90 ANOS DA REVOLUÇÃO SOCIALISTA PROLETÁRIA RUSSA DE OUTUBRO DE 1917

MORAL E CONSCIÊNCIA, ORGANIZAÇÃO E DIREÇÃO DAS LUTAS REVOLUCIONÁRIAS

DE EMANCIPAÇÃO PROLETÁRIO-SOCIALISTA

TEXTOS DE CÉLEBRES DIRIGENTES BOLCHEVIQUES SOBRE J. M. SVERDLOV

 

Minhas Recordações de

J. M. SVERDLOV

 

EVGENY A. PREOBRAJENSKY[1]

 

Concepção e Organização, Compilação e Tradução Asturig Emil von München

Abril de 2003 emilvonmuenchen@web.de

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Nessas recordações, reproduzirei apenas uma ínfima parte daquilo que poderia contar de J. M. Sverdlov, em particular sobre o período clandestino de sua atividade.

Porém, a fim de tornar minhas recordações mais plenas, seria necessário equipar-me de uma série de documentos partidários oficiais relativos ao período respectivo da história de nosso Partido, ler, inteiramente, todas as recordações de outros participantes do trabalho partidário e, com a ajuda desses métodos auxiliares, reconstruir, na memória, através de associação, muito daquilo que não vem à mente de uma pessoa apenas por esforço de vontade.

Lamentavelmente, não disponho, presentemente, de tempo para realizar um semelhante trabalho circunstanciado, apesar de não perder a esperança de vir a executá-lo, em algum dia do futuro próximo.       

Pela primeira vez, encontrei-me com J. M. Sverdlov, de maneira fugaz, em Moscou, em dezembro de 1905, no momento em que se dirigia para o Congresso da Unificação do Partido, sem que lá pudesse vir a chegar[2].

 

J. M. Sverdlov foi interceptado pela greve dos ferroviários, em Moscou. 

Naquela ocasião, interviu, no Jardim do Aquário, em incontáveis assembléias de trabalhadores moscovitas, sobressaindo-se por seus grandiosos recursos vocálicos.

Desse encontro em Moscou, subsistiu em minha memória apenas uma imagem extremamente vaga de Jakob Mikhailovitch Sverdlov.

Da modo mais acabado, vim a conhecê-lo apenas por ocasião do trabalho nos Urais, a cuja região cheguei no início de janeiro de 1906.

Avistei-me, primeiramente, com Sverdlov em um ponto de  encontro do Partido, na cidade de Perm, onde me informou, sucintamente, acerca do trabalho que deveria ser por mim impulsionado em meio àquela confusão, posterior ao Desmantelamento de Dezembro da organização partidária de Perm.

De modo extremamente nítido, recordo-me da reunião do Comitê de Perm do Partido, na qual havia de ser adotada uma resolução sobre a concretização da unificação de nossas organizações dos Urais.

Nessa reunião, Jakob Mikhailovitch deu um informe, tratando da reconstrução do centro regional dos Urais.

Lembro-me muito bem de que, na reunião, encontravam-se presentes - além de Jakob Mikhailovitch e inúmeros trabalhadores de Perm também Kladvia Timofeievna Novgorodtseva Sverdlova, Liza Kin e outros quadros da organização de Perm.

Quando se conclui a apreciação do informe, Jakob Mikhailovitch pediu-me, baixinho, que propusesse minha própria resolução, acrescentando :

 

“ – Você é mesmo um especialista em elaboração de resoluções.

Proponha o que resulta ser necessário.”        

 

Embora não me considerasse um especialista em resoluções, esboçei, então, um projeto que foi, por sua vez, acolhido pelos participantes da reunião.

Nesses dias, já se formava em mim uma concepção sobre Jakob Mikhailovitch, a qual pouco se modificou no âmbito dos subseqüentes encontros que tive com ele.

Mais do que tudo, saltava-me aos olhos a confiança tranqüila desse colossal organizador que se sentia, já então, em todas as questões organizativas mais complicadas, dotado de familiarizada força natural.

Entre as dificuldades crescentes - em particular relacionadas com a combinação de pessoas e a adoção de medidas organizativas, necessárias à reconstrução das organizações desmanteladas -, Sverdlov tomava, de modo extraordinariamente rápido, quase com a velocidade da luz, a medida indispensável e implementava-a, após uma pequena argumentação, tal como se nada fosse por si mesmo mais racional e exclusivamente mais adequado.  

Jakob Mikhailovitch não atuava, então, permanentemente, em Perm, porque tinha de percorrer, em viagens, toda a região dos Urais.

Depois de distribuir as pessoas da organização de Perm pelos lugares correspondentes e uma vez executadas todas as instruções necessárias, Sverdlov apressava-se a partir rumo a uma outra cidade da região, com vistas a lá realizar precisamente o mesmo indispensável trabalho organizativo.

Em grande medida, graças ao colossal talento de organização de Sverdlov e à sua incansável energia, a organização dos Urais foi reconstruída, após o seu esmagamento, em fins de 1905 e início de 1906, sendo capaz de enviar uma representação bolchevique ao assim denominado Congresso da Unificação.

Jakob Mikhailovitch atribuía grande significado à unificação de nossas organizações uralianas e à criação de um sólido centro dirigente regional.

Isso resultava ser imprescindível devido ao distanciamento dos Urais dos centros partidários dirigentes da Rússia e do exterior e, também, por causa das particularidades marcantes da economia e do modo de vida dessa região.  

Em sentido histórico, foi inteiramente comprovado o acerto dessa linha de unificação partidária nos Urais.

Após certas oscilações registradas na questão relativa à adequação da existência das regiões – e, em particular, a dos Urais –, foi essa última, ainda antes mesmo do que as outras, firmemente, particularizada em unidade econômica definida e, mais uma vez, reconstruiu-se a unificação partidária uraliana.

Os pressupostos de nosso trabalho nessa região eram sempre muito originais, em particular no campo das atividades de propaganda, o que, de todo modo, tornava-se ainda mais visível no seguinte exemplo :

Um certo agitador, tendo chegado aos Urais a partir de Moscou ou de Petersburgo (essa questão teve lugar ainda ao tempo do czarismo), interviu, em uma reunião, de modo muito acalorado e expansivo, a favor da imperiosidade de os trabalhadores conquistarem a jornada de trabalho de oito horas.

Sua propaganda encontrou vivaz acolhimento junto aos presentes, dentre os quais intervieram alguns trabalhadores, logo após o orador, dizendo, porém, o seguinte :

 

“- O companheiro orador discursou de modo inteiramente correto, no sentido de que é necessária a jornada de trabalho de oito horas.

Porém, já trabalhamos, presentemente, seis horas.

E, entretanto, com uma jornada de seis horas, é possível trabalhar o bastante ?”

 

Em decorrência da superpopulação nas fábricas, quando nelas se iniciava o trabalho, dividia-se-o costumeiramente entre todos os adultos trabalhadores.

Por consegüinte, obtinha-se uma semana de trabalho incompleta, com uma jornada de trabalho incompleta e uma remuneração também incompleta.

Jakob Mikhailovitch atraiu, parcialmente, para os Urais, diversas novas e valorosas forças, a maioria das quais velava, precisamente, pela formação de quadros dirigentes, surgidos do meio dos militantes locais.

Em parte, graças a isso – e a despeito do colossal desmantelamento da organização dos Urais – esses quadros demonstraram-se sumamente sólidos, no período de crises, bem como de total desbaratamento e desaparecimento da organização, em outras localidades.

Em decorrência da atuação do agente secreto Votinov, trabalhador da fábrica de Motovilikh, e de outros agentes da Okhrana (i.e. a Polícia Secreta Czarista), teve lugar, em março de 1906, um grande desmantelamento das organizações reconstruídas de Perm e Motovilikh.

As prisões prosseguiram e, nos meses de abril e maio, foram capturados todos os elementos mais ativos das nossas fileiras.

Porém, apesar de dois terços dos nossos ativos já se encontrarem detidos no Presídio de Perm, estávamos confiantes de que o trabalho no Volga prosseguiria.

Uma garantia disso era não apenas a circunstância de que os setores mais de base continuavam a produzir, muito rapidamente, em conjunto com os prisioneiros, novos quadros militantes, senão também o fato de que “Andrei” ou “Mikhalitch” - os dois nomes de guerra mais conhecidos de Jakob Mikhailovitch, nos Urais-, por permanecer ainda militando no Volga, prosseguia realizando, incansavelmente, seu trabalho de construção, em condições de espionagens e perseguições policiais ininterruptas.

Sem embargo, os dias de liberdade de Jakob Mikhailovitch já se estavam contados.

Em um belo dia, os agentes secretos o cercaram, expondo-o àquela perseguição que conduzia, por todos os seus índicios, ao estado de “sob prisão”.          

Em casos assim, os agentes de espionagem já nem atentavam para a necessidade de terem de disfarçar sua profissão e, descaradamente, passaram, em número de cinco, para o momento mais adequado da atalaia, a fim de agarrar o homem.

Sua tarefa consistia em não concederem ao perseguido a chance de jogar fora ou engolir os documentos, os endereços e os outros papéis que junto a ele pudessem ser encontrados.

Nada obstante, pelo tanto que me recordo, Jakob Mikhailovitch conseguiu fazer desaparecer os endereços cifrados que se encontravam em seu poder e, quando os espiões agarram-no com todas as suas mãos, já se encontrava “limpo”, i.e. - tal como, de vez em quando, dizíamos - já se encontrava na clandestinidade.    

 

Encarceraram, de início, o “Mikhalitch” em um camburão e enviaram-no à Okhrana, sendo que, depois disso, transferiram-no para o Presídio de Perm.

Há que considerar que Jakob Mikhailovitch teve sorte por terem-no trancafiado em Perm e não no território da fábrica de Motovilikh.

É indispensável assinalar que, à época, as pessoas presas no território da cidade de Perm encontravam-se em uma situação privilegiada em comparação com os companheiros aprisionados na área da fábrica Motovilikh, precisamente porque os presos desse última localidade eram habitualmente expostos, então, às mais bestiais violações e torturas, procurando-se deles extrair declarações comprometedoras, antes mesmo de iniciado o inquérito judiciário.

Jakob Mikhailovitch foi preso no verão de 1906.

Parece-me que no mês de junho.

No presente momento, não me recordo precisamente da data.

Porém, recordo maravilhosamente bem o momento em que todos nós – dado que bem o conhecíamos – escutamos, repentinamente, no interior da prisão, sua conhecidíssima voz todo-poderosa.

Conseguimos, logo, susurrar-lhe algumas palavras, ao longo do trajeto rumo à área de passeio do pátio da prisão, onde, de uma única vez, colocavam ao ar livre quase todos os detidos das celas dos políticos.

Uma conversação mais circunstanciada teve início, propriamente dito, apenas no pátio da prisão.

Jakob Mikhailovitch contou-nos sobre a situação do trabalho partidário na cidade de Perm e em outros centros dos Urais, assim como discorreu sobre as circunstâncias de sua prisão.

Entre nós, o ânimo encontrava-se, então, muito elevado e firme : não duvidávamos, nem um pouco, da vitória da revolução e não pretendíamos permanecer detidos especialmente por muito tempo, por detrás dos muros do cárcere.

Recordo-me de que – se não no primeiro, então no segundo passeio, realizado no pátio da prisão -, Jakob Mikhailovitch começou a medir a extensão da parede do estabelecimento prisional e, tendo saltado sobre ombros elevados do nosso companheiro que levava o nome de guerra Potap (um trabalhador de Tula, com nome de família Ivanov), calculou quanto ainda era necessário levantá-lo para o alto, de modo que, a partir de sua cabeça, pudesse saltar por cima da parede.

No Presídio de Perm, os dias, que para todos eram enfadonhos, transcorriam para Sverdlov intensamente, dividindo-se em conformidade com as partes a seguir indicadas :

 

·        Em primeiro lugar, comunicação com o Volga e prosseguimento do trabalho do Partido, dinamizado a partir de detrás dos muros da prisão.

 

Na prisão, analisávamos a situação do Partido, as questões táticas do movimento, elaborávamos e enviávamos resoluções para o Volga, as quais haviam de ser adotadas pela organização.

Jakob Mikhailovitch dava suas instruções organizativas através do correio carcerário o qual, então, no quadro da relativa liberdade do regime, percorria diversos caminhos de ida e volta.

Recordo-me de que, com base em um de seus pedidos, redigi uma certa proclamação para a organização de Perm, se não me equivoco, relacionada com as eleições da Duma.

 

·        A segunda parte do nosso trabalho consistia em introduzir, no interior da prisão, obras propagandísticas, destinadas à leitura dos presos mais jovens e dos companheiros despreparados, principalmente trabalhadores de Motovilikh e das fábricas dos Urais, mais próximas de Perm.

 

Na prisão, existiam alguns círculos, organizados principalmente por Jakob Mikhailovitch, nos quais nós, propagandistas, conduzíamos um trabalho sistemático.

Além disso, nesses círculos, informes acerca de diversos temas eram lidos e discussões, realizadas.

Lembro-me, em particular, de que, entre o número daqueles que realizavam informes encontrava-se, então, o companheiro Egor (cujo nome de guerra partidário era Kanatchikov).

Jakob Mikhailovitch imputava grande significado a esse trabalho intra-carcerário e velava, minuciosamente, para que aplicássemos, em sentido teórico, o golpe de misericórdia nos mencheviques, mesmo por detrás das paredes do cárcere.

E, entre nós, era costume existirem, então, mencheviques, uma vez que possuíam sua própria organização não apenas em Perm, senão ainda em uma série de fábricas, apesar de sua organização ser, nessa localidade, efetivamente muito débil.

Arrancávamos trabalhadores de suas organizações e deles fazíamos bolcheviques.

 

·        O terceiro ponto da nossa atividade era constituído pela preparação das fugas.

 

A despeito de não existirem contra Jakob Mikhailovitch provas particularmente sérias, ele mesmo pressentia que os policiais não o colocariam, brevemente, em liberdade.

Porém, quão intensamente crepitavam e ferviam naquele tempo as forças operárias, ao se envolverem nas lutas do Volga !

Quanto se ansiava por sair, o mais rapidamente possível, da prisão, a fim de dar continuidade ao trabalho interrompido!

Por essa razão, já logo após o encarceramento de Jakob Mikhailovitch – e com base em sua própria insistência - foi-nos enviado a partir do Volga, a partir de Motovilikh, umas serrinhas finas de aço, a fim de que impulsionássemos o trabalho de serrar as grades carcerárias.

Dessa atividade, tomou parte especialmente dinâmica Ivan Tchugurin, cujo nome de guerra partidário nos Urais era “Piotr” ou “Pietrukha”.

A fuga era ainda estimulada pela circunstância de que, de fato, a partir daquele mesmo corredor em que nos encontrávamos presos, haviam fugido, exitosamente, no início do outono, tanto o companheiro Yakubov - o qual estava sujeito à pena de morte, em virtude de resistência armada contra policiais – quanto alguns outros companheiros que conseguiram convencer o carcereiro a fugir juntamente com eles.

Jakob Mikhailovitch pretendia imitar, pela segunda vez, precisamente esse mesmo procedimento de fuga, i.e.  serrar as grades do segundo andar, esgueirar-se, à noite, escada abaixo, até o sentinela - com o qual haver-se-ia de entrar em acordo, através da organização do Volga -, e fugir juntamente com ele.

Concomitantemente, Jakob Mikhailovitch preparou também um outro procedimento de fuga : durante seus passeios no pátio, os companheiros que não pretendessem fugir deveriam “entusiasmar-se” com jogos de correr, animando-os em tal medida que, assim, fosse possível escalar a parede da prisão e, ainda durante o passeio de pátio, fugir através do jardim de legumes, passando pelo sentinela, o qual nesse preciso momento, haveria de ser um membro de nossa organização militar, a fim de que abrisse fogo, fervorosamente, porém sem qualquer êxito, contra o fugitivo. 

 

·              Em quarto lugar, ocupávamo-nos, ardorosamente, com leituras.

 

Na prisão, era-nos fornecida a literatura de que muito necessitávamos e todos nós não perdíamos tempo : enguliamos as brochuras com avidez, começando com as coisas mais fundamentais, tal como “O Capital”.

Não me recordo de quem foi a proposta com base na qual adotamos, nas celas, aquela assim denominada “Constituição”, sob cuja égide tornou-se proibido conversar, vaguear e, sobretudo, perturbar o silêncio.

Nessa época, todos andavam ocupados.

As conversações, os passeios ociosos, as brincadeiras e os jogos foram regulamentados, fixando-se-lhes tempo determinado.      

Jakob Mikhailovitch também lia - tal como todos os outros -, porém seu pensamento - muito mais do que o de todos os demais – afastava-se sempre para o trabalho partidário do Volga.

Nos momentos dos passeios pelo pátio da prisão, levávamos adiante a parte subseqüente do nosso dia de cárcere : com energia, jogávamos bola com raquetes, i.e. lapta, praticávamos jogos de pirâmide e, em particular, treinávamos dar empurrões nas corridas, cujo significado para as fugas já tive ocasião de esclarecer.

Além disso, tanto nos passeios como nas celas - particularmente depois da revista noturna, quando a tal “Constituição” ainda não estava em vigor - ocupávamos com o solfejar canções.

Freqüentemente, parentes ou amigos próximos dos encarcerados, vinham até ao cemitério, situado em frente da prisão.

Nós os saudávamos entoando canções revolucionárias.

Todos sabem que a voz de Jakob Mikhailovitch era como uma verdadeira trombeta.

Porém, para canções, sua voz era pouco adequada.

O mais importante de tudo era o fato de que não possuía bom ouvido musical.

Seja lá como for, por não se embaraçar nem um pouco com esse aspecto da questão, dedicava-se ao coro das canções e quando, depois de diversas tentativas, começava a desafinar, passando a cantar cada vez mais baixinho, dizia, com satisfação, sorrindo, de certo modo :

 

“- Em breve, já vou começar a participar das canções, com voz mais resoluta.”

 

Utilizávamos a voz de Jakob Mikhailovitch em casos em que resultava necessário transmitir alguma coisa a uma distância bem longíngua.

Sua voz era imprescindível tanto para os gritos, a serem dados em direção ao cemitério, quanto para - em casos precisamente mais freqüentes – as conversações, mantidas com o pátio feminino, onde encontravam-se presas nossas companheiras.

Com essas, correspondíamo-nos, mediante correio carcerário, e conversávamos através da janela mais externa do corredor, que dava saída para o pátio em que estavam.

Se as companheiras do pátio das mulheres não conseguiam ouvir, gritavam, freqüentemente :

 

“- Coloquem um pouco o Mikhalitch para falar.”     

 

Depois da escassez de alimentos, havida durante o verão de 1906, eu e uns outros companheiros, envolvidos no mesmo caso de Jakob Mikhailovitch (i.e. “o caso 46 da organização de Perm”, tal como o denominávamos), conseguimos ir a tribunal e permanecer apenas sujeitos à vigilância policial, dado que não eram decisivas as provas existentes contra mim e os outros que sairam da prisão.

Juntamente comigo, foi solto, no mesmo dia, com tranqüilidade, Bin (Lobod), bem como ainda alguns outros companheiros.

Com base nas determinações que me haviam sido dadas a partir da prisão, comecei a dinamizar conexões, visando às fugas.

Mais precisamente : cumpria-me preparar o segundo procedimento de fuga acima esboçado, partindo do pátio da prisão.

Era necessário encontrar dois sentinelas da guarnição de Perm que concordassem em abrir fogo para o ar, no momento da fuga, a ser realizada através das paredes carcerárias.

A questão da fuga fervilhava, porque, além de Jakob Mikhailovitch, também precisavam fugir Tchugurin e Savinov, por estarem esses últimos sujeitos a processo judiciário em Nijn Novgorod, por causa da Insurreição Armada de Sormovo.   

No bosque, a três quilômetros da cidade, mantive contato com dois soldados, enviados pelo nosso quadro, responsável pela organização militar.

Convenci-me, porém, de que esses soldados não eram adequados para a questão em tela.

Um deles exigiu, inesperadamente, que lhe fosse repassada, ainda mesmo antes da operação, uma soma bastante elevada, em dinheiro, alegando como justificativa que, talvez, acabaria sendo necessário que ficasse preso por dois ou três anos, no Batalhão Disciplinar, em virtude de disparos realizados sem êxito em direção ao alvo.

Porém, a questão não versava apenas sobre dinheiro : aquele tipo me desagradara extremamente e suspeitei da possibilidade de ele, uma vez tendo recebido o dinheiro, começar a disparar não para o alto, mas sim contra os nossos companheiros.

Depois de aconselhar-me com outros companheiros da organização, rechaçamos essa composição de sentinelas.

Desgraçadamente, não existiam outros mais adequados.

O plano corria o risco de fracassar.

No Volga, permaneci, porém, não por muito tempo : no total, por um mês.

Justamente antes de minha nova prisão, vim a participar também, como seria de se esperar, do trabalho da organização de Perm e, em particular, empreendi o redirecionamento das organizações uralianas, visando à convocação da II Conferência dos Urais[3].  

 

Meses depois, em decorrência das provocações de Fom (Lebedev), fui preso na estação ferroviária de Kazan, quando me dirigia para Petersburgo, com vistas a comprar armamentos browning, a serem utilizados pelos companheiros militares do nosso Partido da cidade de Perm.[4]

 

De Kazan, levaram-me, novamente, para o Presídio de Perm.

Pelo que me recordo, Jakob Mikhailovitch já não se encontrava, então, preso em celas coletivas, mas sim na assim denominada “torre, i.e. em uma cela solitária.

Cabe observar que o encarcerado em cela solitária não se encontrava, ainda, sentenciado, sendo que para lá eram enviados, com poucas exceções, todos os companheiros, em regime rotativo, com o objetivo de serem poupados (eram desejados mais lugares em celas solitárias do que os disponíveis), não se enervando com os demais e tendo a possibilidade de ocuparem-se, em um lugar tranqüilo, até mesmo com uma leitura séria.

Logo a seguir, durante o outono de 1906, a parte esmagadora dos encarcerados foi tranferida, devido à terrível superlotação do Presídio de Perm, para a renomada Companhia de Nikolaiev, situada perto de Verkhna Tura.

Também “Mikhalitch” foi mandado, desta ou daquela vez, junto com este ou aquele grupo de prisioneiros, para a Companhia de Nikolaiev, tendo lá sido alojado em um prédio de celas solitárias de um único andar.

As celas solitárias eram escuras e dotadas cada qual de uma janelinha estreita que dava para o pátio da prisão. Precisamente pouco depois de sua chegada, “Mikhalitch” começou, novamente, a elaborar um projeto de fuga.

Com base nos contos carcerários, já sabíamos de todas as fugas que, em geral, haviam sido realizadas a partir da Companhia de Nikolaiev e, em particular, a partir das celas solitárias, onde nos encontrávamos presos.

Da última fuga dessas celas solitárias, como bem se sabia, tomara parte Mikhail Vilonov, um dos mais notáveis bolcheviques operários de nosso Partido.

Ulteriormente, Vilonov participou da Escola de Capri, promovida por Gorki e, posteriormente, perambulou, rumando em direção a Lenin, que se encontrava em Paris.

Vilonov acabou morrendo de tuberculose pulmonar, durante o Período da Reação.

Sua fuga da Companhia de Nikolaiev fora, porém, realizada através de um túnel que ía da cela solitária até a rua.

Meditávamos, agora, exatamente também sobre esse mesmo procedimento e, além disso, elaborávamos um plano de serrar as grades, sair, durante a noite, para o pátio e fugir, passando por cima das paredes da prisão.

Na Companhia de Nikolaiev, levávamos, aproximadamente, aquele mesmo modelo de vida do Presídio de Perm, dele diferenciando-se apenas o fato de que não havia, nas proximidades da nova prisão, nenhuma grande cidade e nenhuma grande organização, com o que nossa comunicação com o Volga tornara-se mais dificultosa.

Jakob Mikhailovitch era o porta-voz do corredor prisional em que nos encontrávamos e ocupava-se com o nosso aprovisionamento material.

Todas as noites, aproximava-se da “ventanilha” (i.e. uma pequena abertura nas portas das celas) de todas as celas solitárias e perguntava a cada um o que era necessário que pedisse em seu nome, para a preparação da alimentação do dia seguinte.

Jakob Mikhailovitch convencia todos a pedirem algo a mais, a despeito do fato de que, em vista da escassez de meios, nossa comuna pedisse, principalmente, batata cozida, acompanhada de repoulho picado e fermentado.

Ali, os dias de prisão transcorriam, principalmente, com leituras e diversos debates políticos e teóricos.

Tal como presentemente me recordo, em nossas celas solitárias, iniciavam-se, depois da revista noturna, discussões das quais participavam, habitualmente, prisoneiros de celas solitárias, entre os quais, além dos bolcheviques, encontravam-se também os socialistas-revolucionários (SRs.).

Por via de regra, todos os prisioneiros das celas solitárias aproximavam-se da “ventanilha”, nela encostavam o ouvido e escutavam o orador que intervinha.

Muito mais do que todos, Jakob Mikhailovitch pertubava sempre o silêncio, dado que não conseguia falar baixo.

Sempre acabava enervando o carcereiro de plantão que, temendo uma ronda da administração do presídio, repreendia-nos pela desordem.

Os socialistas-revolucionários (SRs.) que se encontravam presos conosco eram muito débeis em questões teóricas, de modo que derrotá-los nas discussões não representava para nós nenhuma dificuldade.

Da mesmíssima forma, jogavam xadrez.

Cada jogador possuía junto a si um tabuleiro, dotado de imagens amoldadas com o pão negro da prisão ou com o assim denominado – segundo o termo criado pelos trabalhadores de Motovilikh “niekalimki” (i.e. ferrinhos), feitos de um tipo especial de aço.

Dos prisioneiros das celas solitárias de então, recordo-me de A. N. Sokolov e de Vierbov.

Durante o passeio no pátio, todos os prisioneiros das celas solitárias permaneciam sempre juntos.

Quando não nevava ou não fazia frio, jogávamos, preferencialmente, bola com raquetes, i.e. lapta.

Durante o inverno, o nosso jogo preferido era, porém, o assim chamado “korovk” (i.e. o escaravelho).

A particularidade desse jogo consistia em que um participante procurava atirar um tronquinho de madeira ou de gelo qualquer nas pernas dos demais e, quando conseguia acertar, golpeava-se o atingido, pelas costas, a partir de dois lados e, freqüentemente, derrubava-se-o, na neve profunda.

A despeito de sua fragilidade física, “Mikhalitch”  demonstrava possuir uma disposição grandiosa para esse jogo, sendo que, muito raramente, vinha a levar golpes e, pelo contrário, de modo extraordinariamente freqüente, golpeava os outros companheiros inábeis.

A grande massa de prisioneiros políticos não se encontrava encarcerada em celas solitárias, mas sim em celas coletivas da Companhia de Nikolaiev.

O regime carcerário piorava, a cada dia que passava.

Sem existir qualquer motivo sério, dois dos nossos prisioneiros das celas coletivas, por terem, certa vez, sido negligentes no cárcere, foram expostos a espancamentos.

Os organizadores dessa ação e também dos espancamentos subseqüentes eram os conhecidos carrascos dos presídios dos Urais, Kalatchev, assassinado em Perm, e o velho supervisor I. Ustiunin, o qual foi processado e julgado até mesmo junto a um Tribunal Czarista por terríveis espancamentos que orquestrara em cárceres políticos.

Um desses martírios se encerrou com a morte de um dos nossos companheiros.

Vivenciei apenas o início desse período, quando, em resposta ao primeiro ataque contra nossos companheiros, fomos forçados a declararmo-nos em Greve Geral de Fome.

Essa Greve de Fome durou, precisamente, uma semana, i.e. de um domingo ao outro, e prejudicou, terrivelmente, todos os encarcerados, entre eles também Jakob Mikhailovitch.

A Greve de Fome foi concluída por força de um compromisso qualquer, firmado com a administração do presídio.

Nesse tempo, já não me encontrava preso em cela solitária, mas sim em cela coletiva.

Durante a Greve de Fome - por volta, por exemplo, do terceiro ou do quarto dia – soaram vozes, favoráveis ao seu encerramento.

Porém, a maioria decidiu solidamente, então, continuar com a Greve de Fome.

Jakob Mikhailovitch teve a mais ativa participação na agitação a favor da continuidade da Greve de Fome, apesar de sua saúde quebradiça.

Atava em si mesmo, geralmente, uma toalha colorida e, a maior parte do tempo, permanecia deitado na cama, fumando uma quantidade enorme de tabaco.

Como resultado da permanência em celas escuras, da alimentação e do ar insuficientes, sua saúde começou a fraquejar.

Em Sverdlov, encontravam-se registrados todos os sintomas de tuberculose.

Sua face perdia, intensamente, o brilho e adquiria uma tonalidade escurecida.

Em vez disso, em sentido moral, Jakob Mikhailovitch permanecia inteiramente inabalado, tornava-se enrijecido – tal como se dizia -, e divisava o futuro, com sólida esperança.

Recordou, nessa ocasião, que, em seu caso, a tuberculose havia-se iniciado à época de seu primeiro encarceramento, no Presídio de Nijn Novgorod, quando, em virtude de um de seus protestos, os supervisores carcerários tranferiram-no para uma cela húmida e, ali, espancaram-no, muito fortemente, no ventre e no peito.

Na Companhia de Nikolaiev, seu processo de tuberculose havia-se novamente agravado.

Todos nós temíamos muito pelo seu próprio destino.

É interessante observar que, até mesmo na prisão, Jakob Mikhailovitch colocava-se, de algum modo, automaticamente e permanentemente, à cabeça de tudo aquilo relacionado com o trabalho organizativo.

Apesar de ser apenas o porta-voz do setor de celas solitárias, dirigia, na prática, todas as nossas organizações carcerárias, de tal sorte que o porta-voz geral das celas, que tinha o nome de guerra Potapytch (Pletnev) aconselhava-se, constantemente, com Jakob Mikhailovitch em todas as questões fundamentais de nossa vida carcerária.

Em abril de 1907, nosso processo judiciário relativo à organização de Perm foi repassado ao Tribunal de Apelação de Kazan.

Em particular, o meu processo foi trancado pelo Procurador do Estado por insuficiência de provas.

Fui colocado em liberdade, precisamente às vésperas da Páscoa.       

Os companheiros do Volga empreenderam a tentativa de interpor perante esse Tribunal uma apelação em favor da liberdade de Jakob Mikhailovitch, a ser decretada mediante fiança.

Porém seus esforços não foram coroados de êxitos.

Os policiais e o Procurador do Estado sabiam que, embora não existissem efetivamente, do ponto de vista jurídico, provas sérias contra Jakob Mikhailovitch, ele incorporava o espírito de toda a organização dos Urais – e não unicamente da organização de Perm –, de tal maneira que era imprescindível condená-lo por qualquer coisa que fosse, apoiando-se, entretanto, tão somente sobre uma das informações isoladas, prestadas pelos agentes de polícia.

Assim, Jakob Mikhailovitch, juntamente com outros companheiros dedicados à nossa causa, foram julgados em uma Secção Regional do Tribunal de Apelação de Kazan, sendo condenados a dois (2) anos de prisão em fortaleza.

Jakob Mikhailovitch cumpriu esses dois anos de fortaleza no Presídio de Ekaterinburgo.

Desse período de sua vida, em que Jakob Mikhailovitch ocupou-se, avidamente, com o trabalho teórico, e, em particular, com o estudo circunstanciado de todos os volumes de “O Capital”, sei muito pouca coisa, porque, nessa época, estive trabalhando no Volga e no Sul dos Urais, ou encarcerado, em outros presídios uralianos. 

Aqueles que estiveram presos, então, em Ekaterinburgo deverão elucidar esse período da vida de Jakob Mikhailovitch.

Por ocasião de sua saída do presídio, tal como se sabe, Jakob Mikhailovitch deu continuidade, com ainda mais energia do que antes, ao trabalho do Partido, independentemente de todas as conseqüências que a prisão produziu para sua saúde, sendo que, logo a seguir, desembocou em seu exílio, na região de Turukhansk.

Durante esse período, não vim a com ele encontrar-me, porém mantivemos correspondência.

Tratava-se de um tempo difícil na vida do nosso Partido.

Todos os elementos hesitantes, todos os cansados, todos os que haviam perdido a crença na revolução, abandonavam as fileiras partidárias.

Muitos dos que, no período de 1905 a 1907, encontraram-se nas primeiras linhas do movimento, já não representavam, então, tema algum, no Período da Reação que havia surgido.

Uns abandonavam o trabalho, inteira e definitivamente, outros vivenciavam oscilações liquidacionistas.

Entre os companheiros mais estreitos de outrora, costumavam ocorrer, nessa nova fase, encontros dolorosos e conversações muito angustiantes.

Freqüentemente, pessoas com que havíamos simpatizado antes demonstravam-se agora fora de todo e qualquer movimento.

Todos os bolcheviques da mais velha guarda, que jamais vieram a abandonar o Partido, bem se recordam desse período amargurante de nossa história partidária.

Por esse tempo, escrevi uma carta a Jakob Mikhailovitch, contendo uma declaração de minha própria profissão de fé, e dele indaguei acerca das perspectivas.

Muito rapidamente, recebi uma resposta de Sverdlov na qual manifestava a sua mais profunda alegria em virtude do fato de que possuíamos idêntica convicção e, a seguir, externou o desejo de encontrarmo-nos, mais uma vez, no trabalho partidário.

Tive a chance de avistar-me, então, transitoriamente com Jakob Mikhailovitch no Presídio de Trasladação de Tomsk.

Encontrava-me sendo transferido, por etapa, através de um “despacho” de Tomsk para Ekaterinburg, a fim de ser julgado em meu mais novo processo, mas fiquei sabendo pelas pessoas da prisão que, fazia alguns dias, Jakob Mikhailovitch localizava-se naquele mesmo “despacho”.  

 

Meu encontro subseqüente com Jakob Mikhailovitch Sverdlov ocorreu já em 1917, no momento em que partiu dos Urais para Petersburgo, vindo a tornar-se o braço direito de Vladimir Ilitch Lenin, em todos os acontecimentos daquele tempo.

Fui, então, a Petersburgo para o I Congresso dos Sovietes e dirigi-me a Sverdlov, quando ele reuniu, no Smolny, a fração bolchevique em seu conjunto, visando à intervenção que havia de ser realizada no Congresso dos Sovietes.

Era necessário que me relacionasse, freqüentemente, com ele, a fim de receber instruções sobre a questão de como conduzir-me neste ou naquele tema do Congresso.

Quando o próprio Lenin não se encontrava presente, Sverdlov repassava-as ao Bureau da nossa fração ou transmitia uma certa resolução de Lenin, que necessitava ser fundamentada, ou ainda – se a matéria aparentava constituir questão secundária – conferia breves instruções sobre como nos comportarmos.

Sverdlov encontrava-se inteiramente absorvido por aquele trabalho organizativo colossal que sobre ele recaía, relacionado tanto com a organização de Petersburgo quanto com a organização de toda a Rússia de nosso Partido.

Jakob Mikhailovitch não possuía nem um único minuto de descanso.

Nesse período candente, não se sabia, pois, quando Sverdlov conseguia comer e dormir.

Recordo-me de algumas conversações dessa época, travadas entre Vladimir Ilitch Lenin e Jakob Mikhailovitch Sverdlov, no Smolny.

Quando Vladimir Ilitch esboçava uma medida indispensável a ser adotada, Jakob Mikhailovitch respondia, então, sem exceção, que as medidas necessárias já haviam sido tomadas ou esclarecia a razão pela qual as medidas adotadas não puderam obter êxito.

Quase sempre se revelava que o próprio Jakob Mikhailovitch já havia precisamente pensado aquilo que Vladimir Ilitch pretendia propor.

Entre Jakob Mikhailovitch e Vladimir Ilitch existia uma estupenda cooperação harmônica no trabalho.

Em tudo aquilo que parecia constituir questões teóricas ou político-gerais, Sverdlov confiava, absolutamente e incondicionalmente, no companheiro Lenin e, praticamente, não meditava acerca do que esse último havia proposto.

Aplicava suas instruções, suas ordens, suas propostas tal como algo absolutamente verdadeiro, em cuja análise não valia a pena desperdiçar tempo.

Inversamente, nas questões organizativas, o próprio Sverdlov era um admirável especialista e, nesse domínio, Lenin – ele mesmo um grandioso organizador – confiava em Sverdlov como em ninguém e, tal como todos sabemos, nisso não se encontrava equivocado.

Recordo-me também daquele maravilhoso tato e daquela arte estupenda que Sverdlov demonstrava possuir nas tratativas com os socialistas-revolucionários (SRs.) de esquerda e em todas aquelas assembléias que, então, haviam de ser conduzidas, versando sobre o que havia de ser, independemente da resistência, da histeria, dos gritos e da fraseologia daqueles partidos.

De modo visível, concordava, freqüentemente, no marco de uma grande concessão, precisamente com aquilo que, em essência, dava execução à linha que havia sido esboçada por Lenin.

Entretanto, em 1918, a relação entre os militantes dos Urais e Sverdlov veio a piorar em algo, em decorrência do fato de que a esmagadora maioria das organizações dos Urais expressaram-se, naquele então, contra a Paz de Brest.

Sem embargo, esse esfriamento temporário foi superado muito rapidamente, tão logo essa mesma questão foi liquidada.

Independentemente da seriedade das preocupantes divergências havidas nessa questão, Sverdlov jamais as levantou posteriormente, em face dos companheiros que se haviam equivocado, precisamente no momento em que se tratava de os distribuir no trabalho e os aproveitar, em conformidade com suas respectivas capacidades efetivas.

Além disso, recordo-me de Sverdlov durante o período mais dificultoso da existência da República Soviética, quando, nos Urais, caiu Ekaterinburgo e os Guardas Brancos tomaram Yaroslavl.  

Em um conversação mantida comigo, Jakob Mikhailovitch mostrou-me, certa feita, um mapa da Rússia Soviética e afirmou :

 

“ – Estão-nos cercando por todos os lados.

Estão apertando o laço.

A situação aproxima-se das nossas últimas reservas.”   

 

Porém, em sua voz, que soava em tom metálico, não existia nenhuma sombra de hesitação, nenhum vestígio de desorientação.

Sverdlov sabia, firmemente, o que era necessário fazer e esforçava-se para que tudo aquilo que cumpria realizar fosse conduzido até o fim.

No momento da Insurreição dos Socialistas-Revolucionários (SRs.) de Esquerda, ocorrida na cidade de Moscou, Sverdlov executou um imenso trabalho, visando à organização de nossas forças.

Pelo que me recordo, foi ele quem dirigiu, nomeadamente, aquela operação espetacular do Congresso dos Sovietes que empreendemos contra os socialistas-revolucionários (SRs.) de esquerda : todos eles foram subtilmente presos no salão da assembléia e todas as forças bolcheviques do congresso, lançadas ofensivamente nos bairros, visando ao esmagamento da insurreição.

 

Entre os traços mais característicos de Jakob Mikhailovitch Sverdlov, devo assinalar os seguintes :

 

·        Em primeiro lugar, Jakob Mikhailovitch conseguia aproximar-se maravilhosamente das pessoas e, muito rapidamente, era capaz de definir aquilo que podiam realizar em favor de nossa causa.

Ademais disso, conseguia acercar-se, extraordinariamente bem, dos trabalhadores dotados de consciência mais atrasada e conquistar, muito rapidamente, sua confiança.

 

Para nós, revolucionários profissionais daqueles dias - em grande parte, pessoas da intelectualidade - tornava-se freqüentemente indispensável viver em bairros operários ou lá permanecer, sistematicamente, durante os pernoites.

Importa afirmar que não conhecíamos a vida operária de então, senão apenas quando resultava imprescindível abordá-la, para o êxito de nosso trabalho de propaganda e agitação.

Precisamente, a vida quotidiana e familiar de nossos companheiros trabalhadores interessava-nos imensamente pouco.

Se é que assim podemos nos expressar, diria que voltávamos, psicologicamente, nossos olhares para um outra direção.

Porém, Jakob Mikhailovitch lograva, pelo contrário, ingressar em todas as particulares quotidianas e familiares da vida dos trabalhadores com os quais necessitava encontrar-se intimamente, em particular, por exemplo, nos momentos dos pernoites.

Recordo-me de que pernoitava freqüentemente junto a um trabalhador de Perm, cuja esposa não se comportava de modo a muito aplaudir a orientação subversiva do marido.

Durante o pernoite na casa desse trabalhador, “Mikhalitch” aproximou-a lentamente de si mesmo, por balançar o berço de seu filhinho, ingressando assim, com sentimento, em todas as suas questões e preocupações familiares.

Dois ou três dias depois de conhecer um novo trabalhador qualquer do Partido, “Mikhalitch” já o tratava por “tu”, logo estabelecendo com ele uma relação de camaradagem e conquistando sua mais inteira confiança.

 

·        Outro traço muito importante de Jakob Mikhailovitch era, por um lado, sua capacidade de captar nas pessoas as características que lhes eram mais próprias e, por outro, não perder de vista todos os detalhes particulares e concretos de seus caracteres.

 

Dizendo-se genericamente, existem dois modos de conceber as pessoas :

 

a.      um primeiro modo, tendo-se em conta as situações em que as pessoas encontram-se subsumidas, sob categorias definidas, sob tipos definidos e, então, figurando-as, em nossa representação, na qualidade de sujeitos abstratamente simplificados, artificialmente padronizados ;

b.      um outro modo, considerando-se os momentos em que são captadas, de um só golpe, em todas as suas especificidades, para algum observador.

 

Essa capacidade de captação adquire enorme significado para alguém que intervém como organizador e necessita, em primeira linha, ordenar pessoas, corretamente, em diferentes funções.

Jakob Mikhailovitch possuía em grau colossal a capacidade intuitiva de compreensão dos companheiros com os quais se inter-relacionava em seu trabalho.

Sua memória notável e seu conhecimento da composição pessoal do Partido operava de modo quase proverbial.

Em sua memória Jakob Mikhailovitch mantinha a imagem das pessoas tal como se demonstravam na realidade, não se esquecendo dos mais ínfimos detalhes.

Isso lhe facilitava, em grandiosa dimensão, a execução de seu trabalho extraordinariamente difícil de organização e distribuição das forças partidárias.

Após a morte de Jakob Mikhailovitch, já ouvi, por diversas vezes - e, provavelmente, não apenas eu - reclamações de companheiros do Partido no sentido de que os aproveitam incorretamente, não se os reconhecendo como haviam de sê-lo.

Quão freqüentemente não me aconteceu de ouvir frases, no estilo dessa apresentada a seguir :

 

“Ah ! Se Jakob Mikhailovitch estivesse vivo, eu estaria sendo melhor aproveitado !”    

 

·        As particularidades adicionais de Jakob Mikhailovitch relacionavam-se, no mais extremo grau, com sua abstenção tática de intervir nos domínios de trabalho em que não se considerava especialista.

 

Um desses domínios era, por exemplo, a esfera da teoria.

Por toda a sua vida, Jakob Mikhailovitch combateu, por uma única vez, no setor teórico, tendo escrito, no exílio, uma pequena brochura acerca do capitalismo.

Jamais veio a se dedicar novamente a esse domínio de trabalho e, discretamente, passou a aprofundar-se naquela atividade em que se revelava, efetivamente, como um grandioso talento e era, faticamente, insubstituível.

 

·        Por fim, vale recordar ainda a notável capacidade de Jakob Mikhailovitch de introduzir, fluentemente, nas assembléias, conferências, congressos etc. as resoluções necessárias.

 

Jakob Mikhailovitch sempre sabia, com firmeza, o que era necessário fazer, quando se tratava de executar um de seus próprios planos ou – o que era amplamente mais freqüente – implementar uma instrução recebida de Vladimir Ilitch.

Todos sabem quão rapidamente as questões eram encaminhadas, em todas as assembléias presididas por Jakob Mikhailovitch.

Reiteradamente, companheiros que não se encontravam de acordo com uma ou outra de suas propostas nem sequer haviam ainda conseguido abrir a boca para falar, quando já resultava adotada uma decisão sobre o tema.

Jakob Mikhailovitch lograva realizar tudo isso não por meio de violação do Direito de cada um se expressar, defender sua respectiva proposta etc.

Pelo contrário : todas as garantias constitucionais eram observadas, a despeito de ser a proposta em causa acolhida tal qual postulada pelo Comitê Central para adoção.

Recordo-me do fato de que, por diversas vezes, vi-me obrigado a intervir como adversário de Jakob Mikhailovitch nestas ou naquelas decisões práticas ou, ainda, opôr-me aos seus métodos acelerados de decisão.

Nesses casos, eu levava em consideração a resistência da matéria humana, ao passo que Jakob Mikhailovitch tinha em mente a agilidade, a pressão e o axioma “tempo é dinheiro”.

Nada obstante, não me recordo de situação alguma em que tive de queixar-me da violação de meus Direitos formais e lamuriar-me de meu próprio embaraço em intervir.

A partir da morte de Jakob Mikhailovitch até o presente momento, nosso Partido tem crescido, fortemente, em todos sentidos, tendo o seu trabalho se complicado, de maneira descomunal.

A tarefa de selecionamento das pessoas - acerca da qual escreveu Lenin em seus notáveis artigos sobre o Rabkrin (i.e. o Comissariado do Povo para a Inspeção dos Trabalhadores e Camponeses visando ao combate da enfermidade burocrática do Estado Proletário) – adquiriu grandioso significado para a vitória de nossa causa.

Quão freqüentemente é necessário que nos lastimemos agora, quando, no atual período, não contamos mais entre nós com Sverdlov.

Através de seu trabalho no domínio da construção organizativa e no campo da distribuição das pessoas, Sverdlov atenuaria, indubitavelmente, os métodos mecanicistas de classificação e de repartição.

Esses últimos métodos jamais poderão substituir o colossal conhecimento pessoal da composição do Partido, a imparcialidade e o grandioso talento organizativo, unificados sempre na disposição de todos ouvir e todos compreender.

Essas qualidades, Sverdlov levou-as consigo para o sepúlcro, sem que nos tenha apenas passageiramente abandonado, nosso eminente organizador.

    

EDITORA DA ESCOLA DE AGITADORES E INSTRUTORES

“UNIVERSIDADE COMUNISTA REVOLUCIONÁRIA J. M. SVERDLOV”

PARA A FORMAÇÃO, ORGANIZAÇÃO E DIREÇÃO MARXISTA-REVOLUCIONÁRIA

DO PROLETARIADO E SEUS ALIADOS OPRIMIDOS

MOSCOU - SÃO PAULO - MUNIQUE – PARIS



[1] Cf. PREOBRAJENSKY, EVGENY ALEKSEIEVITCH. Iz Moirr Vospominanii o Y. M. Sverdlove (Minhas Recordações de J. M. Sverdlov), in : Yakov Mikhailovitch Sverdlov. Sbornik Vospominanii i Statei (Jakob Mikhailovitch Sverdlov. Coletânea de Recordações e Ensaios), ed. ISTPART : Otdel TS.K.R.K.P.(b.) po Izutcheniiu Istorii Oktiabrskoi Revoliutsii i R.K.P.(b.), Leningrad : Gosudarstvennoe Izdatelstvo Leningrad, 1926, pp. 168 e s.

[2] Anoto, porém, que Preobrajensky parece equivocar-se ligeiramente nessa sua informação, aqui vertida em seu brilhante texto. Pois Sverdlov pretendia, nessa ocasião, dirigir-se, em verdade, para a Conferência Bolchevique de Tammerfors, ocorrida entre 12 e 17 (25 e 30) de dezembro de 1905, e não propriamente para o Congresso da Unificação do POSDR, que teve lugar, apenas posteriormente, em Estocolmo, em abril de 1906.

[3] Nesse passo de sua exposição, Preobrajensky formula a seguinte nota de pé de página, plenamente esclarecedora: “Convoquei essa conferência, de modo que se realizasse em Viatk. Porém nela não estive presente, em virtude de, antes de sua realização, ter sido preso novamente. Na conferência em destaque, um papel notável foi desempenhado por Artiom e Nazar (Nakoriakov).  

[4] De modo elucidativo, observa  Preobrajensky, nessa sede : “Esse espião, chamado Lebedev, encontrei-o, finalmente, em 1919, na cidade de Orel, dias antes do momento em que pretendiam enviá-lo, como funcionário do Departamento Político, a uma das divisões do Fronte Sul. Dei ordem de prisão contra Lebedev. Foi, então,  fuzilado em Perm, tendo tomado ciência de seu próprio ato criminoso.