CAPÍTULO I.

PARA ONDE FOI E PARA ONDE VAI A ATUAL DIREÇÃO DO SU-QI ?

 UM PEQUENO „ESCORREGÃO“

DA DITADURA DO PROLETARIADO

À DEMOCRACIA SOCIALISTA

 

Texto de Autoria de

Portau Schmidt von Köln

Emil Asturig von München

 

A Enfermidade Gramsciana

no Movimento Trotskysta Contemporâneo

e nas Lutas de Emancipação do Proletariado

Polêmica Trotsky e Gramsci  : Gramsci e Trotsky  

O SU-QI e a Corrente Franco-Gramsciana

de Atualização, Correção

e Superação do Marxismo

(O Meta-Marxismo de Actuel Marx)

 

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O repúdio clarevidente por parte do Secretariado Unificado da Quarta Internacional (SU-QI) da herança doutrinária mais sólida, legítima e secular do proletariado revolucionário processa-se, no contexto histórico de nossos dias, em favor da defesa de concepções políticas movediças e falaciosas, relacionadas, antes de tudo, com a defesa da “Democracia Socialista como pressuposto e condição para a transição rumo a uma sociedade realmente comunista” e de “Uma Europa Social e Democrática e um Mundo dos Cidadãos” – para empregar-se aqui, estritamente, essa arenosa terminologia estético-linguística dos próprios dirigentes políticos e expoentes teóricos do Secretariado Unificado da Quarta Internacional (SU-QI).

É precisamente por essa razão que, apresentadas tais consignas mestras da orientação política contemporânea do SU-QI, a presente exposição aparenta possuir, já desde seu início mais rudimentar, um inconfundível traço de déjà vu e de tantas idéias repisadas.

Aqui, caberia, antes de tudo, indagar : a nova inclinação doutrinária e política dos principais quadros do Secretariado Unificado da Quarta Internacional (SU-QI) no sentido da Democracia Socialista e de Uma Europa Social e Democrática e um Mundo dos Cidadãos, tratar-se-ia efetivamente de um passo inovador e inédito do SU-QI, no cenário das idéias acerca do conteúdo e forma de atingimento do socialismo, que incidem sobre a formação da consciência política dos trabalhadores e demais socialmente oprimidos ?

Quanto a tal indagação, cumpre assinalar, de partida, que, em verdade, o atual processo de remundialização neoliberal do capitalismo imperialista, bem como as revoluções do Leste Europeu, a derrubada do Muro de Berlim, a dissolução da União Soviética, são eventos históricos de relevância mundial que, sem a menor dúvida, reavivaram e recolocaram na ordem do dia dos debates de diversas organizações da esquerda socialista mundial a problemática da Via Democrática ao Socialismo, marcada essencialmente pela gradativa e progressiva Democratização da sociedade civil burguesa e do Estado Burguês, enquanto hipotético meio de transição rumo à edificação de sociedades regidas supostamente por uma Democracia Socialista, seja no seio dos países capitalistas imperialistas, seja naqueles situados na periferia do processo de exploração despótica do capitalismo remundializante, bem como nesses últimos, provindos da derrocada dos Estados operários burocratizados, particularmente submetidos à restauração acelerada das relações capitalistas-imperialistas.

Nada obstante, é imperioso afirmar que a presente orientação ideológica e política dos principais dirigentes e intelectuais do Secretariado Unificado da Quarta Internacional (SU-QI) em favor da Democracia Socialista - plenamente inserida na perspectiva central defendida pelos Espaces Marx e os Espaces Marx Réseau International. Pour Une Construction Citoyenne du Monde -, não é, com efeito, resultado de sua própria iniciativa intelectual e política independente, moderna, atual e inédita, razão porque resulta razoável, falar-se aqui, não de uma descoberta ou dimensionamento da Via Democrática ao Socialismo e de seus corolários teóricos, mas sim de sua reatualização e de seu crescente redimensionamento por parte da direção do Secretariado Unificado da Quarta Internacional (SU-QI).

Com efeito, tal como veremos, os atuais defensores da Democracia Socialista - entre eles os principais quadros do SU-QI -, passaram gradativamente, a partir dos anos 90 do século XX,  a defender a tese de que a via, percurso ou passagem democrática ao socialismo poderia ser postulada e admitida indistintamente, i.e. seja nos países capitalistas imperialistas, seja nos países situados na periferia da remundialização do capitalismo financeiro – o que por si só constitiui se não já uma total inovação, ao menos uma reformulação da teoria original relacionada com a Via Democrática ao Socialismo.     

Sem embargo, a postulação do conteúdo teórico e forma transicional da Via Democrática ao Socialismo e da Democracia Socialista, tal como hodiernamente defendida pelos principais dirigentes e expoentes intelectuais da Ligue Communiste Révolutionnaire (LCR) e, conseqüentemente, também do Secretariado Unificado da Quarta Internacional (SU-QI), encontra seu surgimento histórico-político e seu refinamento teórico-doutrinário, efetivamente mais abrangentes e especulativamente mais complexos, muito além da expressão intelectual adquirida ao longo das últimas décadas.  

Examinando-se, ainda que superficialmente, a mais recente história do após-guerra concernente às oscilações ideológicas dos partidos políticos franceses que se reivindicaram e se reivindicam socialistas-revolucionários – e não portanto socialistas-reformistas ou sociais-reformistas -, é mister assinalar que os mais expressivos defensores da Via Democrática e Pacífica ao Socialismo e, mais precisamente, da Democracia Socialista, despontaram, exatamente, entre os mais expressivos dirigentes e intelectuais do Partido Comunista Francês (PCF), do curso dos anos 70.

Esses protagonistas da reconformação política do PCF defenderam, já em meados da década em tela, em meio ao processo de estruturação do Euro-Comunismo, a aplicabilidade do programa de Via Democrática e Pacífica ao Socialismo nos países capitalistas imperialistas da Europa Ocidental dotados de processos antigos e maduros de industrialização.[1]

 

 

 

Com efeito, em 7 de janeiro de 1976, Georges Haddad, Secretário da Célula Pablo-Neruda – Epinay-sous-Sénart, do Partido Comunista Francês (PCF), propôs, no quadro do período pré-congressual do XX Congresso do PCF, fosse revista a redação de certos parágrafos do preâmbulo – em particular do parágrafo IX - dos Estatutos do PCF, no sentido de suprimir da redação de tal documento partidário a expressão “Ditadura do Proletariado”.

Nessa ocasião, sua intervenção surgia à luz da reflexão de que tal supressão resultaria mais adequada à realidade da luta de classe na França daquele momento histórico.

Naquela ocasião, Haddad assinalou, literalmente, nas colunas de L’Humanité :

 

“Porque evitar (a expressão) “ditadura do proletariado” ?

Porque, se noção histórica e fundamental foi, a “ditadura do proletariado”    correspondeu da melhor maneira a certas circunstâncias da luta de classes, em certas condições históricas, sociais e econômicas.

Porque também “ditadura” não tem a mesma ressonância nem o mesmo conteúdo de outrora, antes e depois do surgimento dos regimes fascistas, alemão e italiano, bem como depois da existência das ditaduras espanhola, grega, portuguêsa, recentemente falidas nos dois últimos casos ... sem esquecer das ditaduras da América Latina, em particular o Chile.

Porque, enfim, “ditadura”, é o oposto da democracia sempre mais ampla e das liberdades sempre mais extensas em favor das quais lutamos.

Porque “ditadura do proletariado” não é mais hoje uma verdade efetiva. Ela era uma verdade no fim do século XIX e no início do século XX. Ela permanece sendo uma verdade hoje, porém não reflete toda a realidade da atualidade, porque as perspectivas de vitória não repousam mais unicamente na luta de classe operária e do proletariado camponês, mas essencialmente na luta de classe operária em aliança com as largas camadas sociais anti-monopolistas, e não somente do campesinato proletário, no sentido de uma larga reunião em torno da classe operária, força decisiva da união do povo da França.”

 

Indicando, então, a forma redacional que os parágrafos 9 e 11 dos Estatutos do PCF haveria de, doravante, assumir, propôs Georges Haddad :

 

“Assim, o parágrafo 9 poderia ser redigido da forma a seguir :

‘ Esse novo poder político, cuja forma pode variar, assegura a democracia mais ampla, em particular para todos os trabalhadores, seja no plano econômico como no plano político.

Ele velará também por fazer progredir as liberdades em ligação com as necessidades econômicas, sociais e humanas.

Esse novo poder político dos trabalhadores abrirá e trabalhará sobre a via que conduzirá, progressivamente, do governo dos homens à administração das coisas, à sociedade comunista. ’

E depois, proponho acrescentar, ou completar o parágrafo 1, com a frase seguinte: ‘ Apenas como classe, a classe trabalhadora pode conduzir ao sucesso da luta revolucionária, porque ela é a força dirigente da luta pela transformação da sociedade. ’”[2]

 

 

 

A proposta de Georges Haddad de supressão da expressão “Ditadura do Proletariado”, levantada no início de 1976, no quadro do período pré-congressual do PCF, não pode ser devidamente entendida, senão em face do contexto histórico de solidificação e aprofundamento da política burocrática stalinista-brejeneviana de coexistência pacífica – e, portanto, de colaboracionismo de classes -, construção do socialismo em um só país e internacionalismo socialista, bem como tendo em vista o Programa Comum de Governo, celebrado entre o PCF e o Partido Socialista Francês, nos idos de 1972.

Naquele mesmo ano de 1976, Georges Marchais, Secretário Geral do PCF, intrevistado por Christian Guy, teve, precisamente, a oportunidade de observar acerca do tema, em pleno acordo com aqueles eixos ordenadores maiores de todos os PCs stalinizados :

 

“Christian Guy interroga, a seguir, Georges Marchais acerca da ‘ via democrática ao socialismo ’.

Georges Marchais – É a passagem ao socialismo sem a guerra civil.

Qual solução ? A LUTA : nos rejeitamos a guerra civil, mas não pode existir passagem ao socialismo sem uma dura luta sob todas as formas, na União do Povo da França, tendo como eixo a União da Esquerda e o meio das consultas eleitorais.

A maioria pronunciar-se-á, a cada etapa, pela via das eleições. ...

E, a cada etapa, o sufrágio universal decidirá ! ...

Nós estamos em 1976 .... o Partido Comunista não se encontra paralisado.

Ele não é dogmático. Ele sabe se adaptar às condições de seu tempo.

Ora, hoje a palavra “ditadura” não corresponde mais ao que queremos.

Ela possui um significado insuportável, contrário a nossas aspirações e a nossas teses ...

Mesmo a palavra “proletariado” não convém mais, porque nós queremos reunir, junto com a classe operária, a maioria dos trabalhadores assalariados ...

Mas, isso não significa que nós abandonamos o nosso objetivo: o socialismo com as cores da França ....

Porque sem socialismo não há saida da crise ....”[3]  

 

 

 

Com base na simples natureza desse reposicionamento teórico-político, sacramentado, então, solenemente e com ampla maioria de votos pelo PCF, no quadro de seu XX Congresso, torna-se já possível entender-se o fato de não se tratar absolutamente de um produto novidadeiro as posições políticas fundamentais defendidas, na última década e nos dias que correm, pelos principais dirigentes e mais expressivos intelectuais da Liga Comunista Revolucionária (LCR), bem como do Secretariado Unificado da Quarta Internacional (SU-QI).

Nada obstante, mesmo o mais profundo e detalhado exame da desenvoltura dos debates travados no quadro PCF, por ocasião da preparação e realização de seu XX Congresso, tendo como problemática crucial a questão da Via Democrática e Pacífica ao Socialismo, da Democratização da sociedade civil burguesa e do Estado Burguês, bem como da Democracia Socialista, é ainda plenamente insuficiente e inapto para divisar-se, percucientemente, as raízes históricas e os elementos doutrinários que embasam, originariamente, o surgimento de um tão profundo revisionismo democrático-pacifista dos fundamentos mais elementares contidos no pensamento socialista-revolucionário de Marx e Engels, Lenin e Trotsky.

Com efeito, aquilo que se pode ler nos debates travados no interior do PCF, ao longo de todo ano de 1976, nada mais representa senão uma vulgata, adaptada à realidade francesa, da temática concernente à Via Democrática e Pacífica ao Socialismo e da Democratização da sociedade civil burguesa e do Estado Burguês, como forma de ascender ao socialismo.

Tal como pretendo demonstrar adiante, o surgimento histórico original dessas consignas teórico-doutrinárias marxistas-revisionistas, a raiz intelectual primeira dessas formulações, diretamente deformadoras do marxismo-revolucionário, a fonte fundamental desses eixos ordenadores da perspectiva postulada pela Democracia Socialista, remontam, na realidade, às primeiras décadas do século XX, e permanecem como um enigma a ser decifrado a partir da interpretação do sentido e do significado das teses contidas nos principais escritos de Antonio Gramsci.

Entretanto, nesse passo, cumpre examinar a maneira segundo a qual Nahuel Moreno examinou a problemática relacionada com o impacto do Euro-Comunismo sobre as concepções formuladas pela direção do Secretariado Unificado da Quarta Internacional (SU-QI).[4]

 

 

 

Transcorreram já mais de 20 anos desde que Moreno deu à publicação seu livro intitulado “A Ditadura Revolucionária do Proletariado”, em cujo quadro voltou seu pensamento crítico contra a Resolução sobre “Democracia Socialista e Ditadura do Proletariado”, apresentada pelo SU-QI, no final da década de 70.[5]

 

 

Nessa sua obra político-polêmica, Moreno posicionou-se, ostensivamente, decidida e publicamente, no ano de 1979, contra a resolução do SU-QI em referência, alertando ser imprescindível retornar às fontes da doutrina revolucionária para reavivar a velha fórmula marxista relativa à Ditadura do Proletariado enquanto instrumento de impulsionamento da revolução socialista dos trabalhadores e demais socialmente oprimidos, incorpadora da mais ampla Soberania proletária, muito mais do que se esfalfar clamando, irrefletida e monotonamente, por Democracia Socialista e Ditadura do Proletariado, com sufrágio universal para todos os cidadãos e liberdade política ilimitada para todos os partidos políticos, inclusive contra-revolucionários.

Assim, a reposta à supostamente complexa e enigmática indagação, apresentada como título do presente capítulo, a saber: para onde foi e para onde vai a atual direção do SU-QI às vésperas de seu XV Congresso Mundial ? pode ter como ponto de partida, em linhas gerais, a recomendação da leitura - ou da releitura –por parte do leitor da obra de Moreno acima em destaque.

Em sua lógica argumentativa de vinte anos atrás, Moreno – entre outros teóricos que se reivindicavam adeptos do trotskysmo revolucionário  -  já se ocupava com o mister de desvendar o sentido e o significado da futura trajetória do SU-QI, materializado, mais dogmática e refinadamente, nas últimas décadas.

Eis aí, portanto sem maiores rodeios, uma das fontes bibliográficas fundamentais que delineava o quadrante geral em que a problemática da presente investigação surgia colocada, desde sua abertura ao seu colofão.

Quanto às linhas gerais da temática em causa, Moreno frizou, com penetração, já desde duas décadas :

 

“Quando os maiores Partidos Comunistas ocidentais, a saber o francês, o espanhol e o italiano, retiraram de seus programas a consigna de “Ditadura do Proletariado” um debate generalizou-se acerca do fenômeno assim chamado “Euro-Comunismo”, i.e. o abandono do conceito marxista-leninista do Estado, acompanhado de um criticismo superficial dos piores traços das burocracias stalinistas dominantes.

Nessa, como em todas as precedentes controvérsias, os ensinamentos marxistas, que têm sido corroborados e enriquecidos por mais de um século de experiências revolucionárias, estão colocados em jogo.

A fim de defender esses ensinamentos, o SU-QI aprovou uma resolução intitulada “Democracia Socialista e Ditadura do Proletariado”, segundo a qual os autores propunham um debate público.

Isso foi o correto a fazer, dado que a matéria é de grande interesse para os militantes de esquerda europeus e ocidentais.

Não é por acaso que no preciso momento em que a Europa experimenta um ascenso da lutas dos trabalhadores – que se espalham também pela América Latina, pelos EUA e pelas massas coloniais da Ásia e da África – os Partidos Comunistas decidem abandonar a consigna de “Ditadura do Proletariado”(p.19).

Os Partidos Comunistas estão simplismente ajustando suas teorias à sua velha prática quotidiana : o abandono da luta de classes e de sua conclusão : a Ditadura do Proletariado.  

Os mais fortes Partidos Comunistas da Europa Ocidental encontram-se sob uma pressão de dois tipos : a ofensiva imperialista sobre o padrão de vida e o emprego da classe trabalhadora, bem como a recusa dessa última de suportar o fardo da crise capitalista.

E eles fazem isso precisamente no momento em que seus respectivos imperialismos aumentaram a pressão sobre os Partidos Comunistas e Socialistas para aceitar os planos de austeridade.

O imperialismo – europeu, yankee e japonês – enfrenta essa resistência apelando para os preconceitos democrático-burgueses dos trabalhadores.

Através de seus meios de publicidade enormemente poderosos, ele sujeita as massas a permanentes campanhas que glorificam as virtudes da democracia burguesa  e da liberdade, criticando a falta de democracia e liberdade dos Estados operários(p. 20).”[6]

 

 

 

E, assinalando, detidamente, a posição adotada pela direção política do SU-QI diante desse contexto histórico, Nahuel Moreno destacou, sintetizando a essência das formulações teórico-políticas que marcaria toda a lógica dos posicionamentos e das ações práticas do SU-QI, empreendidos nas décadas que se seguiram:

 

“O SU-QI escreveu e publicou sua resolução precisamente a fim de responder aos eurocomunistas e defender as posições de Lenin e Trotsky.

Tudo isso, teria sido extremamente louvável e conquistado nosso apoio incondicional não tivesse o SU-QI cometido um crime teórico, político e histórico, ao atribuir à Ditadura do Proletariado objetivos e um programa do qual 90 % está delineado nos programas eurocomunistas e, portanto, em diametral oposição àqueles dos nossos mestres.

De acordo, com o SU-QI, a Ditadura do Proletariado estaria necessariamente comprometida a garantir “liberdade política ilimitada” à burguesia restauracionista e a seus partidos políticos, do primeiro dia de seu início para todo o sempre, desde que esses partidos não levantassem armas e declarassem guerra civil(p. 24). ...

Parece ser absurdo que tivéssemos de esclarecer porque não pode existir nenhuma “liberdade política ilimitada” ou “sufrágio universal” sob a Ditadura e que deveria existir um debate para confirmar que a Ditadura está contraposta à “liberdade política ilimitada” para todos os habitantes, desde que a Ditadura implica, por sua própria natureza, uma certa forma de supressão política. ...

O SU-QI tenta justificar sua posição fazendo referências a Lenin e Trotsky, porém é fácil demonstrar que seu novo programa não tem nada em comum com o que esses últimos fizeram ou disseram(p.25).”[7]

 

 

 

Logo nos primeiros ensaios desse, à época, novidadeiro “crime teórico, político e histórico”, Moreno assinalou, detidamente, acerca das desnaturações perpetradas, monstruosamente, pelo SU-QI, as quais transformariam, paulatinamente, o conteúdo científico da doutrina de Marx e Engels, Lenin, Sverdlov e Trotsky, em um disforme Quasímodo democrático-socialista de Notre Dame, a partir do advento mesmo do fenômeno do Euro-Comunismo, em meados dos anos 70:[8]

 

 

 

„Nós acreditamos que as citações acima, tal como nossos argumentos, provam suficientemente que o SU-QI revisou, completamente, a posição marxista-revolucionária acerca da Ditadura do Proletariado.

Não queremos dizer, nesse ponto, que o SU-QI está equivocado.

Estamos meramente provando o significativo fato de que suas presentes concepções estão opostas à posição marxista tradicional. ...

O que está acontecendo é que uma seção do movimento trotskysta europeu e ocidental tornou-se porta-voz dos preconceitos democrático-burgueses dos trabalhadores do ocidente, que se combinam com os traços ideológicos das influências ultra-esquerdistas, prevalentes, até recentemente, no movimento estudantil na Europa(p. 27).

Esses preconceitos estão manifestados no seu programa de “liberdade política ilimitada”, sendo que a influência ultra-esquerdista está demonstrada na negação, formal, acadêmica, das instituições democrático-burguesas.

Contudo, essa influência está sendo gradativamente substituída pelas instituições burguesas, tal como resulta demonstrado pelo desejo de Mandel de impor o “sufrágio universal” acima da Ditadura do Proletariado.

Essa corrente do movimento trotskysta está seguindo um caminho simétrico àquele do Euro-Comunismo : tanto o programa do SU-QI quanto o dos Partidos Comunistas ocidentais são o da “liberdade política ilimitada”, ainda que o primeiro apresente-a como um programa para a Ditadura do Proletariado, enquanto que os últimos levantam-na no contexto do sistema capitalista e transitório(p. 28).”[9]

 

 

 

Colocando em evidência os fundamentos sócio-materiais de tal capitulação do SU-QI, Moreno anotou, a seguir, em sua obra em destaque :

 

“A Internacional Comunista sob a direção de Lenin e, posteriormente, os trotskystas frizaram, insistentemente, a existência de preconceitos democrático-burgueses entre as massas do ocidente.

A força dos Partidos Sociais-Democrátas e Comunistas é uma clara expressão política desse fato. ....

Isso coloca um problema político-teórico.

A Quarta Internacional da Europa e dos EUA vive em uma sociedade e com massas que sofrem, imersas nos preconceitos democrático-burgueses.

Inevitavelmente, alguns líderes e correntes de nosso movimento tem de refletir esses preconceitos. Quem podem ser essas pessoas?

Infelizmente, essa questão é respondida por si mesma : a maioria do SU-QI. Quem mais poderia ser ? Alguém tem de refletí-los.

No final dos anos 60, quando o movimento estudantil europeu deu apoio massivo à Revolução Cubana, fez de Che Guevara seu herói e da guerra de guerilha seu método, esse fenômeno sócio-político foi, também, representado em nossa Internacional. ...

O que está ocorrendo agora é que o SU-QI expressa os preconceitos democrático-burgueses dos trabalhadores ocidentais em seus documentos, em suas políticas, bem como no interior das fileiras trotskystas.

A resolução sobre “Democracia Socialista e Ditadura do Proletariado” é a mais perfeita síntese da mais nova tendência revisionista que começou a se cristalizar.(p. 29)”[10]   

 

 

 

Após essas observações de Moreno - que tornam convidativo o exame de sua mencionada obra, visando à análise do perfil lógico-político do SU-QI nas últimas décadas -, cumprirá verificar e desenvolver, no presente trabalho, antes de tudo, de modo suplementar, os elementos básicos da orientação teórica e política assumida e defendida por essa organização internacional, ainda pretendidamente trotskysta, nos dias de hoje, i.e. no apagar das luzes do século XX, quando se situa nos umbrais de seu XV Congresso Mundial.

Em verdade, o SU-QI prosseguiu percorrendo politicamente e aprofundando intelectualmente, ao longo das últimas décadas, um “caminho simétrico” à herança teórica legada post mortem pelo revisionismo do antigo Euro-Comunismo, mesmo depois de concluído o malfadado e efêmero interstício de manifestação político-existencial desse último, no final dos anos 70.[11]

 

 

A partir do fracasso conteudístico e declínio formal desse fenômeno político, em princípio tipicamente europeu-ocidental, verificado nos principais partidos comunistas-stalinizados desse continente, o SU-QI dedicou-se, com efeito, a reajustar suas concepções doutrinárias e políticas, difusa e gradativamente, disfarçada e especulativamente, gravitando em conformidade com as oscilações teóricas dos intelectuais mao-stalinistas reciclados e democrático-humanistas dos Partidos Comunistas, que sobreviveram à falência do período eurocomunista.[12]

 

Uma significativa transformação do perfil ideológico e político da direção do SU-QI estaria, porém, por ocorrer nos anos seguintes.  

Com o surgimento da década de 80, no quadro da derrocada paulatina e insofreável dos Estados operários burocratizados do Leste Europeu, estimulador do avanço da remundialização neoliberal do capitalismo imperialista e, em particular, da edificação capitalista-imperialista da União Européia, a direção política e doutrinária do SU-QI haveria de expor-se, muito mais exponecial e progressivamente, ao impacto penetrante dos preconceitos democrático-burgueses, difundidos principalmente entre as massas proletárias dos países capitalistas-imperialistas, dando expressão articulada a esses últimos através de suas produções intelectuais, caracterizações políticas e consignas práticas.

O “crime teórico, político e histórico” que viria a cometer contra a doutrina socialista-revolucionária da emancipação do proletariado preencheria todas as suas possíveis condições agravantes já a partir de fins dos anos 80, i.e. mais precisamente a partir de 1986, quando os principais expoentes teóricos do SU-QI passaram a intervir, manifesta e fraternalmente, em estreita e aberta colaboração com os teóricos franceses de linhagem gramsciana de Actuel Marx, comandados por Jacques Texier e Jacques Bidet.

A partir desse momento o “caminho simétrico” do SU-QI em relação àquele do Euro-Comunismo, referido por Nahuel Moreno, nos fins dos anos 70, deixou progressivamente de existir enquanto tal, na medida em que a direção do SU-QI dirigiu-se da “simetria eurocomunista” ao mais total abandono da perspectiva da luta de classes voltada à libertação do proletariado e, por consegüinte, rumando para a mais cabal renegação da própria defesa teórico-fundamental e político-prática da Ditadura Revolucionária do Proletariado, enquanto fase transitória para a construção de uma sociedade sem classes e sem Estado, i.e. o socialismo ou ainda a primeira fase da sociedade comunista.[13]

 

 

Nesse sentido, cumpre atestar, literalmente, o modo e a forma segundo os quais, já nos primeiros anos da década de 90, o principal fundador da Ligue Communiste Révolutionnaire (LCR), em abril de 1969, e, também, o mais consagrado intelectual do Secretariado Unificado Internacional da Quarta Internacional (SU-QI) da atualidade, célebre professor da Universidade de Paris – Vincennes, Daniel Bensaïd, pronunciou-se acerca do ”pequeno escorregão” que conduziu o SU-QI a abdicar da concepção de Ditadura do Proletariado, em função da defesa da Democracia Socialista ou do Poder Popular:[14]

 

“Reprova-se freqüentemente a incapacidade de Marx de pensar a especificidade do político.

A abundância de seus “escritos políticos” decide esse litígio, sem sombra de dúvida. ....

Marx modifica radicalmente de terreno para inovar, pensando a política do oprimido.

Dito de outra forma : pensando as formas de ingresso na política, a irrupção e a intrusão dos excluídos da política institucional.

Sindicatos, cooperativas, partidos : a gestação do movimento operário como movimento político está no coração de suas preocupações.

Ela permanece sendo o primeiro problema de toda estratégia de transformação revolucionária(p. 213).

Porém, um século de provas e experiências que assistiu as vitórias revolucionárias minadas pela gangrena burocrática, exige um reexame metódico da questão da representação.

Não para a encerrar na antinomia, tão densa de mal-entendidos, entre democracia representativa e democracia direta.

Em meio século de ditaduras burocráticas, as palavras mesmas não sairam indenes.

Nós falamos mais preferentemente de Democracia Socialista ou de Poder Popular do que de Ditadura do Proletariado.

Escorregões de palavras, deslocamento de sentidos(no original francês : glissements de mots, déplacement de sens)(p. 214).”[15]

 

 

 

Nesse empenho originalíssimo de Daniel Bensaïd de procurar resituar, epistemologicamente, o sentido semântico da “Democracia Socialista enquanto pressuposto e condição para a transição rumo a uma sociedade realmente comunista”, no contexto da luta de classes dos anos 90, pode o leitor atento, sem margem de dúvida, atestar a importância que um pequeno escorregão, um pequeno deslocamento de sentido, i.e. un petit glissement, un petit déplacement de sens – ou talvez como diriam Marx e Engels, ein kleines Rutschen, eine kleine Sinnveränderung – podem assumir para transformar conceitualmente, à maneira da interpretação dos Atos dos Apóstolos, a Ditadura do Proletariado em Democracia Socialista.[16]

 

 

 

Cumpre apresentar ao leitor, a seguir, a maneira segundo a qual o mais conhecido dirigente e representante político do Secretariado Unificado da Quarta Internacional (SU-QI) da atualidade, membro do Bureau Político do Partido Operário Socialista, da Bélgica, François Vercammen, trata da problemática dos escorregões de palavras e dos deslocamentos de sentidos, da Ditadura do Proletariado à Democracia Socialista, a fim de corroborar-se o entendimento comum dos principais quadros da direção do SU-QI acerca do tema.

Acalentando a idéia expressada por Ernst Mandel em 1993 de que a criação da Tcheka, concebida enquanto Comitê de Saúde Pública da Ditadura Revolucionária do Proletariado na Rússia Soviética houvera sido necessariamente um erro manifesto, cometido por Lenin, Sverdlov, Trotsky e os bolcheviques, François Vercammen destaca o seguinte, em seu mais relevante trabalho teórico, realizado em colaboração com Alain Tondeur, intitulado Reinventar a Esperança. Um Socialismo da Libertação para o Século XXI  : [17]

 

 

 

„Desagrada aos neo-stalinistas que essa concepção de democracia na transição é, em todos os sentidos, conforme à tradição marxista.

Desde 1848, o Manifesto Comunista a proclama (p. 57) ...

A ofensiva ideológica contra o socialismo faz suas grandes encrencas (no original francês : fait ses choux gras) em virtude de que Marx apelava para uma „ditadura do proletariado“.

Mas, essa „ditadura“, para ele, não era nada senão o que a Comuna de Paris havia instaurado na prática.

O termo „ditadura“ choca hoje.

Esquece-se, simplesmente, de o recolocar no contexto da época.

A burguesia exercia, desmascaradamente, uma verdadeira ditadura da minoria.

Os parlamentos não eram eleitos senão pelos cidadãos de fortuna, o direito de greve e o direito de associação não existia para os trabalhadores.

Todas essas conquistas democráticas foram arrancadas pelo movimento dos trabalhadores, ao preço de lutas freqüentemente sangrentas(p. 58).“[18]

 

 

Tendo em vista os argumentos de François Vercammen o pequeno escorregão de Daniel Bensaïd poderia ser, plena e facilmente, esclarecido, da forma seguinte : Marx apelava para uma Ditadura do Proletariado entre aspas, i.e. para uma “Ditadura do Proletariado”, pois à época do levante da Comuna de Paris, a situação era bem outra em relação àquela dos dias de hoje.

Segundo Vercammen, outrora, a burguesia exercia, desmascaradamente, uma verdadeira ditadura da minoria – essa sem aspas -, os parlamentos eram exclusivamente eleitos pelos cidadãos de fortuna, não existia nem direito de greve nem direito de associação.

Nos dias que correm, i.e. na época da agonia mortal do capitalismo, todo o contexto é completamente diferente.

Presentemente, há direito de greve, há direito de associação, a burguesia exerce, não mais desmascaradamente senão apenas mascadaramente, sua verdadeira ditadura da minoria, os parlamentos são eleitos por sufrágio universal, secreto, livre e direto, e não apenas pelos cidadãos de fortuna.

„Todas essas conquistas democráticas foram arrancadas pelo movimento dos trabalhadores, ao preço de lutas freqüentemente sangrentas.“

Consegüintemente : le terme “dictature” choque aujourd’hui, sendo que o escorregão de Bensaïd resulta, então, justificado, pois, em verdade, se bem verificado, não se trata de um escorregão, mas sim do fato de que “esquece-se, simplesmente, de recolocar o termo “ditadura” no contexto da época”.

Acerca do papel da “democracia na transição”, François Vercammen conclui, então, “desmascaradamente”, ao leitor:

 

“O exercício mais amplo dos direitos democráticos na sociedade de transição não tem somente por função impedir a critalização de uma burocracia.

Essa função é, ao mesmo tempo, uma função econômica : uma economia orientada rumo à satisfação das necessidades não pode funcionar segundo os comandos de um aparelho de funcionários. ...

Democracia política, satisfação das necessidade e emancipação dos indivíduos estão, estreitamente, imbricadas.

A democracia é o único meio para a sociedade tomar seu destino nas mãos, começar a se desembaraçar de toda a maquinaria estatal que a enquadra e a oprime.

 É pela mesma razão o único meio para cada homem e cada mulher dessa sociedade se realisar, tornando-se, por assim, dizer proprietário privado do patrimônio coletivo(p. 59).

É-o na medida em que esse patrimônio coletivo será ao mesmo tempo “privado” que ele será coletivo, não no papel, mas na vida real(p. 60).”[19]

 

 

 

Eis aqui um impressionante colôsso analítico, equacionado por François Vercammen, em conjunto com Alain Tondeur, em relação aos “direitos democráticos na sociedade de transição”, confirmado, percucientemente, com suas seguintes concepções, em matéria de “liberdade total” de organização e atuação de todos os partidos políticos no contexto de sua “Democracia Socialista”:

 

“Marx falava da necessidade para a classe trabalhadora de se constituir em partido político.

Porém, ao dizer isso, ele tinha em mente não a forma organizativa do partido, senão a consciência de pertencer a uma classe.

Nesse sentido, existe um partido, um campo de oprimidos, não no sentido de que é necessário a essa classe um único partido de vanguarda para representá-la.

Pretender encontrar em Marx um argumento do monopartidismo revela má-fé. 

Mas, em última instância, pouco importa Marx.

O dogma monolítico escamoteia o fato de que a classe dos trabalhadores é plural. Eis aí o fundo da questão. ...

Porém, durante toda a etapa de transição, os partidos serão necessários em sua função atual, ao lado de outras formas de organização.

Por quê ?

Porque eles constituem a expressão mais acabada da luta de idéias.

O pluralismo político é, pois, inseparável dessa “conquista da democracia” que é o socialismo(p. 73).

Deve existir não apenas uma separação total entre o Estado e os partidos, senão ainda a liberdade total de organizar reagrupamentos, movimentos, associações, correntes, sindicatos, plataformas e partidos.

Sem essa liberdade, não existe florescimento pleno e completo dos direitos democráticos das pessoas(p. 74).”[20]

 

 

 

Essa magnificente produção intelectual de François Vercammen, contida no capítulo Tomar Partido Sem Partido Tomado ?, de sua obra de maior envergadura aqui em exame, Reinventar a Esperança. Um Socialismo da Libertação para o Século XXI, não poderia ser concluída de outra forma, senão com a mais ostensiva referência à expressão mágica e salvadora de toda a doutrina do SU-QI da atualidade :       

 

“Sem essa liberdade de organização dos grupos, tendências, partidos, movimentos e organizações sociais, não pode existir Democracia Socialista.”[21]    

 

 

Esses trechos da obra de Vercammen revelam, em primeira linha, sua mais ilimitada veneração supersticiosa não apenas em face da ideologia burguesa relativa aos méritos da democracia política senão ainda em relação à visão clássica do mundo da burguesia, i.e. a visão do mundo fornecida pelo Direito Burguês.[22] 

 

 

É, efetivamente, surpreendente verificar que o maior expoente político do SU-QI da atualidade não compreende o porquê de não poder existir “liberdade total de organizar... os partidos” nem “florescimento pleno e completo dos direitos democráticos das pessoas”, tendo-se em conta a experiência histórico-efetiva dos processos revolucionários do proletariado que conduzem à Ditadura Revolucionária do Proletariado, na medida em que essa última supõe, necessariamente, formas claras de supressão política em face das forças político-partidárias contra-revolucionárias restauracionistas.

Porém, para François Vercammen, “à la limite, peu importe Marx”, i.e. “em último instância, pouco importa Marx”.   

Pouco importa a Vercammen que, no contexto da concepção histórico-materialista do Estado de Marx e Engels, toda revolução proletária que logre abalar ou destruir o poder do Estado Burguês, já permite entrever que a classe exploradora dominante pretenderá, sempre e necessariamente, desde que possível, reconstruí-lo, a fim de poder melhor serví-la em seus propósitos de dominação política.

Nesse sentido, Marx e Engels esforçaram-se por elaborar, ao longo de mais de cinqüenta anos de investigações revolucionárias concretas, uma concepção clara e precisa das tarefas do proletariado revolucionário em face do fenômeno estatal. 

Já em sua obra a Miséria da Filosofia, produzida entre dezembro de 1846 e abril de 1847, Karl Marx afirmou que a tarefa central da classe trabalhadora seria a de lutar por estabelecer uma associação livre e igual de produtores que excluisse as classes sociais e seus antagonismos.

Uma vez estabelecida esse nova situação social, já deixaria de existir o poder político propriamente dito, já que esse último é a síntese oficial das contradições de classes na sociedade civil burguesa.[23]

 

 

Com a publicação do Manifesto Comunista, escritos por Marx e Engels em novembro de 1847, resultou nitidamente claro que a fase geral de desenvolvimento do proletariado, conduzida no quadro de uma guerra civil mais ou menos oculta, haveria de explodir em uma revolução aberta que teria como objetivo a derrubada violenta da burguesia e o estabelecimento de seu próprio domínio político-proletário.[24]

 

 

O primeiro passo da revolução proletária deveria ser, assim, a elevação do proletariado em classe dominante, conquistando sua democracia, i.e. conquistando a soberania proletária, servindo-se de sua supremacia política para arrancar da burguesia, pouco a pouco, todo o capital e concentrar todos os instrumentos de produção nas mãos do novo Estado Proletário, i.e. do proletariado mesmo, organizado enquanto classe dominante, aumentando com a máxima rapidez possível a massa das forças produtivas.

Nesse sentido, o Estado, para Marx e Engels, no quadro da irrupção da revolução proletária, seria, pois, o próprio proletariado organizado enquanto classe dominante e opressora da antiga classe exploradora no poder, i.e. a burguesia.

Tratar-se-ia, pois, agora de um Estado em via de extinção, organizado de forma a ser colocado a serviço da repressão da imensa maioria do povo contra a ínfima minoria dos modernos escravistas, i.e. os proprietários fundiários e capitalistas, com o objetivo de introdução de medidas transicionais rumo a uma sociedade socialista.[25]

 

 

Detalhando ainda mais precisamente sua concepção acerca do Estado em face das revoluções proletárias, Karl Marx elaborou, em sua obra intitulada O 18 Brumário de Luís Bonaparte, redigida entre dezembro de 1851 e março de 1852, o balanço histórico das primeiras revoluções proletárias européias de 1848 a 1851.

Nessa sede, Marx assinalou que a revolução do proletariado, trabalhando metódica e progressivamente, teria empurrado, inicialmente, o Poder Legislativo para poder derrubá-lo, seguindo, então, imediatamente, adiante em sua luta contra o Poder Executivo, a fim de reduzí-lo à sua expressão mais pura, isolá-lo, levantando-se diante desse último, entrevisto como o único obstáculo, concentrando contra ele todas as forças de destruição da revolução.[26]   

 

 

A partir daqui, passou a tornar-se mais claro o posicionamento de que as revoluções do proletariado deveriam destruir, despedaçar, demolir a máquina estatal burguesa, o poder do Estado Burguês, concepção essa que, como se vê, a direção do SU-QI renegou absolutamente, através de um escorregão rumo à Democracia Socialista.

Esse ponto decisivo da revolução proletária, Lenin viria a considerar, posteriormente, como o traço prinicipal e fundamental da doutrina de Marx sobre o Estado (glavnoe, ocnovnoe v utchenii marksizma o gosudarstve), traço esse plenamente desnaturado e esquecido pelos teóricos sociais-democrátas mais célebres da II Internacional, novos e velhos ideólogos dos Partidos Comunistas Stalinizados, gramscianos de todas as espécies e nacionalidades e, igualmente, dirigentes políticos e intelectuais do Secretariado Unificado da Quarta Internacional(SU-QI).[27]

 

 

Em sua carta de 5 de março de 1852, dirigida a Joseph Weydemeyer, Marx assinalou, então, que sua contribuição particular e inovadora para a doutrina da luta de classes foi, efetivamente,  o de esclarecer que, estando as classes sociais ligadas a determinadas fases de desenvolvimento histórico da produção econômica, a luta travada entre elas haveria de conduzir, inevitavelmente, à Ditadura Revolucionária do Proletariado, entendida essa última tão somente como uma passagem rumo à supressão de todas as classes e o estabelecimento de uma sociedade sem classes.[28]

 

 

Tal colocação destacou, claramente, a imprescindibilidade de edificação de um Estado democrático sim, porém de novo gênero – i.e. um Estado para os proletários e não para os proprietários capitalistas em geral -, e, essencialmente, ditatorial de novo gênero, para o abatimento e a aniquilação completa da burguesia.[29]

 

 

Ao mesmo tempo, François Vercammen demonstra, claramente, ao leitor que a direção política e intelectual do SU-QI abandonou, ostentiva e inteiramente, a herança marxista-leninista no que concerne à questão do Direito na revolução proletária, quando afirma que „a democracia é, pela mesma razão, o único meio para cada homem e cada mulher dessa sociedade se realisar, tornando-se, por assim, dizer proprietário privado do patrimônio coletivo. É-o na medida em que esse patrimônio coletivo será ao mesmo tempo “privado” que ele será coletivo, não no papel, mas na vida real”.     

Confrontada a concepção de Lenin acerca do tema com essa malsinada e absurda declaração de François Vercammen, resulta clarevidente qual é, efetivamente, o caminho que percorre o SU-QI na atualidade.

Com efeito, permanentemente preocupado em fixar os fundamentos do Direito Proletário Revolucionário no processo de edificação da Ditadura Revolucionária dos Trabalhadores, forma transicional para o socialismo, Lenin, dirigindo-se a Dimitri Kurski, Comissário do Povo da Justiça que substitui Piotr Stutchka, demonstrou compreender profundamente a essência do Direito Burguês, sabendo apontar, com perspicácia, uma alternativa concreta capaz de superá-lo :

 

“Nós não reconhecemos nada de “privado”.

Para nós, tudo, no domínio da economia, é de natureza jurídico-pública, e não privada.

Permitimos apenas o capitalismo de Estado.

Conseqüentemente, devemos fazer uso ampliado da ingerência estatal nas relações “jurídico-privadas”, alargando o Direito do Estado de dissolver contratos “privados”.

No que concerne às “relações de Direito Civil”, devemos aplicar não o Corpus Iuris Romani, mas sim nossa consciência revolucionária do Direito, sistematicamente, insistentemente, rigorosamente, demonstrando em uma série de processos paradigmáticos como deve-se proceder com compreensão e energia.”[30]

 

 

 

Tendo-se em conta a efetiva doutrina de Marx e Engels, Lenin e Trotsky, acerca do Estado, da Democracia e do Direito no contexto da época histórica das revoluções proletário-socialistas já é possível entrever-se como a própria expressão linguística Democracia Socialista ou Socialismo Democrático representa uma contradição em si e por si mesmo.

Com efeito, levando-se em conta os fundamentos normativos da Constituição de Lenin e Sverdlov, o socialismo, ou ainda a primeira fase da sociedade comunista, implicaria a superação da fase transitória relativa à Ditadura Revolucionária do Proletariado, incorporadora da mais ampla e historicamente superior Soberania proletária, destinada à construção de uma sociedade sem classes e sem Estado.[31]

 

 

Com efeito, Karl Marx assinalou, em sua Crítica ao Programa de Gotha, que entre a sociedade capitalista e a sociedade comunista, existe um período de transformação revolucionária de uma em outra, um período de transição, no qual o Estado não poderia ser outro senão a Ditadura Revolucionária do Proletariado.[32]

 

 

Emergindo do seio do capitalismo, trazendo os vestígios da velha sociedade de cujo âmbito procede, essa Ditadura pode conduzir, segundo Marx, à primeira fase, i.e. à fase inferior do comunismo, ou, como se diz comumente, ao socialismo.

Nessa primeira fase, se princípios advindos do Direito Proletário passarão a reger as relações de propriedade dos meios sociais de produção, consagrando sua estatização, regras oriundas do antigo Direito Burguês, que pressupõe a desigualdade material dos homens, seguirão existindo como regulador no domínio da repartição dos bens de consumo e necessários à vida, segundo o seguinte axioma de conteúdo ainda expressamente jurídico-burguês : “para igual quantidade de trabalho, igual quantidade de produtos”.[33]

 

 

Assim, o socialismo, pressupondo a superação da fase transitória da Ditadura Revolucionária do Proletariado, incorporadora essa última da mais ampla Soberania proletária, não pode, entretanto, ainda realizar integralmente a justiça material e a igualdade real, na medida em que sigam existindo as injustas diferenças de riqueza, embora não seja mais possível, sob sua égide, perpetrar-se a exploração capitalista do homem pelo homem.

Apenas na fase mais elevada da sociedade comunista - ou, como se diz habitualmente, no quadro do comunismo -, quando resulta eliminada à subordinação do homem à divisão do trabalho, bem como o contraste entre trabalho físico e trabalho intelectual, deixando o trabalho de ser um meio de subsistência para tornar-se a primeira necessidade de vida, apenas então o horizonte do Direito Burguês pode ser totalmente superado no domínio da repartição dos produtos econômicos, podendo os homens trabalharem para a sociedade sem qualquer Direito e sem qualquer norma jurídica, segundo o seguinte princípio comunista de convivência social : “de cada um segundo sua capacidade, a cada um segundo sua necessidade”.[34]

 

 

No curso da consolidação das primeira e segunda fases da sociedade comunista, já não existirão as forças burguesas e latifundiárias a serem oprimidas, que tornam indispensáveis uma força repressiva particular exercida contra elas pelas grandes massas oprimidas, i.e. um Estado Proletário, e conseqüentemente – cumpriria acrescentar -, na medida em que desaparecessem progressivamente as diferenças de riqueza e as desigualdades materiais, seria possível caminhar-se rumo à própria extinção de toda e qualquer forma de Direito ou fenômeno jurídico.

Sendo assim, procedendo dessa forma, o proletariado percorre, entretanto, um processo de supressão de si mesmo enquanto classe, abrindo a perspectiva de abolição de toda diferença e antagonismo de classe e, por consegüinte, de extinção do Estado e do Direito Proletários enquanto tais, bem como de sua correspondente forma política, i.e. da Soberania proletária, rumo à edificação de uma sociedade comunista.

Nesse quadro, o primeiro ato com o qual o Estado se apresentaria efetivamente como autêntico representante de toda a sociedade, i.e. através da tomada de posse de todos os meios de produção em nome da sociedade, já deve representar, segundo Engels, o seu último ato independente enquanto Estado.

No lugar do governo sobre as pessoas, tende a surgir a administração sobre as coisas e a direção consciente dos processos produtivos.[35]

 

 

Sendo assim, é correto afirmar que o Estado não é abolido – tal como o afirmam os anarquistas, porém sim que ele se extingue.[36]

 

 

Como tornar-se possível falar, de Democracia Socialista ou mesmo Socialismo Democrático é algo que podem explicar apenas os expoentes intelectuais mais renomados do Secretariado Unificado da Quarta Internacional(SU-QI), que deformaram e rejeitam, agora, crescentemente, os fundamentos essenciais da doutrina marxista, em favor de sua capitulação à ideologia gramsciana, veiculada pela corrente de correção, atualização e superação do marxismo, no sentido meta-marxista franco-gramsciano de Actuel Marx.

Dê-se provas ao leitor do que aqui se afirma, trazendo-se à luz os próprios argumentos acerca do tema, elaborados pela mais célebre dirigente político e intelectual da Ligue Communiste Révolutionnaire (LCR), e, por consegüinte, também do SU-QI da atualidade, Mestre de Conferências da Universidade de Paris IX – Dauphine (Sorbonne), Catherine Samary.

Escrevendo nas páginas da Revista INPREKORR, órgão oficial do SU-QI, Samary assinala, de modo meridianamente claro, em seu artigo, de janeiro de 1998, intitulado Revolução de Outubro : Problemas Econômicos e Sociais :

 

„No contexto de um ambiente hostil, de guerra civil, a questão da democracia era, ao mesmo tempo, decisiva e difícil.

Não se deve confundir as medidas de exceção adotadas pelos bolcheviques em tais condições com aquelas surgidas sob Stálin, no quadro da „Construção do Socialismo“.

Porém, pode-se compreender como a proibição das frações e dos partidos ou a dissolução da constituinte favoreceu a degeneração stalinista.

Além disso, nas medidas tomadas não se tratava sempre de casos de necessidade.

Depois da tomada do poder, não havia nenhuma experiência e também nenhum debate acerca da questão da Democracia Socialista e do Estado de Direito.

Hoje, pode-se verificar até que ponto o conceito de „Democracia dos Trabalhadores“ (que foi interpretada como a „boa versão“ da Ditadura do Proletariado) foi pervertido e limitado ...

É imprescindível existir uma confrontação de idéias (também com aqueles que se posicionam hostilmente contra o socialismo).

Uma coisa diferente significa repressão política de pessoas, que lutam armadas contra o projeto socialista(p. 19).

O „Outubro“ não representa nenhum modelo.

Apesar disso, não podemos enterrar tão rapidamente nem o conceito de crise revolucionária nem a concepção de duplo-poder(p.20).“[37]

 

 

 

Eis como Catherine Samary observa que, depois da tomada do poder, os bolcheviques não possuíam nenhuma experiência no debate acerca da Democracia Socialista e do Estado de Direito, i.e. acerca de um Estado de Direito Democrático e Socialista, ou ainda um Estado Socialista, Democrático de Direito (!) etc. etc., razão pela qual o „Outubro“ não representaria mais nenhum modelo a ser reivindicado, defendido e perseguido.

Sim, porque, segundo Samary, o conceito de “Democracia dos Trabalhadores” – considerado como a boa versão da Ditadura do Proletariado – foi pervertido e limitado, devendo ser reformulado, com base no debate acerca da Democracia Socialista e do Estado de Direito.  

Conclusão imediata da maior dirigente e intelectual do SU-QI da atualidade, seguindo, fielmente, os passos de seu inspirador Ernst Mandel, procurando, porém, superá-lo, no quadro do atual colaboracionismo do SU-QI com o franco-gramscismo meta-marxista de Actuel Marx : „É imprescindível existir uma confrontação de idéias (também com aqueles que se posicionam hostilmente contra o socialismo). Uma coisa diferente significa repressão política de pessoas, que lutam armadas contra o projeto socialista.“, caso contrário não será possível rumar-se para o horizonte da Democracia Socialista e o Estado de Direito, situados para além dos confins de todas as experiências e desilusões históricas, à margem da eternidade, nos longes mais afastados dos descortinos humanos, ali onde a pureza dos conceitos gerais metafísicos, absolutamente racionais, resplandece nas entreabertas das luzes celestiais misteriosas do conhecimento transcendental, válido em si, por si e para si mesmo.

Em suma, para que haja Democracia Socialista e Estado de Direito, idéias mestras e norteadoras da política e da doutrina atual do SU-QI – em franca rejeição e afastamento do conceito marxista relativo à Ditadura do Proletariado, segundo Catherine Samary, „interpretada na sua boa versão como “Democracia dos Trabalhadores” – é imprescindível que os proletários revolucionários concedam direitos políticos ilimitados também a todos aqueles que se posicionam „hostilmente contra o socialismo“, i.e. também às forças contra-revolucionárias capitalistas-restauracionistas, até o momento em que essas, certamente, recorrerão às armas e desencadearão uma ofensiva militar contra o poder público instaurado pela revolução socialista-proletária.[38]  

 

 

Com base nesses fundamentos, cumpre afirmar que a direção do SU-QI percorreu uma trajetória que foi do “caminho simétrico” àquele do Euro-Comunismo – tal como observado por Moreno, em fins da década de 70 – rumo, diríamos assim, não propriamente ao “caminho idêntico” ao do Euro-Comunismo – mesmo porque esse último faliu em seu projeto essencial, antes mesmo de conhecer sua conformação mais acabada.

Mais precisamente : o SU-QI percorreu, nas últimas décadas, e segue, presentemente, percorrendo uma trajetória que, partindo desse “caminho simétrico”, veio a desembocar, cada vez mais irreversivelmente, no caminho da capitulação à ideologia original que inspirou o Euro-Comunismo nos anos 70, i.e. o caminho da capitulação ao gramiscismo, enquanto doutrina essencialmente renegadora do trotskysmo, parasitária e revisionista de toda tradição proletário-revolucionária marxista-leninista, o que lhe conduziu a empreender, definitivamente, seu “pequeno escorregão” de abandono integral da Ditadura do Proletariado em prol da Democracia Socialista.[39]

 

 

Sendo assim, o SU-QI, absorvendo e reproduzindo a ideologia gramisciana, passou a adotar, nas últimas décadas, teorias e práticas radicalmente antagônicas às tarefas de organização da revolução violenta dos trabalhadores para a destruição, desmantelamento, demolição do Estado Burguês, para a Sprengung der bürgerlichen Staatsmacht, tal como diria Engels, i.e. para a implosão, o fazer saltar pelos ares do poder do Estado Burguês, visando à edificação da Ditadura do Proletariado, enquanto instituição estatal proletária eminentemente transitória, incorporadora da mais ampla Soberania proletária, voltada ao fomento da abolição de todas as classes e estabelecimento de uma sociedade sem exploração do homem pelo homem.[40]

 

 

Convém demonstrar, nesse passo, como tal caracterização histórico-política acerca da trajetória do SU-QI encontra seu fundamento teórico mais coerente e cristalino no sentido e significado conteudístico das posições por ele defendidas, nas últimas décadas.

Com efeito, a alegoria conceitual de Nahuel Moreno acerca do “caminho simétrico”, percorrido pelo SU-QI em face do Euro-Comunismo, é valiosíssima e teve como pressuposto mínimo e elementar, no quadro dos anos 70, a referência e orientação - ainda que canhestra, tacanha, deformada, i.e. meramente formal -, dessa organização trotskysta internacional na concepção de revolução dos trabalhadores, deflagrada contra as instituições democrático-burguesas, bem como na Ditadura Revolucionária do Proletário.

Nesse sentido, escreveu Nahuel Moreno, de maneira plenamente detalhada, acerca do estágio de desvirtuação teórica e política orquestrada pela direção do SU-QI, nos idos de 1979 :  

 

“Essa corrente do movimento trotskysta está seguindo um caminho simétrico àquele do Euro-Comunismo : tanto o programa do SU-QI quanto o dos Partidos Comunistas ocidentais são o da “liberdade política ilimitada”, ainda que o primeiro apresente-a como um programa para a Ditadura do Proletariado, enquanto que os últimos levantam-na no contexto do sistema capitalista e transitório(p. 28). ...

Hoje, podemos dizer que o Euro-comunismo e as atuais políticas do SU-QI são, grosso modo, fenômenos simétricos, motivados pelas mesmas razões sócio-políticas : os avanços do movimento europeu dos trabalhadores e o fardo dos preconceitos democrático-burgueses das massas.

Eles são simétricos, porém não são idênticos.

Contra os eurocomunistas, os companheiros do SU-QI defendem, formalmente, a Ditadura do Proletariado e a necessidade da revolução dos trabalhadores contra as instituições democrático-burguesas, alegando enfaticamente serem os guardiães dos ensinamentos de Lenin e Trotsky.

Eles tentam convencer os trabalhadores e a opinião pública de que a Ditadura do Proletariado, tal como a definem – mais legitimada, judiciosa, generosa, libertária e democrática em relação aos partidos contra-revolucionários –, é a Ditadura, contemplada por nossos mestres(p. 29).

Contudo, esse não é o caso.

A maioria do SU-QI tem o mesmo programa para a Ditadura do Proletariado que os eurocomunistas possuem para o socialismo e o sistema capitalista.

A maioria do SU-QI e os eurocomunistas estão em completo acordo com o sistema multi-partidário e a concessão de absoluta liberdade aos partidos burgueses em todos os estágios da luta de classes, contrariamente às concepções marxistas tradicionais(p. 30)”[41]

 

 

 

E, concluindo, sua análise política acerca da orientação do SU-QI no final dos anos 70, Moreno assinalou:

 

“Para resumir : o SU-QI não responde às pressões eurocomunistas do modo segundo o qual um trotskysta deveria fazê-lo, porém aceita em grande parte suas premissas, declarando que :

« Nós ainda apoiamos a Ditadura do Proletariado e a revolução dos trabalhadores, porém eliminemos as confusões : nossa Ditadura dará “liberdade política ilimitada” imediata a todos os cidadãos, incluindo os contra-revolucionários, substituindo parlamentos com soviets, os quais serão muito mais democráticos, abertos à toda a população e não apenas aos trabalhadores ».

O companheiro Mandel fortalece essa capitulação ao Euro-Comunismo, declarando que é “um defensor intransigente do sufrágio universal antes, durante e depois da tomada do poder pelos trabalhadores(El País, Madrid, 7 de Agosto de 1978)(p. 30)”.[42]

 

 

 

O impacto colossal produzido pela bancarrota e derradeira dissolução dos Estados Soviéticos degenerados pelo stalinismo, bem como a expansão da remundialização do capitalismo financeiro na últimas décadas, lançaram as bases para a consumação da mais aberta capitulação da direção do SU-QI ao gramscismo, e, através desse último, também às representações teóricas e políticas da ideologia capitalista-imperialista, plasmada, da maneira mais refinada, nas  instituições jurídico-públicas e privadas do Direito e do Estado Burgueses.

Tais novos fenômenos sócio-econômicos e político-institucionais, dinamizados pela força da pressão incomensuravemente maior dos preconceitos democrático-burgueses das massas proletárias ocidentais, revivificados no quadro da ofensiva imperialista neoliberal remundializante, pressionaram e seguem pressionando o SU-QI a deformar e abandonar, da maneira mais absoluta, todos os principais elementos da doutrina de emancipação socialista-revolucionária do proletariado.

Nesse quadro, é precisamente correto afirmar que, para seguir existindo enquanto organização política situada oportunisticamente no seio do movimento dos trabalhadores e das massas exploradas, o SU-QI foi forçado a mover-se, no curso das últimas décadas, do “caminho simétrico” àquele do Euro-Comunismo, em direção ao sendeiro do acolhimento, absorção e reprodução da ideologia original que inspirou o Euro-Comunismo nos anos 70, i.e. o caminho da capitulação ao gramiscismo, enquanto doutrina revisionista e parasitária da tradição proletário-revolucionária marxista, essencialmente hostil ao trotskysmo e mais refinadamente adaptada aos preconceitos democrático-burgueses que dominam e oprimem as massas proletárias dos países capitalistas-imperialistas, bem como adicionalmente, aquelas dos principais países situados na periferia da remundialização capitalista-imperialista.

Esse novo estágio da degeneração do SU-QI criou as bases para que seus mais ínclitos dirigentes e intelectuais, em cordial colaboração doutrinária – sem maiores críticas, choques e contrastes -, viessem a se reunir agora com os expoentes intelectuais da corrente franco-gramsciana meta-marxista de atualização, correção e superação do marxismo, i.e. a corrente de Actuel Marx, e, suplementarmente, por essa via, com os pensadores mao-stalinistas resituados e democrático-humanistas de maior envergadura do Partido Comunista Francês(PCF), sob o mesmo teto dos assim chamados Espaces Marx e, sua contra-parte de dimensão mundial, os Espaces Marx Réseau International. Pour Une Construction Citoyenne du Monde, i.e. os Espaços Marx e os Espaços Marx Rede Internacional. Em favor da Construção de uma Cidadania do Mundo.

O intuito de tal iniciativa de aliança de forças ecléticas de esquerda – que parte de bases mao-stalinistas recicladas e encontra sua coroação mais ostensiva no franco-gramscismo meta-marxista de Actuel Marx - não é outro senão o de tentar dissipar, na mais plena cumplicidade, os vestígios do “crime teórico, político e histórico” que perpetraram antes, de maneira mais velada, e, agora, com mais numerosas agravantes, os principais dirigentes do SU-QI contra a doutrina revolucionária de Marx e Engels, Lenin e Trotsky.

Cabe, agora, portanto, demonstrar, cabal e literalmente, ao leitor interessado, lançando mão dos próprios posicionamentos de outro preclaro teórico da Ligue Communiste Révolutionnaire (LCR), e, de igual forma, um dos mais renomados intelectuais e, poder-se-ia dizer também, um dos certamente mais ínclitos especialistas em matérias bíblico-messiânicas do Secretariado Unificado Internacional da Quarta Internacional (SU-QI) da atualidade, célebre professor da Universidade de Paris – Nanterre, Michaël Löwy, como esse colaboracionismo “trotskysta-gramsciano” - ou ainda um pouco mais ousadamente – como esse colaboracionismo “trotskysta-gramsciano” com o “neo-mao-stalinismo democrático-humanista” tornou-se plenamente viável, sob a base da atualização, correção e superação do marxismo.

Com efeito, Michaël Löwy, em seu célebre artigo O “Manifesto” no Passado e no Presente, escreve da seguinte maneira, nas colunas principais do órgão oficial, Revista INPREKORR, Correspondência de Imprensa Internacional, do SU-QI, em maio de 1998, em saudação aos 150 anos do Manifesto do Partido Comunista, de Marx e Engels :

 

“Enquanto o capitalismo existir, o marxismo foi, é e será uma ferramenta irrenunciável para a compreensão e transformação do mundo. ...

Isso não significa, naturalmente, que na obra de Marx não existam problemas e limites ou que os marxistas nada possam aprender de outras experiências e formas do pensamento emancipatório.

O “Manifesto do Partido Comunista” é o mais conhecido dos escritos marxistas.

Nenhum outro livro, a não ser a Bíblia, é tão freqüentemente traduzido e repetidamente editado.

Com a Bíblia, ele não tem, naturalmente, muito em comum, a não ser a denunciação profética da injustiça social. Tal como Esaías e Jacó, Marx e Engels levantaram sua voz contra os crimes dos ricos e dos poderosos, colocando-se ao lado dos pobres e dos fracos ... Naturalmente, existem passagens, idéias e argumentos no “Manifesto Comunista” que, entrementes, tornaram-se obsoletos, que precisam ser criticados e desconstruídos (no original alemão : kritisiert und dekonstruiert). Porém, a orientação essencial do documento, seu cerne central, seu espírito – pois, existe, de fato, algo como o “espírito” de um escrito – é não apenas ainda importante : ela é ainda mais relevante do que há 150 anos ! ...(p. 21).

Por outro lado, o documento padece de algumas insuficiências, que não decorrem de excesso de zelo revolucionário, tal como a maioria dos críticos do marxismo afirmam, senão, pelo contrário, da escassa distância crítica em relação à civilização burguesa moderna e industrial.

Gostaria aqui de dar alguns exemplos :

1.     De modo tipicamente eurocentrista, Marx e Engels louvaram a burguesia. Ela teria impelido todas “as nações mais bárbaras na civilização”. Marx e Engels pareciam considerar o domínio colonial do ocidente como parte do papel histórico-“civilizador” da burguesia : “Tal como o campo em relação à cidade, os países bárbaros e semi-bárbaros tornaram-se dependentes dos países civilizados, os povos camponeses dos povos burgueses, o oriente do ocidente.” ...

2.     Inspirados pelo “otimismo do livre comércio” burguês e por uma metodologia inteiramente economista, Marx e Engels pressupuseram, erroneamente, que : “As segregações e as oposições nacionais dos povos desaparecem, mais e mais, com o desenvolvimento da burguesia, a liberdade de comércio, o mercado mundial, a uniformidade da produção industrial e de seus modos de vida respectivos”. ....

Marx e Engels vangloriaram a burguesia por sua inigualável capacidade de desenvolver as forças produtivas.

Marx e Engels glorificaram a “subjulgação das forças da natureza” e a “cultivação de partes do mundo inteiras”.

A destruição do meio ambiente natural pela indústria capitalista, a ameaça ao equilíbrio ecológico pelo desenvolvimento ilimitado das forças produtivas situavam-se muito além do horizonte espirtual de Marx e Engels. ...

Essas insuficiências foram, mais tarde, corrigidas apenas insatisfatoriamente por Marx e Engels, como também por porsteriores marxistas.

Apenas nas últimas décadas, com o surgimento do socialismo ecológico, foram empreendidas sérias tentativas de integrar visões fundamentais da ecologia no quadrante da teoria marxista.

Porém, apesar de todos esses erros e limitações, foram corretas as presunções básicas do Manifesto Comunista ...(p. 22)“[43]

 

 

 

Identificando o suposto sentido bíblico, profético e caritativo do Manifesto do Partido Comunista posto que Marx e Engels colocaram-se “ao lado dos pobres e dos fracos”, tal como fizeram-no Esaías e Jacó, à época do Velho Testamento – examinando, cuidadosamente, “as obsolescências, os problemas, as insuficiências e os erros” do Manifesto do Partido Comunista, Michaël Löwy procede à sua crítica e à sua desconstrução da obra mais conhecida de Marx e Engels – anote-se bem, apenas menos divulgada do que as Escrituras Sagradas  -, colocando em evidência o euro-centrismo, a inspiração pelo otimismo do livre cambismo burguês, o método inteiramente economicista dos autores do Manifesto do Partido Comunista.    

Marx e Engels teriam, pois, segundo o crítico e “desconstrutivista” professor sorbonnard, Michaël Löwy, glorificado e vangloriado o industrialismo positivístico da burguesia, tendo o problema ecológico permanecido muito além de seus horizontes espirituais.

É verdadeiramente sintomático e plenamente corente com o caminho de onde foi e para onde vai o SU-QI, título do presente capítulo dessa investigação, o fato de que, em todas as linhas de seu referido artigo intitulado O “Manifesto” no Passado e no Presente, de maio de 1998, o nímiamente célebre expoente intelectual da atual Ligue Communiste Révolutionnaire (LCR) e do Secretariado Unificado Internacional da Quarta Internacional (SU-QI) não se tenha demonstrado interessado em destacar, em letras garrafais, qual a importância da Ditadura Revolucionária do Proletariado para a única grande, profunda e essencial atualização, empreendida conjuntamente por Marx e Engels, no Manifesto do Partido Comunista e em sua doutrina dialético-materialista sobre o Estado, tendo como base a experiência revolucionária dos communards parisiens.

O mestre intelectual mais pranteado e sobejamente venerado pela LCR Francesa e pelo SU-QI, renomado internacionalmente nos dias que ocorrem por sua auréola intelectual impávida e sobranceira em questões doutrinárias relativas ao marxismo, pretendeu, evidentemente, de maneira propositada, ocultar ao leitor da INPREKKOR o sentido e o significado político para o proletariado mundial do evento revolucionário mais decisivo e mais instrutivo, ocorrido em seu próprio país natal no curso do século XIX – i.e. a Commune de Paris -, que permitiu a Marx e Engels, eles mesmos “corrigirem, atualizarem e superarem”, em 24 de junho de 1872, no Prefácio à nova edição alemã do Manifesto do Partido Comunista, sua concepção revolucionário-proletária acerca do Estado.[44]

 

 

Como é, realmente, possível que esse professor sorbonnard, dirigente do SU-QI e da LCR, candidato à correção das insuficiências e obsolescências do Manifesto Partido Comunista, estreito e fraternal aliado dos franco-gramscianos de Actuel Marx, no que concerne às atividades de corrigir, atualizar e superar o marxismo, no sentido do meta-marxismo, possa ter desprezado, em seu artigo em destaque, a menção à única grande e profunda alteração empreendida por Marx e Engels em sua concepção revolucionário-proletária acerca do Estado, constante em seu Prefácio ao Manifesto Comunista, de 24 de junho de 1872 ?  

Michaël Löwy não afirma pretender, ele mesmo, examinar as insuficiências e obsolescências, contidas no Manifesto do Partido Comunista, após 150 anos de seu aparecimento público ?

Porque, então, não fez qualquer referência ao Prefácio ao Manifesto Comunista, de 24 de junho de 1872 ?

O leitor atento e mais avisado já percebeu, evidentemente, que Löwy dissimula, grotescamente, o fato de que, na Comuna de Paris, Karl Marx entreviu uma experiência histórica de incomparável relevância, a primeira tentativa de revolução proletária voltada à destruição do Estado Burguês, um passo adiante na revolução proletária mundial, um passo muito mais significativo do que uma centena de programas e de formulações teóricas.

Esse professor sorbonnard, Michaël Löwy, preocupado em decifrar o sentido bíblico-profético e eclesiático-messiânico, bem como “as obsolescências, os problemas, as insuficiências e os erros” do Manifesto do Partido Comunista, deixou de dizer, adrede, que Marx e Engels consideraram, eles mesmos, o Manifesto do Partido Comunista envelhecido, não há 50 anos depois de sua vinda ao público, senão há apenas 25 anos transcorridos após seu aparecimento, tendo em conta os novos eventos da Comuna de Paris.    

Envelhecido, sim, no preciso e particular aspecto de que a classe operária não se poderia limitar, tal como afirmam Marx e Engels, a apenas conquistar, ocupar ou apoderar-se, pura e simplesmente, de uma máquina estatal já pronta e colocá-la em movimento para os seus próprios fins : seria indispensável para o proletariado precisamente despedaçar, i.e. no original alemão zerbrechen, tal máquina militar e burocrática do Estado, sendo essa a condição preliminar de toda e qualquer revolução proletária e popular.[45]

 

 

Com argumentos situados no quadrante oportunista do socialismo ecológico, Michaël Löwy demonstra, pelo contrário, ser capaz de deslocar-se não apenas para uma dimensão argumentativa “meta-marxista ou meta-engelsiana”, tal como se diz na linguagem franco-gramsciana de Actuel Marx : ele demonstra que a intelectualidade do SU-QI está apta para sublimar-se espiritualmente - pois, existe, de fato, algo como o “espírito” de uma organização internacional ..., se se quiser parodiar um dos profundos pensamentos críticos e desconstrutivos de Löwy, i.e. para sublimar-se, portanto, um pouco mais acima e mais além da fronteira espiritual do próprio gramscismo, i.e. no sentido do caminho do gramscismo crítico ou do franco-gramscismo, i.e. o gramscismo francês.

Esse pressuposto lógico-epistêmico do socialismo ecológico, defendido por Löwy e pelas direções da LCR e do SU-QI nos dias de hoje, demonstra-se, realmente, como sendo imprescindível, para a mais perfeita compatibilização dos trabalhos teóricos dos dirigentes e intelectuais do SU-QI com aqueles dos meta-marxistas franco-gramscianos de Actuel Marx, pois precisamente na crítica ao industrialismo positivístico do capitalismo, supostamente presente esse último nas obras de Marx e Engels, e alegadamente herdado por Antonio Gramsci, a ideologia ítalo-gramsciana se transforma, mais original e propriamente, em franco-gramsciana.

Acerca desse tema, cumpre apresentar ao leitor, suplementarmente, como o principal dirigente e representante político do Secretariado Unificado da Quarta Internacional (SU-QI) da atualidade, membro do Bureau Político do Partido Operário Socialista, da Bélgica, François Vercammen, concorda com os posicionamentos de Michaël Löwy sobre as insuficiências e obsolescências de Marx e Engels, no que concerne ao socialismo ecológico.

Com efeito, François Vercammen assinala, à maneira descontrutiva de Löwy, em seu mais profundo e extenso trabalho teórico, realizado em colaboração com Alain Tondeur, intitulado Reinventar a Esperança. Um Socialismo da Libertação para o Século XXI :

 

„Os Verdes vêem no marxismo um culto da tecnologia e um produtivismo.

Eles o censuram por não ter desenvolvido uma concepção das relações entre a sociedade e a natureza alternativa àquela do capitalismo.

Em razão da crise ecológica, essa crítica tem um impacto certeiro nos meios progressistas de hoje  ...

É exato o fato de que Marx e Engels eram fascinados pelo fantástico desenvolvimento das forças produtivas sob o capitalismo.

Nelas, eles viam a base material que permite à humanidade sair da miséria e libertar-se do trabalho.

Eles reprovavam as crises periódicas de super-produção, características do capitalismo, por entravar o desenvolvimento das forças produtivas que o socialismo, portanto, permitiria „liberar“.

Podemos censurá-los por essa formulação(p. 33) ...

É evidente que o projeto socialista está incompleto.

Como poderia ser diferente ? As ciências evoluem.

A humanidade evolui e novos problemas lhe são colocados.

Marx e Engels não conheciam a psicanálise nem a mecânica quântica.

Esses avanços do conhecimento devem incitar a enriquecer e a corrigir o projeto socialista, não a o abandonar.

Eles não conheciam também a ecologia, enquanto ciência das interações nos eco-sistemas.

Eles não viveram a crise ecológica mundial, que apareceu há apenas quinze anos atrás. ...

A correção mais importante a ser aportada ao programa socialista é certamente aquela que decorre da crise ecológica(p. 36).

O objetivo do reexame necessário é, assim, bem definido : trata-se de eliminar todo traço de produtivismo e de tecnocratismo nas relações com a natureza(p.37).“[46]

 

 

 

Eis aí como François Vercammen, despertando o leitor para as supostas devidas censuras a serem dirigidas ao pensamento revolucionário de Marx e Engels, bem como sobre a problemática do socialismo ecológico, surgere „completar, enriquecer e corrigir“ aquilo que no marxismo é reprovável : sua alegada fascinação pelo desenvolvimento das forças produtivas sob o capitalismo, ainda que ambos contemplassem nisso a base material que permitiria à humanidade sair da miséria e libertar-se do trabalho, assim também sua crítica às crises periódicas de super-produção, características do capitalismo, por entravar o desenvolvimento das forças produtivas que o socialismo, portanto, permitiria „liberar“.[47]

 

 

François Vercammen preceitua, então, detalhadamente, como a correção, o enriquecimento, a completação, da doutrina revolucionária marxista deve se fundar, nos dias de hoje, em face dos avanços dos conhecimentos que Marx e Engels não conheceram, a saber : a psicanálise terapêutica freudiana, i.e. a teoria de Sigmund Freud, baseada na intepretação dos sonhos e a análise distintiva entre o consciente e o insconsciente, a mecânica quântica, teoria essa baseada, sob o aspecto epistemológico, no princípio da incertitude de Werner Heisenberg, e, por fim, a ecologia.[48]

 

 

O método segundo qual Vercammen pretende formular seu paradoxal ecletismo teórico-místico de vinculação das concepções de Sigmund Freud às de Marx e Engels pode ser apenas considerado como absolutamente estapafúrdio, posto que é sabido e consabido que o próprio guia espiritual da psicanálise terapêutica sempre manifestou-se hostil, reticente, repulsiva e ardilosamente em relação à doutrina do materialismo histórico-dialético, golpeando-a, de maneira solerte, desleal, velhaca e enganadora, em seus fundamentos mais gnosiologicamente essenciais. 

Com efeito, Sigmund Freud, em sua publicação intitulada “Nova Conseqüência das Aulas de Introdução à Psicanálise”, surgida em 1933, teve a oportunidade de formular, clara e expressamente, suas apreciações inteiramente desacertadas e desconchavadas acerca do materialismo histórico-dialético de Marx e Engels, tal como a seguir destaca-se :

 

Na teoria marxista estranhei frases tais quais « o desenvolvimento das formas sociais são um processo histórico-natural » ou « as transformações na estratificação social emergem, variadamente, por meio de um processo dialético».

Não estou seguro, de maneira nenhuma, de que entendo corretamente essas afirmações.

Elas também não soam « materialisticamente », senão antes como uma cristalização daquela obscura filosofia hegeliana, através de cuja escola também Marx percorreu.

Não sei como posso libertar-me de minha opinião leiga, acostumada a atribuir a formação das classes na sociedade às lutas que, desde o início da história, entre as hordas humanas, diferenciadas em elementos menores.

Entendo que as diferenças sociais foram, originariamente, diferenças tribais e raciais.       

A força do marxismo reside, ostensivamente, não sobre sua concepção da história e na predição do futuro, que naquela se funda, mas sim na comprovação aguçada da influência cogente que as relações econômicas dos seres humanos possuem sobre seus comportamentos intelectuais, éticos e artísticos.

Uma série de contextos e dependências foi, assim, descoberta, a qual, até então, havia sido quase inteiramente desconhecida.

Porém, não se pode admitir que os motivos econômicos sejam os únicos que determinam o comportamento dos seres humanos na sociedade.

Já o fato indubitável de que diversas pessoas, raças, povos comportam-se, diversamente, sob denominadas condições econômicas, exclui a dominação isolada dos momentos econômicos.

Não se compreende, absolutamente, como se pode passar ao largo dos fatores psicológicos, em cuja sede trata-se de reações de seres humanos vivos.”[49]

 

 

 

A despeito de tudo isso e apesar disso ..., não obstante tudo isso e mesmo assim, como se tudo isso não bastasse ..., François Vercammen, pretedendo corrigir o industrialismo de Marx e Engels com a teoria da interpretação dos sonhos e o princípio da incertitude, indica, precisamente, com que contribuição em matéria de ciências ecológicas é, efetivamente, possível enriquecer-se o marxismo :

 

„Uma contribuição dos Verdes é de ter popularizado a idéia de que rentabilidade e a produtividade capitalistas são calculadas sobre bases falsas, porque os custos da produção não contabilizam as degradações do meio-ambiente ou o exaurimento dos recursos naturais.

Essa abordagem é fecunda. Estendida a outros domínios, ela permitiria estabelecer, de maneira numérica, a irracionalidade do sistema do ponto de vista da sociedade em seu conjunto.“[50]

 

 

 

Mais uma vez : sintomático e corente com o caminho de onde foi e para onde vai o SU-QI, título do presente capítulo dessa investigação, o fenômeno de que, em todas as linhas de sua obra maior, realizada em colaboração com Alain Tondeur, intitulada Reinventar a Esperança. Um Socialismo da Libertação para o Século XXI, François Vercammen nada dedique uma linha sequer ao fato de que Lenin, em O Estado e a Revolução, escrito em agosto de 1917, fundado nas experiências históricas concretas da luta de classes de emancipação do proletariado em todo mundo, operou uma profunda e relevante alteração no programa socialista lançado por Marx e Engels, não no sentido do alegado industrialismo positivístico contido nas obras desses dois pensadores do proletariado.

Extraordinariamente alucinado com a teoria da interpetração do sonhos de Freud, o princípio da incertitude de Heinsenberg e as contribuições em matéria de ecologia aportada pelo Verdes, François Vercammen distancia a atenção do leitor da circunstância de que, com a deflagração da I Guerra Mundial Imperialista de 1914, Lenin afirmou, peremptoriamente, que a reserva de Marx, contida no 18 Brumário de Luis Napoleão, concernente à necessidade de despedaçamento da máquina militar e burocrática do Estado Burguês apenas no quadro das revoluções proletárias do continente Europeu, também estava, essencialmente, envelhecida.

Na Inglaterra e nos EUA, últimos países representantes da liberdade anglo-saxônica - consagradora da ausência de um militarismo e de uma burocracia administrativa já, pelo contrário, existentes nos Estados Burgueses da Europa Continental na virada do século XX -, haviam emergido as mesmas instituições militaristas e burocráticas características da violenta dominação burguesa dos países do continente europeu.

A partir de então, a condição preliminar de toda e qualquer revolução proletária, inclusive a serem realizadas nesses dois países, passava a ser, igualmente, a ruptura e destruição de suas máquinas estatais burguesas engendradas para reprimir violentamente as classes exploradas e oprimidas.

Tal contexto, colocou, em escala incomparavelmente mais ampla, a atual tarefa de concentração de todas as forças da revolução proletária para a destruição do poder dos Estados Burgueses Imperialistas da atualidade.[51]

 

 

Ora, diante de toda essa verdadeira desconstrução do Manifesto do Partido Comunista e do projeto socialista de Marx e Engels, pelos chefes ideológicos de maior calibre do SU-QI, da LCR Francesa, e do POS Belga, haveriam de resultar evidentes as aspirações político-práticas, pretensamente socialistas-ecológicas, de renovação, atualização, correção e superação do marxismo.

Com efeito, Michaël Löwy teve já a oportunidade de as retirar, da gibeira de seu paletó acadêmico – não, entretanto, naturalmente, como os tantos naturalmentes de Löwy, a partir da experiência histórico-material da luta de classes revolucionária de emancipação do proletariado -, a fim de oferecê-las ao conhecimento de todo público interessado na leitura da Revista INPREKORR :

 

“Marx e Engels levantaram não apenas :

Proletários de todo mundo uni-vos !, na conclusão de seu Manifesto.

Eles tentaram também criar uma expressão concreta e organizada para a solidariedade internacional, inicialmente através da unificação dos revolucionários alemães, franceses e ingleses na Liga dos Comunistas, em 1847 e 1848 e, mais tarde, através de sua contribuição para construção da Associação Internacional dos Trabalhadores (1864). ...

Hoje, os problemas prementes de nosso tempo são internacionais, mais do que no passado e muito mais do que no tempo da redação do “Manifesto”. ... (p. 22)

Está na hora de um novo início. Está na hora de levantar as melhores tradições internacionalistas do passado.

Aqui e ali, revelam-se as sementes de um novo internacionalismo, independente de Estados ou alianças militares.

Sindicalistas radicais, socialistas de esquerda, comunistas desestalinizados, trotskystas não sectários e anarquistas procuram por caminhos para renovar as tradições do internacionalismo proletário.

Novas sensibilidades internacionalistas surgem em movimento sociais com projeção planetária, tal como o feminismo e a ecologia, o movimento anti-racista ou as organizações não-governamentais (ONGs), que lutam pelos direitos humanos ou pela solidariedade com o Terceiro Mundo. ...(p. 23)“[52]

      

 

 

Sintetize-se, portanto, em termos claros, três caracterizações :

 

I.    A direção do SU-QI regride do “caminho simétrico” àquele do Euro-Comunisto  ao caminho da capitulação ao gramiscismo, enquanto doutrina revisionista e parasitária da tradição proletário-revolucionária marxista, essencialmente hostil ao trotskysmo e mais refinadamente adaptada aos preconceitos democrático-burgueses que dominam e oprimem as massas proletárias dos países capitalistas-imperialistas, bem como adicionalmente, aquelas dos principais países situados na periferia do processo de remundialização capitalista-imperialista. Para percorrer esse sentido, a direção do SU-QI empreendeu um “pequeno escorregão” de abandono integral da Ditadura do Proletariado em prol da Democracia Socialista ;

 

II.  A direção do SU-QI desvia-se dos princípios fundamentais relacionados com o fomento da revolução violenta do proletário para a destruição do Estado Burguês, i.e. do pensamento de Marx e Engels, Lenin e Trotsky, para vegetar em torno do socialismo ecológico, do franco-gramscismo, do projeto socialista psicanalítico-quântico-ecológico, ligado à questão da interpretação dos sonhos, do princípio da incertitude e das contribuições do Verdes à problemática ecológica ;

 

 

III. A direção do SU-QI assume a trajetória que vai do caminho da abdicação da herança da IV Internacional e da III Internacional, regressivamente, àquele da refundação de uma suposta I Internacional, na medida em que postula dever o movimento dos trabalhadores re-instituir, aquilo que o SU-QI imagina ser, “uma nova Associação Internacional dos Trabalhadores, tal como Karl Marx a vislumbrava no século passado”, reunindo, porém agora, ecologistas, feministas, gramscianos, socialistas de esquerda, comunistas desestalinizados, anarquistas, trotskystas não sectários, lutadores do movimento anti-racistas, ativistas do movimento sem-terra, bem como organizações não-governamentais (ONGs) que lutam pelos direitos humanos ou pela solidariedade com o Terceiro Mundo.

Convém que o presente trabalho examine, agora, essa terceira caracterização de maneira mais pormenorizada e, sobretudo, aportando provas documentais irrefutáveis.

Analisando-se a atualíssima consigna do SU-QI relativa à defesa de “Uma Europa Social e Democrática dos Cidadãos”, tornar-se-á, meridianamente claro, para o leitor o que propriamente, em sentido semântico-conceitual, pretendem dizer os atuais parlamentares europeus da Ligue Communiste Révolutionnaire (LCR), integrantes do grupo Esquerda Unitária Européia-Esquerda Verde Nórdica(GUE-NGL) atuante no Parlamento da União Européia, nos dias que correm, i.e. nos albores do novo milênio, às vésperas do XV Congresso Mundial do SU-QI, quando discorrem, prolixa e repetidamente, sobre uma ”Revolução Democrática e Social na Europa” e a “refundação de uma nova « Associação Internacional dos Trabalhadores » :

 

“Uma Europa Social e Democrática pode ver a luz do dia sem romper a coerção da atual construção européia, baseada nos critérios de convergência escolhidos para a realização da união monetária ? ... 

Nossa escolha, aquela de uma esquerda “100% à esquerda”, é radicalmente diferente : ela se apóia nos movimentos sociais, na aspiração democrática das populações a controlar a Europa que querem construir. ...

O déficit democrático da Europa é gritante : tais como são concebidas, as instituições européias visam à subtrair-se à pressão democrática e social das populações, para impedir ou retardar, no máximo possível, a transferência, no plano comunitário, dos direitos sociais adquiridos em nível nacional e o impacto das sociedades civis nacionais. As instituições da União Européia não possuem nenhuma legitimidade democrática, operam sem nenhum outro controle senão aquele dos governos, que as nomeiam, de um Banco Central ou dos lobbies das multinacionais. O Parlamento Europeu não possui nenhum poder e as instâncias executivas ou judiciárias não são responsáveis perante nenhum congresso que represente os deputados eleitos pelas populações. Trata-se de uma clara ruptura com a democracia parlamentar tradicional. Uma situação que exige uma revolução democrática européia !

Para que a Europa se torne a expressão dos cidadãos,  é indispensável organizar-se uma soberania democrática européia, derrubar as instituições atuais, conceder novamente às populações o poder de definir uma nova constituição ...

Porém, a palavra deve ser dada aos cidadãos que terão competência para todas as questões.

Entre outras :

·           a redifinição das competências e das condições de eleição de um verdadeiro Parlamento Europeu ;

·           a definição de uma efetiva complementaridade entre os parlamentos nacionais e o assim chamado Parlamento Europeu ; 

·           a adoção de regras que estabeleçam as instâncias representativas da União Européia, o controle dos executivos pelas instâncias legislativas, nacionais e européias ;

·           a criação de órgãos que assegurem a representação das forças sindicais e associativas, dispondo de um direito de veto, em caso de violações  aos direitos sociais fundamentais ;

·           direito à auto-determinação das nações oprimidas (Irlanda, Córsega, País Basco), seu direito à secessão, caso elas o pretendam, do Estado nacional que as oprime e seu direito à aderir novamente à União Européia, se elas o escolherem. Essa revira-volta democrática radical é a única que pode dar corpo à uma Europa dos Cidadãos.

Uma perspectiva que refutam todos os que falam de uma “Europa Democrática”, não preconizando nada além do que pequenas reformas das instituições atuais, incapazes de modificar um sistema concebido para impedir as populações de fazer valer seus direitos. ...

Porém, uma revolução democrática européia poderá deter-se às portas das empresas, das multinacionais, dos mercados financeiros ? ...

A democracia real supõe uma “Cidadania Econômica” na empresa, um poder dos trabalhadores, condição de eficácia indispensável para que os assalariados e as populações retomem o controle de uma máquina econômica que opera contra seus interesses ....

A refundação e a reapropriação de um projeto socialista, auto-gestionário, ecológico, feminista, que gire às costas à ditadura dos mercados tal como na caricatura dos regimes stalinistas,  forjar-se-á através de mobilizações de envergadura, de novas práticas, de novas formas de organização.

Ela se baseará na mais ampla extensão da democracia na sociedade.

A potência dos movimentos democráticos que sacodem, a intervalos regulares, os países europeus, no momento em que são colocadas em questão todas as conquistas, mostra que a exigência de democracia estará  no centro de todo processo de ruptura radical.

Assim, pode-se avançar rumo à uma planificação democrática, apoiando-se sobre as necessidades expressadas pelos assalariados, os funcionários, a população, evitando a estatização burocrática da economia e da sociedade que existiu e fracassou nas economias de comando dos regimes stalinistas.

Em face da construção da Europa capitalista, o movimento operário deve se vincular à refundação de uma nova “Associação Internacional dos Trabalhadores”, tal como a vislumbrava Karl Marx, no século passado.

É nesse combate que reassumirá vida o projeto socialista que é o nosso :

uma Europa unida, democrática e socialista, verdadeiramente capaz de unificar a Europa para a igualdade, a liberdade, a fraternidade, colocando um fim às guerras, ao desemprego e à miséria.”[53]

 

O elenco de provas do presente trabalho estaria necessariamente incompleto se deixasse de destacar o posicionamento do maior dirigente e representante político do Secretariado Unificado da Quarta Internacional (SU-QI) da atualidade, Diretor da Fundação Ernest Mandel, François Vercammen,  professor e coordenador do Groupe Regards Critiques da Universidade de Lausanne, acerca da questão decisiva relacionada com essa „Europa Social e Democrática“, de que falam os parlamentares europeus da Ligue Communiste Révolutionnaire (LCR).

Cite-se, portanto, aqui um extrato do bastante divulgado artigo de Vercammen, intitulado Contra a União Européia e o Euro, Por uma Outra Europa, publicado na contra-capa do órgão oficial, Revista INPREKORR, Correspondência de Imprensa Internacional, do SU-QI, em julho-agosto de 1998 :

 

„A construção da União Européia ocorre atrás das costas dos povos e contra as classes trabalhadoras.

A „Carta dos Direitos Sociais“, proposta pelos sindicatos europeus, porém perseguida apenas semi-cordialmente, não teve nenhum lugar no Tratado de Maastricht.

Consequência : a União Européia debuta com a consigna „O Mercado Acima de Tudo“, sem normas sociais européias.

Esse é o portão de entrada para um desmonte abrangente das conquistas.

A União Européia não tem caráter social e não terá jamais caráter social.

Depois de cem anos, adquire espírito, em toda Europa, uma nova „questão social“, inteiramente moderna. ...

ESTAMOS DIANTE DE UMA MUDANÇA !

Desde o fim do século XIX, o marxismo compreendeu que o Estado Nacional havia se tornado muito estreito para um desenvolvimento harmônico da economia e da sociedade.

Nossa resistência contra a União Européia ocorre em nome de uma outra Europa, não em nome do Estado Nacional.

A União Européia não se opõe à globalização : ela nela toma parte.

Ela não se opõe à „americanização“ de nossa sociedade : ela a favorece.

Apenas uma outra Europa, uma Europa social (no original alemão :

Nur ein anderes Europa, ein soziales), que rompa com o capitalismo, encontrará a força e o impulso, de aniquilar „os velhos fantasmas“ do nosso continente e abrir uma esperança para o futuro.“[54]

 

 

 

Sob a alegação oportunista e falaciosa de ser imprescindível lutar por “uma outra Europa”, François Vercammen declara em seu artigo mencionado que essa Europa deve ser uma “Europa Social”, afirmando a possibilidade dessa mesma “Europa Social” romper com os capitalismos-imperialistas europeu e norte-americano remundializantes.

Apenas a declaração dos parlamentares europeus da Ligue Communiste Révolutionnaire (LCR), integrantes do grupo Esquerda Unitária Européia-Esquerda Verde Nórdica(GUE-NGL) atuante no Parlamento da União Européia, refere-se, afinal, a um combate por “uma Europa unida, democrática e socialista, verdadeiramente capaz de unificar a Europa para a igualdade, a liberdade, a fraternidade, colocando um fim às guerras, ao desemprego e à miséria”, ainda que iniciem-na com a expressão político-emblemática por “Uma Europa Social e Democrática”.

O método de imposição dessa Europa Social ou Europa Unida, Democrática e Socialista seria o do desencadeamento de uma Revolução Democrática Européia, tal como alegam os parlamentares europeus da Ligue Communiste Révolutionnaire (LCR).

Paralelamente, Vercammen prefere não utilizar, em todo seu artigo, Contra a União Européia e o Euro, Por uma Outra Europa, o incômodo e desagradável vocábulo “socialista” ou “socialista dos trabalhadores”, a não ser para afirmar que “desde o seu nascimento, o movimento socialista dos trabalhadores foi internacionalista”.

Da leitura desses textos, produzidos pelos dirigentes e intelectuais do SU-QI, é fácil divisar-se que não estamos tratando, portanto, de uma Europa Socialista-Revolucionária dos Conselhos Democráticos dos Trabalhadores, i.e. da luta em favor de uma Ditadura Revolucionária Proletária na Europa Ocidental e Oriental, que logrará romper com o capitalismo-imperialista.

Trata-se aqui de uma Europa Unida e Democrática, mas efetivamente Social, como bem assinala atinadamente François Vercammen, do que propriamente Socialista, instituída mediante uma revolução socialista violenta dos trabalhadores e das massas européias socialmente oprimidas.

“A outra Europa” pela qual se deve presumidamente lutar é, na concepção do SU-QI, a Europa Social e Democrática, que conseguirá, segundo o máximo representante do SU-QI, François Vercammen, cumprir a tarefa histórica revolucionária dos trabalhadores do continente europeu de romper com o capitalismo-imperialista europeu, em sua fase supra-nacional, “aniquilar „os velhos fantasmas“ do nosso continente e abrir uma esperança para o futuro”.

Se não, examine-se o conteúdo político-concreto dessa “outra Europa”, referida por François Vercammen e pelos parlamentares da Ligue Communiste Révolutionnaire (LCR).    

 

·      A Europa Social e Democrática, em favor da qual luta o SU-QI e suas seções européias, almeja o estabelecimento de “normas sociais européias” e de “um caráter social”, “de competências e condições de eleição de um verdadeiro Parlamento Europeu” ;

 

·      A Europa Social e Democrática, em favor da qual luta o SU-QI, pretende a “definição de uma efetiva complementaridade entre os parlamentos nacionais e o assim chamado Parlamento Europeu”, “a adoção de regras que estabeleçam as instâncias representativas da União Européia, o controle dos executivos pelas instâncias legislativas, nacionais e européias” ;

 

·      Essa Europa Social e Democrática deverá consagrar a Cidadania Econômica na empresa, bem como a „refundação e a reapropriação de um projeto socialista, auto-gestionário, ecológico, feminista“, através da “criação de órgãos que assegurem a representação das forças sindicais e associativas, dispondo de um direito de veto, em caso de violações  aos direitos sociais fundamentais”, bem como „o direito à auto-determinação das nações oprimidas (Irlanda, Córsega, País Basco), seu direito à secessão, caso elas o pretendam, do Estado nacional que as oprime e seu direito à aderir novamente à União Européia, se elas o escolherem”.

 

Além disso, François Vercammen prossegue escrevendo da seguinte forma sobre a Europa Social e Democrática, em seu artigo O Euro Vem Aí – E Agora ?, publicado na Revista INPREKORR, em julho-agosto de 1998, sem tratar minimamente acerca da perspectiva relacionada com a indispensabilidade da revolução socialista violenta dos trabalhadores na Europa para sua emancipação.

Vercammen vegeta em torno de termos plenamente compatíveis com a ideologia político-jurídica democrático-burguesa do capitalismo imperialista remundializante :  

 

„Porém, risco para cá, risco para lá, a União Monetária é uma importante vitória do grande capital.

Ela abre o caminho para um afundamento das condições de vida da maioria da população e para um desmonte histórico da democracia política(p. 19). ...

A União Econômica e Monetária empurra para „fazer-se política“, i.e. para a garantia do adensamento da atual direção dos negócios. 

Porém, em face das dificuldades externas e contradições internas da União Européia, ela não fará funcionar essa „Europa Política“ em sentido democrático.

Pelo contrário : tudo tende a que o Executivo se fortaleça à custa do Legislativo e da Constituição(p. 21).

O movimento social e o movimento dos trabalhadores tem de ter clareza acerca desses dois novos aspectos : uma ofensiva contra o fator trabalho e um aparato de Estado europeu, estando em surgimento, que, de início possui apenas pouca legitimidade. ...

Nós devemos estar alertas e, de tempo em tempo, sacar nossas conclusões para o programa e a tática.

Se essa tendência prosseguir, será novamente colocada a questão acerca dos objetivos políticos das lutas e, ainda mais profundamente, a questão de como as consignas imediatas podem ser ligadas e dirigidas contra as instituições de níveis nacional e europeu.

Quanto mais a construção de um novo poder político europeu se delineia, no quadro da nova etapa da União Econômica e Monetária, tanto mais importante se torna uma orientação „positiva“ para a elaboração de uma alternativa, precisamente em relação à questão social (sobretudo o desemprego) e à questão da democracia. ...(p. 22).“[55]

 

 

 

Sob o argumento enganador de pretender refundar a Associação Internacional dos Trabalhadores, no sentido em que a vislumbrava Karl Marx, no século XIX, não estamos, no presente caso, diante da mais plena renegação por parte do Secretariado Unificado da Quarta Internacional (SU-QI) dos pressupostos do socialismo científico - tais como desenvolvidos ampla e conseqüentemente por Marx e Engels, Lenin e Trotsky -, em favor de uma genérica e pouco definida doutrina primitiva acerca do socialismo, dotada de conteúdo proto ou filo-marxista-engelsiano – como seria razoável cogitar-se, de antemão, na hipótese de, formalmente, dar-se crédito às próprias declarações lançadas ao público por essa organização internacional, nos dias de hoje, ainda, ao menos assertoricamente, de matiz trotskysta.  

Trotskystas do SU-QI, franco-gramscianos meta-marxistas de Actuel Marx, velhos stalinistas reciclados, em sentido democrático-humanístico, e novos althusserianos mao-stalinistas resituados, integrantes do Partido Comunista Francês(PCF), surgem, agora, portanto, sob os auspícios dos Espaces Marx Réseau International. Pour Une Construction Citoyenne du Monde, i.e. os Espaços Marx e os Espaços Marx Rede Internacional. Em favor da Construção de uma Cidadania do Mundo, de braços cerrados, em sua defesa comum, no plano literário-intelectual e doutrinário-ideológico, das redimensionadas e reatualizadas perspectivas políticas de :

 

·           via democrático-pacifista ao socialismo ;

·           ampla e ilimitada democratização da sociedade civil burguesa e do Estado Burguês ;

·           expansão dos direitos e liberdades de cidadania das massas populares ;

·           transformação democrática do Direito e do Estado Burgueses.

 

Essas diretrizes teórico-políticas surjem, assim, no quadro dos Espaces Marx Réseau International. Pour Une Construction Citoyenne du Monde, como meios para atingir-se a assim denominada e tão pranteada e vangloriada Democracia Socialista ou Poder Popular.

Nesse quadro do mais profundo revisionismo do marxismo e adaptação às categorias ideológicas do capitalismo-imperialista, através dos fundamentos lógicos do gramscismo, os principais porta-vozes da Via Democrática e Pacífica ao Socialismo afirmam, presentemente, que essa última não se trata, em verdade, da velha versão bernsteiniana ou kautskyana da Via Reformista ao Socialismo, senão propriamente de uma certa Via Revolucionária Pacífica ao Socialismo, na medida em que tal estratégia democrática de passagem ao socialismo funda-se, essencialmente, também sobre as manifestações das massas proletárias oprimidas contra o Estado Burguês e o despotismo da exploração assegurada pelo sistema econômico capitalista, bem como sobre a conquista da hegemonia por parte das massas exploradas e dominadas das instituições da “sociedade civil” e do “Estado”, no sentido precisamente concebido por Gramsci. 

Tal Via Democrática e Pacífica e pretensamente também Pacífico-Revolucionária ao Socialismo excluiria ou substituiria, entretanto, a Via Violenta da Ditadura do Proletariado, para atingir-se o socialismo, na mesma medida e proporção em que a Democracia Socialista ou o Socialismo Democrático excluiria ou substituiria, pretendidamente, o Socialismo Ditatorial ou a Ditadura Socialista.

A mais perfeita caracterização teórica desse contexto plenamente revisionista e parasitário do marxismo, à maneira gramsciana, referente à possibilidade de uma Passagem Pacífica ao Socialismo é formulada pelo mais destacado expoente de Actuel Marx e um dos mais influentes pensadores franco-gramscianos dos Espaces Marx Réseau International. Pour Une Construction Citoyenne du Monde, Jacques Texier.

Segundo a concepção de Jacques Texier, formulada da maneira mais plena e acabada em sua obra intitulada Revolução e Democracia em Marx e Engels, vinda ao público em 1998, resultaria que :

 

“Acredita-se conhecer o pensamento político de Marx e de Engels, porém dele não se conhece senão certos fragmentos que um certo discípulo célebre isolou e integrou em um sistema (obs. Texier refere-se aqui à Lenin).

É necessário, portanto, retomar tudo do zero ou quase do zero.

O que é bem conhecido não é conhecido.

Daí a idéia de realizar uma investigação minuciosa, segundo diferentes percursos, para retomar a questão central : Marx e Engels subestimaram a democracia política como às vezes se diz ?

Não parece. Teóricos da revolução, eles, de início, foram atraídos pelo problema das relações da revolução e da democracia.

Mas, existe um pensamento político de Marx e Engels e, se existe, quais são suas categorias específicas ?

Revolução violenta e passagem pacífica, conquista da democracia e ditadura do proletariado, revolução permanente e guerra de posição, Estado instrumento de uma classe e relativa autonomia do Estado, revolução pela base e revolução pelo ápice etc.

Os conceitos para pensar a política são numerosos e as articulações, difíceis.

Primeira experiência decisiva : a revolução de 1848, com o pano de fundo do modelo da Revolução Francesa.

Marx e Engels são blanquistas ? Em caso positivo, permaneceram blanquistas?

Com efeito, seu pensamento político conheceu transformações profundas no curso do século.

De 1885 a 1895, Engels introduziu algumas inovações políticas nos quadros teórico-políticos introduzidos pela Comuna ?

Ainda aí, a importância das evoluções, se as tomamos em consideração, coloca em causa a idéia do sistema.

Contrariamente a uma idéia fixa, trata-se de um pensamento atento às instituições e às formas políticas.

Essa riqueza foi transmitida ?

Deploravelmente não.

Um livro célebre de Lenin, o Estado e a Revolução, desempenha seu papel nesse empobrecimento.

Nele está ausente esse pensamento móvel, complexo, constrastado, sensível às mutações históricas, multidimensional.”[56]

 

 

 

Esse trabalho de Texier, perpassado desde seu primeiro ao seu último parágrafo pela ideologia gramsciana e defesa da Via Democrática e Pacífica ao socialismo, possui nada menos do que 395 páginas densas, preenchidas com letras miúdas e diversas referências de rodapé ao pensamento de Marx e Engels sobre a questão do Estado e do caráter da Revolução Socialista do Proletariado.  

Nos anexos dessa mesma obra, Jacques Texier procura demonstrar que Marx e Engels foram protagonistas - e continuaram sempre essencialmente a sê-lo - da possibilidade de uma passagem pacífica ao socialismo.

No intróito do primeiro anexo, intitulado La Possibilité d’un Passage Pacifique au Socialisme. Bibliographie, Texier escreve da seguinte forma, procurando persuadir o leitor mais desavisado acerca do desenvolvimento dos eventos históricos da luta de classes no século XIX :

 

„Em 1847, Marx e Engels aderem a uma organização que se torna a Ligua dos Comunistas.

Creio útil citar aqui um artigo atribuído a K. Schapper, datado do ano de 1847, que demonstra a possibilidade de uma passagem pacífica ao comunismo na Inglaterra já havia sido admitida na organização.

Essa é a referência bibliográfica Nr. 1.

A seguir, forneço duas referências de textos engelsianos escritos na mesma época, que não são, propriamente, textos onde a possibilidade de uma passagem pacífica é afirmada. Porém, no curso do processo revolucionário, a primeira etapa consiste em conquistar a democracia e a transformação socialista parece decorrer, naturalmente, na Inglaterra.

A quarta e a quinta referência são textos de Engels que datam de 1850.

A passagem pacífica ao socialismo na Inglaterra é aí claramente considerada. Porém, esses episódios pacíficos ingleses fazem parte de um conjunto europeu que é revolucionário.

A sexta referência concerne a um escrito de Marx de 1852. Esse é o primeiro no qual a tese é enunciada com uma total clareza.“[57]

 

 

 

Obviamente, Texier não se dedica a colocar em relêvo o aperfeiçoamento da doutrina de Marx e Engels, realizado por eles mesmos, acerca do Estado e da Revolução Socialista do Proletariado, ocorrida em face da experiência da Comuna de Paris.

De resto, o posicionamento de Texier acerca do „discípulo célebre“ de Marx e Engels, que teria, deploravelmente,  empobrecido a riqueza democrática do pensamento desses últimos pensadores, em sua obra O Estado e a Revolução, manifesta, de antemão e ostensivamente, seu repúdio ao pensamento proletário-revolucionário de Lenin.

Com efeito, acerca de Lenin, escreveram, a uma só voz, Jacques Texier e seu mais leal companheiro de armas meta-marxista franco-gramsciano, já mesmo em 1990, i.e nos primeiros anos do colaboracionismo teórico-doutrinário e político-prático do Secretarido Unificado da Quarta Internacional (SU-QI) com os intelectuais de Actuel Marx :

 

„Se nos entregamos ao seu pensamento (i.e. ao pensamento de Marx) sua face democrática (que, apesar de seus sarcasmos contra as „litanias democráticas“, percorre toda a sua obra), descobre-se que ela diz respeito a todos os aspectos da vida social e ameaça tanto as oligarquias do poder estatal como as da riqueza.

Porém, isso não pode nos dispensar de perguntar a nós mesmos sobre a parte do marxismo em seus aspectos negativos do comunismo, sobre o papel desempenhado na orientação dessa experiência histórica e em seu fracasso, em virtude de certas carências das análises de Marx.

Em primeiro lugar, por sua representação do socialismo como uma sociedade pós-mercantil.

Não seria sobre esse ponto que sua doutrina cumpriu o papel mais negativo, combinando-se não com a idéia de um governo democrático da econômia, mas sim tendencialmente com aquele de uma planificação integral e centralizada da vida econômica e social?

É, sem dúvida, em torno desse problema que temos mais de refletir.

No tempo de vida de Lenin, já havia sido instaurado um regime ditatorial que nada tinha de transitório, mas que devia evoluir, sob Stálin, em um sistema de economia gerenciada centralmente e controlada policialmente. ...

Essa questão do mercado estava ligada junto a Marx àquela do fetichismo, da autonomização das relações sociais tornadas poderes estranhos que dominam os homens, ao que ele opunha o domínio pelos indivíduos associados sobre seu próprio movimento social e suas liberdades de desenvolvimento individual e solidário : essa problemática do „comunismo“ está longe de ter perdido seu sentido na época da interdependência universal e dos problemas planetários que a humanidade deve resolver hoje.

Os marxistas que afirmam a necessidade de manter aberto o horizonte do comunismo referem-se a essa riqueza humana, àquela das obras e da comunicação, dos seres e dos meios de vida, que a forma mercantil, tal como Marx a analisou e tal como ela existe, detrói inexoravelmente.   

Não se trata de sonhar com um futuro luminoso, mas de salvar, aqui e agora, o que dá um sentido a existência humana.

Resta saber se a forma planificada não é menos fetichisante. E se o velho projeto pode hoje se realizar de outra forma que não seja uma luta conduzida, semelhantemente, contra os perigos comuns da opressão a uma e outra forma. 

Porém aí, precisamente, podemos pedir ao marxismo para transformar-se e superar-se, despregar sua conceitualidade de modo mais amplo, de tal sorte que englobe todo o espaço da modernidade.“[58] 

 

 

 

Jacques Texier – e com ele seu inseparável companheiro escudeiro meta-marxista franco-gramsciano Jacques Bidet -, situados ambos entre os principais mentores intelectuais da Via Democrática e Pacífica dos dias de hoje, teóricos defensores da „face democrática“ de Marx, decididos opositores da planificação democrático-proletária integral e centralizada da vida econômico-social, por considerarem essa planificação hipoteticamente mais fetichisante do que as próprias relações capitalistas de mercado, arautos ambos da “representação do socialismo” como uma sociedade mercantil, ou seja do Socialismo Mercantil(-Humanizado), i.e. não como uma sociedade pós-mercantil(-deshumanizada) ..., afirmam, um e outro, em verdade, que a Ditadura Revolucionária do Proletariado, incorporadora da mais ampla e historicamente mais avançada Soberania proletária, tal como protagonizada e impulsionada por Lenin, Sverdlov e Trotsky, não surgia, portanto, com um período intermediário necessário e inevitável ou como um estágio transicional imprescindível para a passagem do modo de exploração e dominação do despotismo capitalista à instauração de uma sociedade sem classes, tal como defendido doutrinariamente por Marx e Engels, mas sim como um puro e simples “regime ditatorial que nada tinha de transitório, mas que devia evoluir, sob Stálin, em um sistema de economia gerenciada centralmente e controlada policialmente.“ 

Nesse contexto de nefasta correção, completação, atualização e superação do pensamento de Marx e Engels, empreendida pelos meta-marxistas franco-gramscianos e por todos os demais doutrinadores da Via Democrática e Pacífica, fundados, direta ou indiretamente, difusa ou conseqüentemente, na ideologia gramsciana, surgem,  pretendidamente, os meios democráticos, pacíficos, culturais de luta pelo socialismo com a aptidão de eliminar o emprego dos assim-chamados meios violentos proletários-ditatoriais, supostamente por estarem mais bem adaptados  às novas circustâncias de lugar e de tempo da lutas sociais das classes oprimidas de nosso presente histórico.

A Via Democrática e Pacífica ao Socialismo rejeitaria, pois, a insurreição armada do proletariado, destinada à destruição, despedaçamento, implosão do Estado Burguês, bem como a guerra civil do proletariado contra a burguesia, a deflagração do terror vermelho como forma de implacável repressão da burguesia pelo proletariado, enquanto estratégia de tomada do poder e de edificação da fase transitória rumo à primeira fase do comunismo, i.e. o socialismo.

Sendo assim, os proletários revolucionários não deveriam recorrer à mecanismos de coerção, tal como o Estado Proletário, o exército, a guarda e a milícia vermelhas, para se manter no poder conquistado à força das mãos da classe burguesa.

Pelo contrário, não apenas os proletários senão também as grandes massas oprimidas pelo grande capital, enquanto aliadas dos trabalhadores e camponeses proletários, deveriam lançar mão, antes de tudo, da luta política eleitoral, fundada na efetividade do sufrágio universal, bem como do impulsionamento e defesa das reivindicações de ampla democratização da sociedade civil e do Estado e expansão dos direitos e liberdades de cidadania das massas populares, valendo-se da propaganda ideológica, como forma de consolidar um novo consenso social e a fundação de um quimérico Estado Socialista, enquanto poder alegadamente popular-democrático.

Solidificando a união majoritária do povo oprimido, impulsionando a formação da vontade da maioria dos socialmente oprimidos, exprimida pelo sufrágio universal e pelo governo legal dos partidos políticos majoritários, a Via Democrática e Pacífica ao Socialismo privilegiria, além disso, as mutações socialistas do Direito e da Justiça Burgueses, abdicando dos meios ilegais de organização da violência revolucionária do proletariado.

A transformação democrática do Direito e do Estado Burgueses, no sentido de uma Democracia Socialista - voltada à nacionalização das empresas oligopolistas, à consagração do sufrágio universal e da elegibilidade de todos os mandatos públicos, bem como à mais ampla democracia direta e à valorização da participação direta das massas populares e oprimidas nos negócios públicos, em todos os níveis, -, seria, par excellence, a via possível e factível, racional e razoável, de passagem ao socialismo.

Uma tal passagem ao socialismo não contraditaria, pois, os fundamentos formais, as garantias fundamentais do homem e do cidadão e o princípio da soberania popular, abarcados pelo Direito tal como já existente em nossos dias, apenas privar-lhe-ia de seu conteúdo manifestamente capitalista-explorador e burguês-dominador.   

A dignidade de tais meios legais e legítimos para o atingimento do socialismo, no quadro de tal processo revolucionário pacífico, limitador estrito do uso da violência, seria capaz de assegurar, paralelamente a uma revolução política democrática, igualmente uma profunda reforma intelectual e moral para o exercício do novo poder.   

Sobre a base dessas condições hipotéticas, sendo múltiplas as formas de passagem ao socialismo, esse último poderia ser atingido através de um sendeiro político- ditatorial – resultando em um Socialismo Ditatorial – ou, ainda, por outra via, através de um atravessadouro político-democrático – com o que se promoveria uma Democracia Socialista.

Ao longo dos próximos títulos e capítulos, resultará claro que a ideologia gramsciana surge, presentemente, não apenas como a doutrina de maior relevância para as atuais organizações oportunistas de esquerda do movimento dos trabalhadores da atualidade, por sua capacidade teórico-embasadora das postulações teóricas, nascidas de preconceitos democrático-burgueses, de ampla e ilimitada democratização da sociedade civil burguesa e do Estado Burguês, expansão hiperbólica dos direitos e liberdades de cidadania das massas populares, transformação democrática do Direito e do Estado Burgueses, enquanto componentes políticos da Via Democrática e Pacífica ao socialismo.

Tal ideologia, como adiante se demonstrará, constitui, além disso, nos dias de hoje, liga metálica de fundição das concepções teóricas dos dirigentes e intelectuais do Secretariado Unificado da Quarta Internacional(SU-QI), franco-gramscianos meta-marxistas de Actuel Marx, velhos mao-stalinistas reciclados e novos democrátas-humanistas, integrantes do Partido Comunista Francês(PCF), atuantes todos no âmbito dos Espaces Marx Réseau International. Pour Une Construction Citoyenne du Monde.

 

 

 

EDITORA DA ESCOLA DE AGITADORES E INSTRUTORES

“UNIVERSIDADE COMUNISTA REVOLUCIONÁRIA J. M. SVERDLOV”

PARA A FORMAÇÃO, ORGANIZAÇÃO E DIREÇÃO MARXISTA-REVOLUCIONÁRIA

DO PROLETARIADO E SEUS ALIADOS OPRIMIDOS

MOSCOU – BUENOS AIRES - SÃO PAULO – PARIS

   

 



[1] De início, assinalo que o termo “Euro-Comunismo” parece ter sido utilizado, pela primeira vez, por um jornalista iugoslavo de matiz liberal, chamado Frane Barbieri, ao ter publicado seu artigo “Le Scadenze di Brezhnev”, em 26 de junho de 1975, no “Il Giornale Nuovo” de Indro Montanelli. Nessa ocasião, Barbieri lançou mão do termo “Euro-Comunismo” precisamente para descrever as supostas pretensões de Santiago Carillo, à época Secretário Geral do Partido Comunista Espanhol, de desvincular-se, sempre mais, da política stalinista-brejeneviana de Moscou, como forma de dar sustentação às bases fundacionais da então Comunidade Européia. Nesse sentido, vide BRUSCAGIN, MAURO. Ascesa e Declinio dell’Eurocomunismo. Cause Endogene ed Esogene del Fenomeno, Tesi di Laurea in Scienze Politiche, Università Cattolica di Milano, 1985, pp. 5 e s. Há, entretanto, os que atribuem a paternidade do neologismo “Euro-Comunismo” ao jornalista, igualmente de inclinação liberal, Arrigo Levi, que o estremou conteudisticamente do termo “Neo-Comunismo”. Acerca do tema, vide BETTIZA, ENZO. Il Comunismo Europeo, Milano : Rizzoli, 1978, pp. 7 e s.; BROWN, ARCHIE & SCHOPLIN, GEORGES. La Sfida alla Leadership Sovietica, in: Arrigo Levi. Filo della Torre Paolo, 1979, pp. 169 e s.

[2] Cf. HADDAD, GEORGES, A Propos de la Dictature du Prolétariat. Tribune de Discussion du XXII Congrès, in: L’Humanité, 7 de Janeiro de 1976.

[3] Cf. MARCHAIS, GEORGES, Liberté et Socialisme. Extraits de L’Interview Accordée à Antenne 2, in : L’Humanité, 8 de Janeiro de 1976.

[4] Destaco, desde logo, que jamais se demonstrará excessivo realçar sempre os penetrantes trabalhos de Nahuel Moreno, elaborados em meio à sua luta ideológica acesa, deflagrada seja contra o euro-comunismo, seja contra o mao-althusserianismo, seja contra o mandelismo, seja ainda contra o lambertismo, em defesa do legado da Revolução Proletária de Outubro de 1917 e, em particular, em prol dos princípios ético-organizativos do partido marxista-revolucionário. Nada obstante, cumpre ressaltar que, entre outros aspectos, seria efetivamente incorreto pretender apoiar, sem importantes reparos, seus posicionamentos, quer no domínio da lógica marxista – onde Moreno defende posições teóricas amplamente coniventes com o construtivismo metodológico-radical de Piaget, incompatíveis essencialmente com o socialismo científico de Marx e Engels  -, quer no domínio da atualização do programa de transição – onde Moreno propugna, abertamente, posições idealistas-subjetivistas e democratistas, ao pretender inverter infundadamente relações causais dos acontecimentos históricos, maximamente no período posterior à I Guerra Mundial, afastando-se, assim, ostensivamente do método materialista histórico-dialético, defendidos por Marx e Engels, Lenin, Sverdlov e Trotsky -, quer ainda no domínio ontológico do ser trotskysta nos dias de hoje - onde Moreno, em sua excessiva acentuação da atividade criticista e ânsia de superação do próprio trotskysmo, deixa de destacar que o marxismo, por ser científico, deve ser considerado como um guia para a ação (Anleitung zum Handeln), orientação para o agir, instrução para a prática de organização, mobilização e luta permanente, independente e implacável das mais amplas massas revolucionárias, sob a direção hegemônica do proletariado, em busca da construção de uma humanidade socializada ou ainda de uma sociedade humanizada, o que obsta, nos limites do marxismo revolucionário, qualquer tipo de criticismo “criativo” e supostamente superador, elaborado em desconformidade e dissonância com o rigoroso método do materialismo histórico-dialético. Acerca do tema, vide MORENO, NAHUEL. Lógica Marxista y Ciencias Modernas, México-Colômbia : Xólotl-Pluma, 1981, pp. 54 e 55.; IDEM. Actualización del Programa de Transición, ed. CITO – Centro Internacional del Trotskysmo Ortodoxo, 1980, pp. 7 e s.; IDEM. Ser Trotskysta Hoy(1985), in: Cuadernos de Correo Internacional, 1988, pp. 3 e s.

[5] Acerca do tema,  vide KARIM, DARIOUSH. The Revolutionary Dictatorship of the Proletariat, Bogotá : Partido Socialista de los Trabajadores of Colombia, 1979, pp. 15 e s.

[6] Cf. IDEM. ibidem, pp. retro-referidas.

[7] Cf. IDEM. ibidem, pp. supra-referidas. Acerca das posições defendidas pela direção do SU-QI em face do fenômeno eurocomunista, vide tb. MANDEL, ERNST. Critique de l’Eurocommunisme, Paris : Maspero, 1978, pp. 7 e s. As palavras redigidas por Nahuel Moreno na passagem aqui citada estão revestidas de um extraordinário alcance histórico, sobretudo na medida em que é possível registrar-se, documentalmente, nos dias de hoje, o seguinte raciocínio de François Vercammen, o maior representante do Secretariado Unificado da Quarta Internacional(SU-QI) da atualidade, reproduzindo, cegamente, a veneração superticiosa acerca da democracia, propalada, outrora, por seu vangloriado mestre, Ernst Mandel : “Uma estratégia de transição ao socialismo deve extrair, ao mesmo tempo, as lições da falência da social-democracia e daquela do stalinismo. A ruptura com o Estado Capitalista e sua substituição por um Estado da maioria social continua sendo o ponto de passagem obrigatório de toda estratégia de saída do capitalismo. A humanidade não tem escolha. É necessário desenvolver uma concepção da transição que dê à sociedade civil o máximo de instrumentos para lutar contra a burocracia. Isso postula os direitos democráticos mais amplos : o direito de reunião, o direito de expressão, o direito de se organizar em partidos, em sindicatos e em associações, o direito de fazer greve e de se manifestar etc. O único limite a esses direitos deve ser a interdição de tentar derrubar o novo regime pela força. Em face de tais tentativas ou de uma intervenção militar exterior, medidas de excepção podem ser impostas, para salvar a revolução”.  Cf. TONDEUR, ALAIN & VERCAMMEN, FRANÇOIS. Réinventer l’Espoir. Un Socialisme de la Libération pour le XXème Siècle, Bruxelles : Fondation Léon Lesoil, 1993, pp. 56 e 57.

[8] O Encontro Bilateral de Livorno, de julho de 1975, orquestrado pelo Partido Comunista Italinano(PCI) e pelo Partido Comunista Espanhol (PCE) pode ser considerado como o momento histórico de surgimento formal do Euro-Comunismo. Na Declaração Conjunta, subscrita por esses dois partidos, ao fim desse Encontro consta, expressamente : “ ... os comunistas italianos e espanhóis declaram, solenemente, que, em sua concepção de avanço democrático ao socialismo, na paz e na liberdade, exprime-se não uma postura tática, mas sim uma convicção estratégica que nasce da reflexão sobre o conjunto das experiências do movimento operário e sobre as condições históricas específicas dos países respectivos, no quadro da situação européia-ocidental ... A perspectiva de uma sociedade socialista nasce, hoje, da realidade das coisas e tem como premissa a convicção de que o socialismo pode afirmar-se, nos nossos países, apenas através do desenvolvimento e realização plena da democracia. Isso tem como base a afirmação do valor da liberdade pessoal e coletiva e da sua garantia, dos princípios da laicidade do Estado, de sua articulação democrática, da pluralidade dos partidos em uma dialética livre, da autonomia do sindicato, da liberdade religiosa, da liberdade de expressão, da cultura, da arte e da ciência”. Cf. DICHIARAZIONE CONGIUNTA PCE-PCI(1975), in : Bernardo Valli, Gli Eurocomunisti, Milano : Bompiani, 1977, p. 217.  O segundo Encontro Bilateral de grande relevância política realizou-se, a seguir, em novembro de 1975, com a participação do Partido Comunista Italinano(PCI) e do Partido Comunista Francês (PCF). Na Declaração Conjunta desse segundo Encontro Bilateral, firmaram o PCI e o PCF os seguintes termos : “... o socialismo constituirá uma fase superior da democracia e da liberdade, i.e. a democracia realizada do modo mais completo. Nesse espírito, todas as liberdades, fruto seja das grandes revoluções democrático-burguesas seja das grandes lutas populares desse século, que tiveram à sua frente a classe operária, deverão ser asseguradas e desenvolvidas .... Os comunistas franceses e italianos pronunciam-se pela pluralidade dos partidos políticos, pelo Direito de existência e atividade dos partidos de oposição, pela livre formação e possibilidade do alternar-se democrático das maiorias e das minoriais, pela laicidade e o funcionamento democrático do Estado, pela livre atividade e autonomia dos sindicatos. Eles atribuem uma importância essencial ao desenvolvimento da democracia na empresa, de modo que os trabalhadores possam partecipar na sua gestão com direitos efetivos e dispor de amplos poderes de decisão. .... Uma transformação socialista pressupõe o controle público sobre os principais meios de produção e de troca, a sua progressiva socialização, bem como a realização de uma programação econômica democrática em nível nacional ... “ Cf. DICHIARAZIONE CONGIUNTA PCF-PCI(1975),  in : Bernardo Valli. Gli Eurocomunisti, Milano : Bompiani, 1977, pp. 218 e 219.

[9] Cf. KARIM, DARIOUSH. The Revolutionary Dictatorship of the Proletariat, Bogotá : Partido Socialista de los Trabajadores of Colombia, 1979, pp. supra-indicadas.

[10] Cf. IDEM. ibidem, pp. supra-referidas.

[11] O primeiro e o último Encontro Trilateral dos partidos eurocomunistas mais expressivos, i.e. do PCI, PCE e PCF, teve lugar em 2 de março de 1977, em Madrid. Como acertadamente assinala Mauro Bruscagin, esse Encontro Trilateral ao invés de assinalar o apogeu do Euro-Comunismo, registrou o início de sua fatal decadência. Acerca do tema, vide BRUSCAGIN, MAURO. Ascesa e Declinio dell’Eurocomunismo. Cause Endogene ed Esogene del Fenomeno, Tesi di Laurea in Scienze Politiche, Università Cattolica di Milano, 1985, pp. 5 e 7. Na Declaração Conjunta, firmada ao final desse Encontro, é possível ler o seguinte : “Os três países conhecem atualmente uma crise que é, conjuntamente, econômica, política, social e moral ... A crise do sistema capitalista exige, com ainda mais força, que se desenvolva a democracia e se avance em direção ao socialismo. Os comunistas espanhóis, franceses e italianos pretendem atuar em favor da construção de uma nova sociedade, no pluralismo das forças políticas e sociais e no respeito, na garantia e no desenvolvimento de todas as liberdades individuais e coletivas ... Essa vontade de construir o socialismo na democracia e na liberdade inspira as concepções elaboradas com plena autonomia por cada qual dos três partidos.”  Cf. DICHIARAZIONE CONGIUNTA PCF-PCI-PCE AL VERTICE DI MADRID(1977), in : Sergio Segre, A Chi Fa Paura l’Eurocomunismo ?, Rimini-Firenze : Guaraldi, 1977, pp. 216 e s.

[12] Cumpre assinalar, de passagem, que os partidos comunistas que deram vida ao Euro-Comunismo foram, sem dúvida, o Partido Comunista Italinano(PCI), o Partido Comunista Espanhol (PCE) e o Partido Comunista Francês(PCF). Nada obstante, é importante acrescentar que tal fenômeno afetou, intensamente, também os partidos comunistas britânico, belga, grego e, além disso, o japonês. O impacto do Euro-Comunismo sobre o Partido Comunista Japonês (PCJ) registrado na segunda metade dos anos 70, conduziu Mauro Bruscagin a problematizar, especulativamente, acerca do devido campo de aplicação do termo conceitual relativo ao neologismo Euro-Comunismo, a ponto de parecer sugerir a maior precisão vernacular do termo Neo-Comunismo para a qualificação do fenômeno político em tela. A esse respeito, vide BRUSCAGIN, MAURO. Ascesa e Declinio dell’Eurocomunismo. Cause Endogene ed Esogene del Fenomeno, Tesi di Laurea in Scienze Politiche, Università Cattolica di Milano, 1985, pp. 5 e 7.

[13] Com efeito, segundo Karl Marx : “Entre a sociedade capitalista e a sociedade comunista, existe o período da transformação revolucionária de uma em outra. A ele corresponde também um período político de transição, cujo Estado não pode ser outro senão a Ditadura Revolucionária do Proletariado.” Cf. MARX, KARL. Kritik des Gothaer Programms (Crítica do Programa de Gotha)(1875), in : Marx und Engels Werke (Obras de Marx e Engels), Berlim, 1962, Vol. XXIX, p. 28. Em seu art. 9°, a Constituição de Lenin e Sverdlov, de 1918, estabelece como seu fim essencial a instauração “da Ditadura do Proletariado urbano e rural e dos camponeses pobres, na forma de um poderoso poder soviético de toda a Rússia, com o objetivo de derrotar completamente a burguesia, de aniquilar a exploração do homem pelo homem e de instaurar o socialismo, no qual não existirá nem divisão de classes nem poder estatal”. Acerca do tema, vide ainda STUTCHKA, PIOTR.  Constitutsia Grajdanskoi Voinyi (1918 - A Constituição da Guerra Civil. Tradução em Língua Portuguesa de Emil von München), in: Textos Jurídicos de Formação dos Juristas Socialistas da Classe Trabalhadora. Instituto Luís e Rosa Sunderman : Ed. Jurídica Socialista dos Trabalhadores, São Paulo-Munique-Paris, 2000.

[14] Mais pormenorizadamente acerca da orientação político-nostáligica da Ligue Communiste, seção francesa do SU-QI, fundada em abril de 1969, quando então oscilava ideologicamente entre guevarismo, leninismo apressado e ultra-esquerdismo, impulsionando sobre essa base a campanha presidencial de Alain Krivine, já em maio de 1969, vide sobretudo BENSAÏD, DANIEL & ARTOUS, ANTOINE. Que Faire ?(1903) et la Création de Ligue Communiste(1969), in : Marx ou Crève. Revue de Critique Communiste, Nr. 6, April-Mai 1976, pp. 2 e s. A Ligue Communiste foi, a seguir, dissolvida em 1973, sendo que, em 1974, teve surgimento a Ligue Communiste Révolutionnaire (LCR), atual seção francesa do SU-QI. Também em 1974, a LCR impulsionou a campanha de Alain Krivine à presidência da república.

[15] A presente citação de defesa das qualidades vernaculares da  Democracia Socialista ou do Poder Popular, em prejuízo da Ditadura do Proletariado, formulada aqui pelo já legendário dirigente intectual do SU-QI e da LCR Francesa, professor sorbonnard, Daniel Bensaïd, prossegue traçando considerações inteiramente corroídas pelas influências ideológicas democrático-burguesas acerca da questão do Estado e do Direito, no quadro das revoluções do século XIX e XX. Com efeito, Bensaïd escreve, a seguir, malsinadamente : “Os revolucionários do século XIX estavam à procura da fórmula do poder virtuoso, capaz de conduzir o povo de seu estado de subordinação ao exercício de sua plena soberania : Triumvirato, Despotismo Iluminista, Ditadura da Saúde Pública. A “forma enfim encontrada” colocava o acento sobre a Ditadura majoritária da classe constituída no poder. Depois, os termos da equação evoluíram. Como fazer para que esse poder de excepção não virasse um Estado de exceção e negação durável do Direito. Foi necessário certo tempo para se desfazer de uma ilusão tenaz, comum em muitos sentidos à Revolução Francesa e à Revolução Russa. Os principais artesãos jacobinos da primeira acreditavam que, uma vez derrubada a aristocracia parasitária, o povo, entregue a si mesmo, constituiria um corpo são e homogêneo. O povo, a nação, o Estado, tudo isso era um todo : nenhuma contradição no seio do povo ! A mesma coisa vale para os dirigentes da Revolução Russa : a emancipação do proletariado significaria a fusão tendencial da classe, do Estado e do Partido, tal como o perecimento acelerado do Estado. A tal ponto que Lenin julgava que a história não lhe deixaria tempo para formular um Direito escrito : uma jurisprudência oral faria transitoriamente o trabalho”. Cf. BENSAÏD, DANIEL. “Rentrons Dans La Rue”. Remettre Marx sur ses Pieds (“Reentremos na Rua” Coloquemos Marx de Pé), in : Actuel Marx Confrontation. Fin du Communisme ? Actualité du Marxisme ?, sob a direção de Jaques Bidet e Jacques Texiet, Paris : PUF, 1991,  pp. 213 e 214. O enigma que permitiu a Bensaïd formular uma afirmação tão estapafúrdia e completamente falaciosa sobre a concepção de Lenin acerca do papel do Direito no quadro da Revolução Russa e da edificação do Estado Proletário Soviético permanece sem ter sido desvendado até o presente momento. Naturalmente, Bensaïd não apresenta qualquer referência literária efetiva redigida por Lenin ou mesmo por qualquer um dos mais renomados juristas soviéticos da Revolução Russa acerca do posicionamento que atribui, sibilina e gratuitamente, a Lenin. A produção dos inúmeros decretos revolucionários, promulgados logo após a vitória da Revolução Russa  - e, em particular, o Decreto sobre os Tribunais –, assim como a Constituição de Lenin e Sverdlov – ou a Constituição da Guerra Civil, tal como a denomina Stutchka,  promulgada em 1918, não constituem para Bensaïd qualquer vestígio de prova de que a concepção de Lenin acerca do Direito na Revolução Proletária haveria de ser bem mais complexa do que as bagatelizações teóricas sobre “uma jurisprudência oral faria transitoriamente o trabalho”, tal como Bensaïd lança, despudoradamente, entre os franco-gramscianos de Actuel Marx, em clima de confraria acadêmica. Acerca da temática do Direito e revolução proletário-socialista, vide BARBOZA, ASDRUBAL & MÜNCHEN, EMIL VON. O Poder Judiciário no Estado Burguês e a Perspectiva dos Tribunais da Revolução de Outubro, in : Textos de Formação dos Juristas Socialistas da Classe Trabalhadora. Instituto Luís e Rosa Sunderman : Ed. Jurídica Socialista dos Trabalhadores, São Paulo-Munique-Paris, Abril 2000.

[16] Com efeito, René Bailly, membro do sindicato dos escritores e da Sociedade das Gentes de Letras da França, teve a oportunidade de alertar, magistralmente, para o fenômeno registrado em seu país de, com o tempo e a transformação continuada da língua francesa, devida a fatores diversos e à prova de sua vitalidade, os sentidos das palavras se modificarem sem cessar. Dando-nos um exemplo de como o sentido das palavras podem, profundamente, metamorfosear-se, por força de tais circunstâncias, escreve o lexicólogo em referência : “Nossos escritores contemporâneos contemporâneos não se exprimem, efetivamente, como Fenélon ou Montesquieu, nem mesmo como Chateaubriand. Muitos termos, distanciando-se de sua etimologia no curso dos anos, adquiriram ou perderam sua força, quando não mudaram quase completamente de sentido. Recordemos, a esse propósito, o caso de LIBERTINO que, vindo do latim libertinus, propriamente “escravo libertado”, designou, simplesmente, de início, aquele que fazia uso de sua liberdade. Depois, aplicou-se-o, sob Luís XIV, segundo uma passagem mal interpretada dos Atos dos Apóstolos (VI, 9), onde se trata de uma seita judía com esse nome, àquele que se libertava da autoridade da religião, das crenças, da disciplina, em suma ao livre pensador. Por fim, assumiu, no século XVIII, a acepção que conhecemos hoje de debochado. Isso por um escorregão de sentido ( no original francês : un glissement de sens ) que fez com que, em plena corrupção dos costumes sob a Regência, chamou-se de libertino não mais o livre pensador, mas aquele que dava prova de uma liberdade nos costumes em relação às mulheres, indo até a licenciosidade. Ao lado de uma tal evolução, existe também o caso mais raro, em que uma palavra terminou por ter uma acepção absolutamente contraditória com sua etimologia. ....” Cf. BAILLY, RENE. Dictionnaire des Synonymes de la Langue Française, Paris : Librairie Larousse, 1946, pp. IX e X. À guisa de exemplificação desse sintoma de transformação da semântica francesa, é imperioso assinalar que tal tendência de glissement de sens, registrada por Bailly, processa-se, igualmente, nos mais distintos idiomas da humanidade, nos dias que correm, sobretudo tendo-se em conta que esses últimos possuem como referência ordenadora a mais nobre e celebrizada língua e cultura em que produziram os grandes pensadores do século XVIII, inspiradores do sistema das liberdades políticas e garantias jurídicas burguesas-capitalistas, ideologicamente dominante na atualidade.

[17] Vide MANDEL, ERNST & VERCAMMEN, FRANÇOIS. Oktober 1917 - Staatsreich oder Soziale Revolution? Zur Verteidigung der Oktoberrevolution (Outubro de 1917 – Golpe de Estado ou Revolução Social. Em Defesa da Revolução de Outubro), Karlsruhe: Neuer ISP Verlag, Agosto de 1993, pp. 7 e s.

[18] Cf. TONDEUR, ALAIN & VERCAMMEN, FRANÇOIS. Réinventer l’Espoir. Un Socialisme de la Libération pour le XXème Siècle, Bruxelles : Fondation Léon Lesoil, 1993, p. 58.

[19] Cf. IDEM. ibidem, pp. 59 e 60.

[20] Cf. IDEM. ibidem, pp. 73 e 74.

[21] Cf. IDEM. ibidem, p. 74.

[22]  Acerca do tema, vide ENGELS, FRIEDRICH & KAUTSKY, KARL Juristensozialismus (O Socialismo dos Juristas)(1887), in: Marx und Engels Werke (Obras de Marx e Engels), Vol. XXI, Berlim, 1961, p. 492.; STUTCHKA, PIOTR. Das Problem des Klassenrechts und der Klassenjustiz (1922 - O Problema do Direito de Classe e da Justiça de Classe. Tradução em Língua Portuguesa de Emil von München) in : Textos de Formação dos Juristas Socialistas da Classe Trabalhadora. Instituto Luís e Rosa Sunderman : Ed. Jurídica Socialista dos Trabalhadores, São Paulo-Munique-Paris, 2000.

[23] Vide MARX, KARL. Das Elend der Philosophie (A Miséria da Filosofia)(Dezembro 1846-Abril 1847), in : Marx und Engels Werke (Obras de Marx e Engels), Berlim, 1962, Vol. IV, pp. 63 e s.

[24] Vide MARX, KARL & ENGELS, FRIEDRICH. Manifest der Kommunistischen Partei (Manifesto do Partido Comunista) )(Dezembro de 1847-Janeiro de 1848), in : ibidem, Vol. IV, pp. 473 e s.

[25] Vide LENIN, VLADIMIR I. Gosudarstvo i Revolutsia. Utchenie Marksisma o Gosudarstve i Zadatchi Proletariata v Revoliutsi (Estado e Revolução. A Doutrina do Marxismo sobre o Estado e as Tarefas do Proletariado na Revolução) (1917), Moscou, 1989, especialmente Cap. II.I : O Estado e a Revolução. A Experiência de 1848-1851 -  As Vésperas da Revolução, pp. 23 e s.

[26] Vide MARX, KARL. Der Achtzehnte Brumaire des Louis Bonaparte (O 18 Brumário de Luís Bonaparte) (Dezembro 1851-Março 1852), in : Marx und Engels Werke (Obras de Marx e Engels), Berlim, 1962, Vol. VIII, pp. 196 e s.

[27] Vide LENIN, VLADIMIR. Gosudarstvo i Revolutsia. Utchenie Marksisma o Gosudarstve i Zadatchi Proletariata v Revoliutsi (O Estado e a Revolução. A Doutrina do Marxismo sobre o Estado e as Tarefas do Proletariado na Revolução) (1917), Moscou, 1989, Cap. II.2 : O Estado e a Revolução. A Experiência de 1848-1851 - O Balanço de uma Revolução, pp. 27 e s.

[28] Vide MARX, KARL. Brief an J. Weydemeyer (Carta à J. Weydemeyer)(5 de Março de 1852), in : Marx und Engels Werke (Obras de Marx e Engels), Berlim, 1962, Vol. XXVIII, pp. 507 e 508.

[29] Vide LENIN, VLADIMIR I. Gosudarstvo i Revolutsia. Utchenie Marksisma o Gosudarstve i Zadatchi Proletariata v Revoliutsi (Estado e Revolução. A Doutrina do Marxismo sobre o Estado e as Tarefas do Proletariado na Revolução) (1917), Moscou, 1989, especialmente Cap. II.2 : O Estado e a Revolução. A Experiência de 1848-1851 - O Balanço de uma Revolução, pp. 35 e s.

[30] Vide IDEM. Notiz für D. I. Kurski. (Nota para D. I. Kurski) (20 de Fevereiro de 1922), in : W. I. Lenin Werke, Vol. XXXVI (1900-1923), p. 550. Acerca do mesmo tema, vide ainda IDEM. Brief an D. I. Kurski (Carta à D. I. Kurski) (28 de Fevereiro de 1922), in : ibidem, Vol. XXXIII (De Agosto de 1921 à Março de 1923), pp. 186 e 187.

[31] Vide acerca do tema CONSTITUTION OF THE RUSSIAN SOCIALIST FEDERATED SOVIET REPUBLIC, Adopted by the Fifth All-Russia Congress of Soviets (Adotada pelo V Congresso dos Soviets de Toda Rússia), Moscou, 10 de Julho de 1918, Chapter V, art. 9°. No artigo em destaque, a Constituição em referência estabelece nitidamente : “O problema fundamental da Constituição da República Federal Socialista Soviética Russa envolve, em vista do presente período de transição, o estabelecimento da Ditadura do Proletariado urbano e rural e dos camponeses pobres, na forma de um poderoso poder soviético de toda a Rússia, com o objetivo de derrotar completamente a burguesia, de aniquilar a exploração do homem pelo homem e de instaurar o socialismo, no qual não existirá nem divisão de classes nem poder estatal”.  Vide tb. comentários de STUTCHKA, PIOTR.  Constitutsia Grajdanskoi Voinyi (1918 - A Constituição da Guerra Civil. Tradução em Língua Portuguesa de Emil von München), in: Textos Jurídicos de Formação dos Juristas Socialistas da Classe Trabalhadora. Instituto Luís e Rosa Sunderman : Ed. Jurídica Socialista dos Trabalhadores, São Paulo-Munique-Paris, 2000.

[32] Vide MARX, KARL Kritik des Gothaer Programms (Crítica do Programa de Gotha)(1875), in : ibidem, Vol. XXIX, pp. 28 e s.; LENIN, VLADIMIR I. Gosudarstvo i Revolutsia. Utchenie Marksisma o Gosudarstve i Zadatchi Proletariata v Revoliutsi (O Estado e a Revolução. A Doutrina do Marxismo sobre o Estado e as Tarefas do Proletariado na Revolução) (1917), Moscou, 1989, especialmente Cap. 5.2 : Os Fundamentos Econômicos da Extinção do Estado – Transição do Capitalismo ao Comunismo, pp. 87 e s.

[33] Vide MARX, KARL. ibidem, p. 30. Vide ainda LENIN, VLADIMIR I. ibidem, especialmente Cap. 5.3. : Os Fundamentos Econômicos da Extinção do Estado – A Primeira Fase da Sociedade Comunista. No mesmo sentido, ENGELS, FRIEDRICH. Zur Wohnungsfrage (Acerca da Questão Habitacional)(Junho 1872 – Fevereiro 1873), in: ibidem, Vol. XXVIII, pp. 226 e 227.

[34] Vide MARX, KARL. ibidem, p. 31. Vide ainda LENIN, VLADIMIR I. ibidem, especialmente Cap. 5.4. : Os Fundamentos Econômicos da Extinção do Estado – A Fase Superior da Sociedade Comunista.

[35] Vide MARX, KARL. Der politische Indifferentismus (O Indiferentismo Político)(Dezembro de 1873), in: ibidem, Vol. XVIII, pp. 299 e s.; ENGELS, FRIEDRICH. Von der Autorität (Sobre a Autoridade) (Dezembro de 1873), in : ibidem, Vol. XXXVIII, pp. 305 e s.

[36] Vide ENGELS, FRIEDRICH. Anti-Dühring. Herrn Eugen Dühring‘s Umwälzung der Wissenschaft (Anti-Dühring. A Subversão da Ciência do Sr. Eugênio Dühring) (Setembro 1876 – Junho 1878), in : Marx und Engels Werke (Obras de Marx e Engels), Berlim, 1962, Vol. XX, p. 171.

[37] Cf. SAMARY, CATHERINE. Oktoberrevolution : Wirtschafliche und Soziale Probleme(Revolução de Outubro : Problemas Econômicos e Sociais), in : INPREKORR. Internationale Pressekorrespondenz, Nr. 319, Mai 1998, pp. retro-mencionadas.

[38] Acerca do tema, vide, adicional e mais detalhadamente, KARIM, DARIOUSH. The Revolutionary Dictatorship of the Proletariat, Bogotá : Partido Socialista de los Trabajadores of Colombia, 1979, sobretudo Capítulo 1 : Um Programa de “Liberdade Política Ilimitada para o Xá ou um Programa para sua Destruição sem Piedade ?”, pp. 37 e s.  Além disso, compare-se tb. a polêmica histórica travada por Lenin e Trotsky contra Karl Kautsky acerca da problemática concernente à soberania proletária na revolução socialista, KAUTSKY, KARL. Die Diktatur des Proletariats (A Ditadura do Proletariado)(1918), Berlim, Dietz, 1990, pp. 9 e s.; IDEM. Terrorismus und Kommunismus. Ein Beitrag zur Naturgeschichte der Revolution (Terrorrismo e Comunismo. Uma Contribuição à História Natural da Revolução) (1919), Berlim, Dietz, 1990, pp. 177 e s.; IDEM. Von der Demokratie zur Staatssklaverei. Eine Auseinandersetzung mit Trotzki (Da Democracia à Escravidão Estatal. Uma Polêmica com Trotsky)(1921), Berlim, : Dietz, 1990, pp. 175 e s.; TROTSKY, LÉON. Terrorismus und Kommunismus. Anti-Kautsky, (Terrorismo e Comunismo. Anti-Kautsky)(1920), Berlim : Dietz, 1990, pp. 9 e s.; LENIN, VLADIMIR I.  Die proletarische Revolution und der Renegat Kautsky, (A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky) (Outubro-Novembro de 1918), especialmente Título : Bürgerliche und Proletarische Demokratie (Democracia Burguesa e Proletária), in : W. I. Lenin Werke, Vol. XXVIII (De Julho de 1918 à Março de 1919), Berlim, 1962, pp. 89 e s.

[39] Acerca da influência de Gramsci sobre o Euro-Comunismo, Mauro Bruscagin, baseando seus argumentos nos raciocínios imprecisos de Massimo Salvadori, assinala, entretanto, com pouquíssimo acerto e proveito, desde uma perspectiva social-democrática, sem examinar profundamente todas as implicações da doutrina gramsciana e formular alegações com base nas próprias elaborações de Gramsci : “Segundo os líderes dos partidos eurocomunistas, Gramsci foi o pai espiritual dessa nova estratégia comum. Na realidade, ele teve nisso certamente uma função decisiva, colocando a questão da nacionalização do bolchevismo, porém, depois, criou-se uma tensão entre a herança gramsciana e a nova estratégia dos três partidos, consistente na superação da experiêcia soviética (Salvadori, 1978). Com efeito, Gramsci não chegou ao ponto de abandonar o princípio da ditadura do proletariado, mas sim apenas elaborou-a no conceito de “hegemonia”.  Os eurocomunistas se encontrariam, então, mais próximos dos adversários de Lenin, como Kautsky, o qual afirmava uma linha política destinada a alargar o sistema parlamentar até dar-lhe um conteúdo nítido de participação democrática (Salvadori, 1978). Desse modo, então, o Euro-Comunismo separaria aquilo que no leninismo e no gramscismo estava unido. De resto, alguns admitiram, mesmo no interior do PCI, que o pluralismo orgânico, fundado no conceito de hegemonia, criaria, por vezes, problemas de inconciliabilidade com a verdadeira democracia e Ingrao sugeriu inserir momentos de democracia de base no sistema representativo (Rizzo, 1977). É inegável, porém, que Gramsci forneceu um ensinamento aos três partidos comunistas : o de que o Estado é conquistado ocupando-se a sociedade civil. Essa seria a revolução adaptada ao ocidente, não aquela violenta do modelo bolchevique (Bettiza, 1978).” Cf. BRUSCAGIN, MAURO. Ascesa e Declinio dell’Eurocomunismo. Cause Endogene ed Esogene del Fenomeno, Tesi di Laurea in Scienze Politiche, Università Cattolica di Milano, 1985, pp. 14 e 15. Acerca do tema, vide ainda SALVADORI, MASSIMO. Eurocomunismo e Socialismo Sovietico. Problemi Attuali del PCI e del Movimento Operaio, Torino : Einaudi, 1978, pp. 41 e s.; RIZZO, ALDO.  La Frontiera dell’Eurocomunismo, Bari : Laterza, 1977, pp. 92 e s.; BETTIZA, ENZO. Il Comunismo Europeo, Milano : Rizzoli, 1978, pp. 96 e s. É, realmente, surpreendente como Mauro Bruscagin elabora o fio lógico-condutor dos seus argumentos : Gramsci foi o pai espiritual da nova estratégia comum eurocomunista. Gramsci colocou a questão da nacionalização do bolchevismo. Gramsci não chegou ao ponto de abandonar o princípio da ditadura do proletariado, mas sim apenas elaborou-a  no conceito de “hegemonia”. Os eurocomunistas se encontrariam, então, mais próximos dos adversários de Lenin, como Kautsky e separariam aquilo que no leninismo e no gramscismo estava unido. É inegável, porém, que Gramsci forneceu um ensinamento aos três partidos comunistas : o de que o Estado é conquistado ocupando-se a sociedade civil. Essa seria a revolução adaptada ao ocidente, não aquela violenta do modelo bolchevique.  Esses argumentos Mauro Bruscagin permitem, então, formular-se diversos exercícios escolático-sofísticos de altíssima veracidade e celebérrima coerência histórica. Por exemplo : 1) Gramsci não chegou ao ponto de abandonar o princípio da ditadura do proletariado, mas sim apenas elaborou-a no conceito de “hegemonia”. Logo, Gramsci, logrou, mesmo sem chegar ao ponto de abandonar o princípio da ditadura do proletariado, não formular o ensinamento daquela revolução violenta do modelo bolchevique ; 2) Gramsci não formulou o ensinamento daquela revolução violenta do modelo bolchevique, entretanto os eurocomunistas separaram aquilo que no leninismo e no gramscismo estava unido. Ora, unidos leninismo e gramscismo, Lenin não formulou o ensinamento da revolução violenta do modelo bolchevique. 3) Os eurocomunistas se encontrariam, então, mais próximos dos adversários de Lenin, como Kautsky, os quais afirmavam uma linha política destinada a alargar o sistema parlamentar até dar-lhe um conteúdo nítido de participação democrática. É inegável, porém, que Gramsci forneceu um ensinamento aos três partidos comunistas : o de que o Estado é conquistado ocupando-se a sociedade civil. Essa seria a revolução adaptada ao ocidente, não aquela violenta do modelo bolchevique. E, assim, seria possível enchendo-se rios de tinta, demonstrar-se “aquilo que no leninismo e no gramscismo estava unido.”

[40] Nesse sentido, vide precisamente ENGELS, FRIEDRICH. Anti-Dühring. Herrn Eugen Dühring’s Umwälzung der Wissenschaft (Anti-Dühring. A Subversão da Ciência do Sr. Eugênio Dühring) (Setembro 1876 – Junho 1878), in : Marx und Engels Werke (Obras de Marx e Engels), Berlim, 1962, Vol. XX, p. 171.; MARX, KARL. Brief an L. Kugelmann (Carta à L. Kugelmann) (12 de Abril de 1871), in: ibidem, Vol. XXXIII, p. 205.; LENIN, VLADIMIR I. Gosudarstvo i Revolutsia. Utchenie Marksisma o Gosudarstve i Zadatchi Proletariata v Revoliutsi (O Estado e a Revolução. A Doutrina do Marxismo sobre o Estado e as Tarefas do Proletariado na Revolução) (1917), Moscou, 1989, especialmente Cap. I.4 : A Sociedade de Classes e o Estado - A „Extinção“ do Estado e a Revolução Violenta, pp. 16 e s., tb. Cap. 4.5. : Prefácio de 1891 à “Guerra Civil” de Marx, p. 80.

[41] Cf. KARIM, DARIOUSH. The Revolutionary Dictatorship of the Proletariat, Bogotá : Partido Socialista de los Trabajadores of Colombia, 1979, pp. supra-indicadas.

[42] Cf. IDEM. ibidem, pp. supra-referidas.

[43] Cf. LÖWY, MICHAËL. Das „Manifest“ in Vergangenheit und Gegenwart(O „Manifesto“ no Passado e no Presente), in : INPREKORR. Internationale Pressekorrespondenz, Nr. 319, Mai 1998, pp. supra-referidas.

[44] Vide MARX, KARL & ENGELS, FRIEDRICH. Vorwort zum Manifest der Kommunistischen Partei – Deutsche Ausgabe 1872(Prefácio ao Manifesto do Partido Comunista. Edição Alemã de 1872), in : Marx und Engels Werke (Obras de Marx e Engels), Berlim, 1962, Vol. XVIII, pp. 92 e s.

[45] Vide MARX, KARL. Brief an L. Kugelmann (Carta à L. Kugelmann)(12 de Abril de 1871), in: ibidem, Vol. XXXIII, p. 205. ; IDEM. Der Bürgerkrieg in Frankreich (A Guerra Civil na França)(1871), in : ibidem, Vol. XVII, pp. 336 e s. Com efeito, a experiência da Comuna de Paris concedeu a Marx e Engels a possibilidade de estudarem abrangentemente um novo e grandioso processo revolucionário proletário em curso, conduzindo-os a sintetizarem suas conclusões na obra redigida por Marx em abril e maio de 1871, intitulada a Guerra Civil na França. Nessa sua obra, Marx assinalou que a Comuna de Paris foi a antítese direta do Estado Imperial Francês, a forma positiva de uma República que não apenas havia de eliminar a forma monárquica do domínio da classe burguesa, senão ainda o próprio domínio burguês de classe. A Comuna de Paris substituiu, portanto, a máquina estatal burguesa que havia despedaçado, com uma democracia republicana proletária de índole socialista-revolucionária e internacionalista, com instituições públicas baseadas, portanto, sobre princípios organizativos inteiramente diversos. O Estado Burguês foi transformado em qualquer coisa que já não era propriamente um Estado, i.e. tratava-se de um certo Estado porém do tipo de Comuna, segundo Engels, algo como um Gemeinwesen, estando dotado agora da tarefa de reprimir a resistência permanente de uma ínfima minoria de exploradores burgueses-capitalistas. Acerca do tema, vide MARX, KARL & ENGELS, FRIEDRICH, Die Partei und die Internationale (O Partido e a Internacional) (5 de Maio de 1875), in : ibidem, Vol. XIX, pp. 6 e 7.; LENIN, VLADIMIR I. Gosudarstvo i Revolutsia. Utchenie Marksisma o Gosudarstve i Zadatchi Proletariata v Revoliutsi (O Estado e a Revolução. A Doutrina do Marxismo sobre o Estado e as Tarefas do Proletariado na Revolução) (1917), Moscou, 1989, especialmente Cap. III. 2: O Estado e a Revolução. A Experiência da Comuna de Paris(1871). A Análise de Marx – Com o que Substituir a Máquina Estatal Despedaçada ?, pp. 40 e s. Segundo Marx, o primeiro decreto da Comuna foi a supressão do exército permanente e a sua substituição pelo povo armado, i.e. por uma força geral da maioria do povo – dos operários e camponeses -, e não mais uma força particular colocada a serviço da classe economicamente exploradora. A polícia foi despida de suas atribuições político-burguesas e transformada em um instrumento da Comuna, sendo o mandato de seus membros revogáveis a qualquer tempo. A Comuna foi composta por conselheiros municipais eleitos por sufrágio universal nos diversos departamentos de Paris, sendo seus representantes naturalmente operários, dotados de mandatos revogáveis. O mesmo afirmou Marx ter sido válido para os funcionários de todas os demais ramos da administração pública. Todos os funcionários judiciários foram despidos de sua sediciosa independência, devendo prestar contas à Comuna de suas atividades jurisdicionais. Juizes, procuradores e demais funcionários judiciários passavam agora a dever ser eleitos, estando seus mandatos sujeitos à revogação a qualquer tempo. Nesse quadro de absoluta elegibilidade e revogabilidade a qualquer momento de todos os funcionários communards, sem qualquer exceção, todos os cargos do serviço público haviam de ser prestados na base de salários de operários. Destruindo-se, assim, as duas maiores fontes de despesas estatais burguesas – i.e. as despesas com o funcionalismo estatal e o exército permanente – a Comuna concretizou, efetivamente, as frases publicitárias propagandeadas incansavelmente pela burguesia relativas a um governo barato e à redução dos gastos públicos. Mais do que isso : a Comuna deixou de ser um Parlamento de Estado e assumiu a forma de um órgão efetivamente de trabalho, legislativo e executivo ao mesmo tempo, fortalecendo a unidade nacional e a liberdade municipal local, contra as tendências federalistas. Assim, a Comuna apresentou, concretamente, a via para suprimir os sistemas de governo parlamentaristas e presidencialistas, venais e corruptos, demontrando que não se tratava de destruir as instituições representativas e a elegibilidade, mas de transformá-las em organismos de trabalho efetivo, i.e. em orgarnismos não de debates acerca de ilusões políticas e de engôdos populares, mas sim de trabalho revolucionário proletário, concentrando em suas mãos as atividades efetivas relacionadas com o exercício de funções executivas de administração, controle, registro, supervisão, contabilidade etc. Nesse sentido, vide ainda ENGELS, FRIEDRICH. Kritik des Erfurter Programms (Crítica ao Programa de Erfurt)(1891), in: ibidem, Vol. XXII, pp. 225 e s.; LENIN, VLADIMIR I. Gosudarstvo i Revolutsia. Utchenie Marksisma o Gosudarstve i Zadatchi Proletariata v Revoliutsi (Estado e Revolução. A Doutrina do Marxismo sobre o Estado e as Tarefas do Proletariado na Revolução) (1917), Moscou, 1989, especialmente Cap. III.3 : O Estado e a Revolução. A Experiência da Comuna de Paris(1871). A Análise de Marx – A Supressão do Parlamentarismo, pp. 45 e s. Escrevendo sobre a Comuna de Paris, Marx enfatizou : “O seu verdadeiro segredo foi esse : a Comuna foi um governo da classe operária, o produto da luta da classe dos produtores contra a classe apropriadora, a forma política finalmente descoberta, na qual se podia cumprir com a emancipação econômica do trabalho.” Cf. MARX, KARL. Der Bürgerkrieg in Frankreich (A Guerra Civil na França)(1871), in : ibidem, Vol. XVII, p. 341.

[46] Cf. TONDEUR, ALAIN & VERCAMMEN, FRANÇOIS. Réinventer l’Espoir. Un Socialisme de la Libération pour le XXème Siècle, Bruxelles : Fondation Léon Lesoil, 1993, pp. supra-referidas.

[47] É plenamente contraditória a forma segundo a qual os mais pronunciados dirigentes do SU-QI interpretam, presentemente, a problemática do suposto industrialismo positivístico de Marx e Engels. Acima, são apresentados exemplos meridianamente claros do prisma a partir do qual Michaël Löwy e François Vercammen, contemplando o Manifesto do Partido Comunista e a doutrina do marxismo segundo sua visão perpassada por preconceitos muito difundidos nos mais avançados países capitalistas-imperialistas da atualidade, „censuram“ Marx e Engels por seus „erros e insuficiências“ em compreender o significado e o sentido que o desenvolvimento das forças produtivas sob o capitalismo adquire para permitir à humanidade sair da miséria e libertar-se do trabalho, sob a marca das crises capitalistas periódicas de super-produção que o entravam e exigem que o socialismo venha a „liberar“. Em um outro continente do mundo, aos principais dirigentes e teóricos da seção brasileira do SU-QI, i.e. da Tendência Democracia Socialista (DS), profundamente expostos às atrocidades e necessidades objetivas marcantes dos países situados na periferia do processo de remundialização capitalista, nem se lhes ocorre imputar tal censura de industrialismo ao pensamento Marx e Engels. Com efeito, a Tendência Democracia Socialista (DS) proclamou, recentemente, em suas Teses para uma Atualização do Partido dos Trabalhadores acerca do tema : „O progresso técnico deveria, em si e por si, ser uma benção, que possibilitaria a todos trabalhar menos e alcançar uma produção maior, e, com isso, consumir mais. Porém, a lógica do capitalismo neoliberal transforma essa benção para a maioria da população em uma maldição : uma vez que os princípios políticos neoliberais mantêm essencialmente estável a demanda global e aguçam a „concorrência“, o progresso técnico conduz a que uns tenham de trabalhar mais ( sem receber mais ) e outros a perder seus empregos.“  Cf. TENDENZ SOZIALISTISCHE DEMOCRATIE. These für eine Aktualisierung des Programms der Arbeiterpartei(Tese para uma Atualização do Programa do Partido dos Trabalhadores), in : INPREKORR. Internationale Pressekorrespondenz, Nr. 342, April 2000, p. 9.

[48] Acerca do tema, vide os próprios esclarecimentos de Vercammen e Tondeur, apresentados em IDEM. ibidem, p. 127, com a ambiciosa pretensão de correção, enriquecimento e completação do marxismo. Cumpre anotar, entretanto, que tais pretensões de Vercammen e Tondeur não são, de nenhuma maneira, originais – sobretudo no que concerne à teoria de Sigmund Freud, pois os pensadores ligados umbilicalmente à Escola de Frankfurt, tais como  Herbert Marcuse e Erich Fromm – a despeito de suas disputas teóricas inter-pessoais -, e mesmo Wilhelm Reich devem já ser considerados como os pensadores que procuraram corrigir, enriquecer e completar o marxismo com as concepções freudianas. Talvez Vercammen e Tondeur em suas futuras produções literárias ambicionarão sugerir que a obra de Herbert Marcuse, intitulada Eros e Civilização, pode ser até mesmo tomada como exemplo emblemático a ser observado para as atividades dos ideólogos do SU-QI em suas práticas de correção, enriquecimento e completação do marxismo. Com efeito, Marcuse, desenvolvendo suas análises sobre a base de um ecletismo „marxista-freudiano“, alcançou a conclusão de que a classe trabalhadora, em nosso período histórico, deixou totalmente de ser revolucionária, sendo que ela, por força da lavagem cerebral a que lhe submeteu a dominação capitalista ao longo do século XX, passou não somente a aceitar, senão ainda a necessitar do capitalismo para seguir existindo. Tal fenômeno justificaria que um reduzido agrupamento de iluminados  - segundo Marcuse, do feitio dos bolcheviques sob Lenin e Trotsky, - tomasse o poder a fim de instaurar uma ditadura da minoria não opressiva, em cujo âmbito processar-se-ia o processo de purificação cerebral e educação libertária da classe trabalhadora. De toda sorte, a pretensão de Vercammen e Tondeur relativa à promoção de um ecletismo entre marxismo e freudismo, sem qualquer referência crítica contundente às produções teórico-doutrinárias de maior impacto ideológico já realizadas por Marcuse, Fromm e Reich, aspira a fazer com que o leitor mais desavisado acredite, de fato, que tal ecletismo dar-se-ia em efetivo benefício do marxismo, enquanto teoria revolucionária do proletariado para o atingimento do socialismo. Acerca do tema, vide MARCUSE, HERBERT. Eros and Civilisation. A Philosophical Inquiry into Freud, Boston : Beacon, 1956, pp. 17 e s.; IDEM. An Essay on Liberation, London : Penguin, 1969, pp. 5 e s.; IDEM. Soviet Marxism, A Critical Analysis, London : Routledge & Paul, 1958, pp. 15 e s.; FROMM, ERICH. Analytische Sozialpsychologie und Gesellschaftstheorie (Psicologia Social-Analítica e Teoria Social), Frankfurt a. M. : Suhrkamp, 1970, pp. 7 e s.; IDEM. Das Menschenbild bei Marx (O Conceito de Homem em Marx), Frankfurt a.M. : Europ. Verl.-Anst., 1963, pp. 21 e s.;  IDEM. Über die Methode und Aufgabe einer analytischen Sozial-Psychologie (Sobre o Método e a Missão de uma Psicologia Social Crítica), Berlim : Underground, 1968, pp. 57 e s.; REICH, WILHELM. Dialektischer Materialismus und Psychoanalyse (Materialismo Dialético e Psicanálise), Berlim : Underground, 1968, pp. 11 e s.

[49] Cf. FREUD, SIGMUND. Neue Folge der Vorlesungen zur Einführung in die Psychoanalyse (Nova Conseqüência das Aulas de Introdução à Psicanálise)(1933), in : Sigmund Freud. Gesammelte Werke (Sigmund Freud. Obras Completas), Vol. XXV, Frankfurt a.M. : Fischer, 1996, pp. 7 e s.

[50] Cf. IDEM. ibidem, p. 35.

[51] Acerca do tema, vide, precisamente, LENIN, VLADIMIR I., Gosudarstvo i Revolutsia. Utchenie Marksisma o Gosudarstve i Zadatchi Proletariata v Revoliutsi (O Estado e a Revolução. A Doutrina do Marxismo sobre o Estado e as Tarefas do Proletariado na Revolução) (1917), Moscou, 1989, especialmente Cap. III.1 : O Estado e a Revolução. A Experiência da Comuna de Paris(1871). A Análise de Marx – Em que consiste o Heroísmo da Tentativa dos Communards, pp. 36 e s.

[52] Cf. LÖWY, MICHAËL. Das „Manifest“ in Vergangenheit und Gegenwart(O „Manifesto“ no Passado e no Presente), in : INPREKORR. Internationale Pressekorrespondenz, Nr. 319, Mai 1998, pp. supra-referidas.

[53] Nesse sentido, vide LIGUE COMMUNISTE REVOLUTIONNAIRE, Une Révolution Démocratique et Sociale. Urgence contre le Chômage. Pour une Europe Unie Démocratique et Socialiste, in : Propositions de la LCR pour une autre Europe. Au Parlement Européen. Documents, 1999.

[54] Cf. VERCAMMEN, FRANÇOIS. Gegen EU und Euro – Für Ein Anderes Europa(Contra a União Européia e o Euro – Por Uma Outra Europa), in : INPREKORR. Internationale Pressekorrespondenz, Nr. 321/322, Juli/August 1998, contra-capa.

[55] Cf. IDEM.  Der Euro Kommt – Was Nun ?(O Euro Vem Aí – E Agora ?), in : INPREKORR. Internationale Pressekorrespondenz, Nr. 321/322, Juli/August 1998, pp. supra-referidas.

[56] Cf. TEXIER, JACQUES. Révolution et Démocratie chez Marx et Engels, Paris : Actuel Marx Confrontation – PUF,  1998, contra-capa.

[57] Cf. IDEM. ibidem, p. 367.

[58] Cf. BIDET, JACQUES & TEXIER, JACQUES. Fin du Communisme ? Actualité du Marxisme ?, in : Actuel Marx Confrontation. Colloque International Sorbonne, 17-18-19 Mai 1990, organisé par la Revue Actuel Marx et l’Istituto Italiano per gli Studi Filosofici, sous la direction de Jacques Bidet et Jacques Texier, Paris : PUF, 1991, pp. 6 e 7.