminar a forma monárquica
do domínio da classe burguesa, senão ainda o próprio domínio burguês de classe.
A Comuna
de Paris substituiu, portanto, a máquina estatal burguesa que havia
despedaçado, com uma democracia republicana proletária de índole
socialista-revolucionária e internacionalista, com instituições públicas
baseadas, portanto, sobre princípios organizativos inteiramente diversos. O
Estado Burguês foi transformado em qualquer coisa que já não era propriamente
um Estado, i.e. tratava-se de um certo Estado porém do tipo de Comuna,
segundo Engels, algo como um Gemeinwesen, estando dotado agora da
tarefa de reprimir a resistência permanente de uma ínfima minoria de
exploradores burgueses-capitalistas. Acerca do tema, vide MARX, KARL & ENGELS, FRIEDRICH, Die Partei und die
Internationale (O Partido e a Internacional) (5 de Maio de 1875), in : ibidem,
Vol. XIX, pp. 6 e 7.; LENIN, VLADIMIR I.
Gosudarstvo i Revolutsia. Utchenie Marksisma o Gosudarstve i Zadatchi
Proletariata v Revoliutsi (O Estado e a Revolução. A Doutrina do Marxismo sobre
o Estado e as Tarefas do Proletariado na Revolução) (1917), Moscou, 1989,
especialmente Cap. III. 2: O Estado e a Revolução. A Experiência da Comuna de
Paris(1871). A Análise de Marx – Com o que Substituir a Máquina Estatal
Despedaçada ?, pp. 40 e s. Segundo Marx, o primeiro decreto da Comuna
foi a supressão do exército permanente e a sua substituição pelo povo
armado, i.e. por uma força geral da maioria do povo – dos operários e
camponeses -, e não mais uma força particular colocada a serviço da classe
economicamente exploradora. A polícia foi despida de suas atribuições
político-burguesas e transformada em um instrumento da Comuna, sendo o mandato
de seus membros revogáveis a qualquer tempo. A Comuna foi composta por
conselheiros municipais eleitos por sufrágio universal nos diversos
departamentos de Paris, sendo seus representantes naturalmente operários,
dotados de mandatos revogáveis. O mesmo afirmou Marx ter sido válido para
os funcionários de todas os demais ramos da administração pública. Todos os
funcionários judiciários foram despidos de sua sediciosa independência, devendo
prestar contas à Comuna de suas atividades jurisdicionais. Juizes, procuradores
e demais funcionários judiciários passavam agora a dever ser eleitos, estando
seus mandatos sujeitos à revogação a qualquer tempo. Nesse quadro de absoluta
elegibilidade e revogabilidade a qualquer momento de todos os funcionários communards,
sem qualquer exceção, todos os cargos do serviço público haviam de ser
prestados na base de salários de operários. Destruindo-se, assim, as duas
maiores fontes de despesas estatais burguesas – i.e. as despesas com o
funcionalismo estatal e o exército permanente – a Comuna concretizou, efetivamente,
as frases publicitárias propagandeadas incansavelmente pela burguesia relativas
a um governo barato e à redução dos gastos públicos. Mais do que isso : a Comuna
deixou de ser um Parlamento de Estado e assumiu a forma de um órgão
efetivamente de trabalho, legislativo e executivo ao mesmo tempo, fortalecendo
a unidade nacional e a liberdade municipal local, contra as tendências
federalistas. Assim, a Comuna apresentou, concretamente, a
via para suprimir os sistemas de governo parlamentaristas e presidencialistas,
venais e corruptos, demontrando que não se tratava de destruir as instituições
representativas e a elegibilidade, mas de transformá-las em organismos de
trabalho efetivo, i.e. em orgarnismos não de debates acerca de ilusões
políticas e de engôdos populares, mas sim de trabalho revolucionário
proletário, concentrando em suas mãos as atividades efetivas relacionadas com o
exercício de funções executivas de administração, controle, registro,
supervisão, contabilidade etc. Nesse sentido, vide ainda ENGELS, FRIEDRICH. Kritik des Erfurter Programms (Crítica ao
Programa de Erfurt)(1891), in: ibidem, Vol. XXII, pp. 225 e s.; LENIN, VLADIMIR I. Gosudarstvo i
Revolutsia. Utchenie Marksisma o Gosudarstve i Zadatchi Proletariata v
Revoliutsi (Estado e Revolução. A Doutrina do Marxismo sobre o Estado e as
Tarefas do Proletariado na Revolução) (1917), Moscou, 1989, especialmente Cap.
III.3 : O Estado e a Revolução. A Experiência da Comuna de Paris(1871). A
Análise de Marx – A Supressão do Parlamentarismo, pp. 45 e s. Escrevendo sobre
a Comuna
de Paris, Marx enfatizou : “O seu verdadeiro segredo foi esse : a
Comuna foi um governo da classe operária, o produto da luta da classe dos
produtores contra a classe apropriadora, a forma política finalmente descoberta,
na qual se podia cumprir com a emancipação econômica do trabalho.” Cf.
MARX, KARL. Der Bürgerkrieg in Frankreich (A Guerra Civil na França)(1871),
in : ibidem, Vol. XVII, p. 341.
[46] Cf. TONDEUR, ALAIN & VERCAMMEN, FRANÇOIS. Réinventer
l’Espoir. Un Socialisme de la Libération pour le XXème Siècle, Bruxelles :
Fondation Léon Lesoil, 1993, pp. supra-referidas.
[47] É plenamente
contraditória a forma segundo a qual os mais pronunciados dirigentes do SU-QI
interpretam, presentemente, a problemática do suposto industrialismo
positivístico de Marx e Engels. Acima, são apresentados exemplos meridianamente
claros do prisma a partir do qual Michaël Löwy e François Vercammen, contemplando
o Manifesto
do Partido Comunista e a doutrina do marxismo segundo sua visão perpassada
por preconceitos muito difundidos nos mais avançados países
capitalistas-imperialistas da atualidade, „censuram“ Marx e Engels por seus „erros
e insuficiências“ em compreender o significado e o sentido que o
desenvolvimento das forças produtivas sob o capitalismo adquire para permitir à
humanidade sair da miséria e libertar-se do trabalho, sob a marca das crises
capitalistas periódicas de super-produção que o entravam e exigem que o
socialismo venha a „liberar“. Em um outro continente do mundo, aos principais
dirigentes e teóricos da seção brasileira do SU-QI, i.e. da Tendência
Democracia Socialista (DS), profundamente expostos às atrocidades e
necessidades objetivas marcantes dos países situados na periferia do processo
de remundialização capitalista, nem se lhes ocorre imputar tal censura de
industrialismo ao pensamento Marx e Engels. Com efeito, a Tendência
Democracia Socialista (DS) proclamou, recentemente, em suas Teses
para uma Atualização do Partido dos Trabalhadores acerca do tema : „O
progresso técnico deveria, em si e por si, ser uma benção, que possibilitaria a
todos trabalhar menos e alcançar uma produção maior, e, com isso, consumir
mais. Porém, a lógica do capitalismo neoliberal transforma essa benção para a
maioria da população em uma maldição : uma vez que os princípios políticos
neoliberais mantêm essencialmente estável a demanda global e aguçam a
„concorrência“, o progresso técnico conduz a que uns tenham de trabalhar mais (
sem receber mais ) e outros a perder seus empregos.“ Cf. TENDENZ
SOZIALISTISCHE DEMOCRATIE. These für eine Aktualisierung des Programms der
Arbeiterpartei(Tese para uma Atualização do Programa do Partido dos
Trabalhadores), in : INPREKORR. Internationale Pressekorrespondenz, Nr. 342,
April 2000, p. 9.
[48] Acerca do tema, vide
os próprios esclarecimentos de Vercammen e Tondeur, apresentados em IDEM. ibidem, p. 127, com a ambiciosa
pretensão de correção, enriquecimento e completação do marxismo. Cumpre anotar,
entretanto, que tais pretensões de Vercammen e Tondeur não são, de
nenhuma maneira, originais – sobretudo no que concerne à teoria de Sigmund
Freud, pois os pensadores ligados umbilicalmente à Escola de Frankfurt, tais
como Herbert Marcuse e
Erich Fromm – a despeito de suas disputas teóricas inter-pessoais -, e
mesmo Wilhelm Reich devem já ser considerados como os pensadores que
procuraram corrigir, enriquecer e completar o marxismo com as concepções
freudianas. Talvez Vercammen e Tondeur em suas futuras
produções literárias ambicionarão sugerir que a obra de Herbert Marcuse, intitulada
Eros
e Civilização, pode ser até mesmo tomada como exemplo emblemático a ser
observado para as atividades dos ideólogos do SU-QI em suas práticas de
correção, enriquecimento e completação do marxismo. Com efeito, Marcuse,
desenvolvendo suas análises sobre a base de um ecletismo „marxista-freudiano“,
alcançou a conclusão de que a classe trabalhadora, em nosso período
histórico, deixou totalmente de ser revolucionária, sendo que ela, por força da
lavagem cerebral a que lhe submeteu a dominação capitalista ao longo do século
XX, passou não somente a aceitar, senão ainda a necessitar do capitalismo para
seguir existindo. Tal fenômeno justificaria que um reduzido agrupamento de
iluminados - segundo Marcuse,
do feitio dos bolcheviques sob Lenin e Trotsky, - tomasse o poder a
fim de instaurar uma ditadura da minoria não opressiva, em
cujo âmbito processar-se-ia o processo de purificação cerebral e educação
libertária da classe trabalhadora. De toda sorte, a pretensão de Vercammen
e Tondeur relativa à promoção de um ecletismo entre marxismo e
freudismo, sem qualquer referência crítica contundente às produções
teórico-doutrinárias de maior impacto ideológico já realizadas por Marcuse,
Fromm e Reich, aspira a fazer com que o leitor mais desavisado
acredite, de fato, que tal ecletismo dar-se-ia em efetivo benefício do
marxismo, enquanto teoria revolucionária do proletariado para o atingimento do
socialismo. Acerca do tema, vide MARCUSE,
HERBERT. Eros and Civilisation. A Philosophical Inquiry into Freud, Boston
: Beacon, 1956, pp. 17 e s.; IDEM. An
Essay on Liberation, London : Penguin, 1969, pp. 5 e s.; IDEM. Soviet Marxism, A Critical Analysis, London : Routledge &
Paul, 1958, pp. 15 e s.; FROMM, ERICH.
Analytische Sozialpsychologie und Gesellschaftstheorie (Psicologia
Social-Analítica e Teoria Social), Frankfurt a. M. : Suhrkamp, 1970, pp. 7 e
s.; IDEM. Das Menschenbild bei Marx
(O Conceito de Homem em Marx), Frankfurt a.M. : Europ. Verl.-Anst., 1963, pp.
21 e s.; IDEM. Über die Methode und Aufgabe einer analytischen
Sozial-Psychologie (Sobre o Método e a Missão de uma Psicologia Social
Crítica), Berlim : Underground, 1968, pp. 57 e s.; REICH, WILHELM. Dialektischer Materialismus und Psychoanalyse
(Materialismo Dialético e Psicanálise), Berlim : Underground, 1968, pp. 11 e s.
[49]
Cf. FREUD, SIGMUND. Neue Folge der Vorlesungen zur Einführung in die
Psychoanalyse (Nova Conseqüência das Aulas de Introdução à Psicanálise)(1933),
in : Sigmund Freud. Gesammelte Werke (Sigmund Freud. Obras Completas), Vol.
XXV, Frankfurt a.M. : Fischer, 1996, pp. 7 e s.
[50] Cf. IDEM. ibidem, p. 35.
[51] Acerca do tema, vide,
precisamente, LENIN, VLADIMIR I.,
Gosudarstvo i Revolutsia. Utchenie Marksisma o Gosudarstve i Zadatchi
Proletariata v Revoliutsi (O Estado e a Revolução. A Doutrina do Marxismo sobre
o Estado e as Tarefas do Proletariado na Revolução) (1917), Moscou, 1989,
especialmente Cap. III.1 : O Estado e a Revolução. A Experiência da Comuna de
Paris(1871). A Análise de Marx – Em que consiste o Heroísmo da Tentativa dos
Communards, pp. 36 e s.
[52] Cf. LÖWY, MICHAËL. Das „Manifest“ in
Vergangenheit und Gegenwart(O „Manifesto“ no Passado e no Presente), in :
INPREKORR. Internationale Pressekorrespondenz, Nr. 319, Mai 1998, pp.
supra-referidas.
[53] Nesse sentido, vide LIGUE COMMUNISTE REVOLUTIONNAIRE, Une
Révolution Démocratique et Sociale. Urgence contre le Chômage. Pour une Europe
Unie Démocratique et Socialiste, in : Propositions de la LCR pour une autre
Europe. Au Parlement Européen. Documents, 1999.
[54] Cf. VERCAMMEN, FRANÇOIS. Gegen EU und Euro
– Für Ein Anderes Europa(Contra a União Européia e o Euro – Por Uma Outra
Europa), in : INPREKORR. Internationale Pressekorrespondenz, Nr. 321/322,
Juli/August 1998, contra-capa.
[55] Cf. IDEM.
Der Euro Kommt – Was Nun ?(O Euro Vem Aí – E Agora ?), in : INPREKORR.
Internationale Pressekorrespondenz, Nr. 321/322, Juli/August 1998, pp.
supra-referidas.
[56] Cf. TEXIER, JACQUES. Révolution et
Démocratie chez Marx et Engels, Paris : Actuel Marx Confrontation – PUF, 1998, contra-capa.
[57] Cf. IDEM. ibidem, p. 367.
[58] Cf. BIDET, JACQUES & TEXIER, JACQUES. Fin
du Communisme ? Actualité du Marxisme ?, in : Actuel Marx Confrontation.
Colloque International Sorbonne, 17-18-19 Mai 1990, organisé par la Revue
Actuel Marx et l’Istituto Italiano per gli Studi Filosofici, sous la direction
de Jacques Bidet et Jacques Texier, Paris : PUF, 1991, pp. 6 e 7.