90 ANOS DA REVOLUÇÃO SOCIALISTA PROLETÁRIA RUSSA DE OUTUBRO DE 1917

MORAL E CONSCIÊNCIA, ORGANIZAÇÃO E DIREÇÃO DAS LUTAS REVOLUCIONÁRIAS

DE EMANCIPAÇÃO PROLETÁRIO-SOCIALISTA

TEXTOS DE CÉLEBRES BOLCHEVIQUES SOBRE J. M. SVERDLOV

 

RECORDAÇÕES J. M. SVERDLOV : 

O Melhor Tipo de Bolchevique

 

LEÓN D. B. TROTSKY[1]

 

Concepção e Organização, Compilação e Tradução Asturig Emil von München

Fevereiro 2002 emilvonmuenchen@web.de

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Conheci Sverdlov apenas em 1917, na reunião da fração dos bolcheviques do I Congresso dos Soviets.

Sverdlov a presidia[2].

 

Naqueles tempos, pouquíssimos no Partido suspeitavam da verdadeira importância específica dessa pessoa notável.

Porém, já no curso dos meses subseqüentes, Sverdlov haveria de desenvolvê-la plenamente.

No primeiro período pós-revolucionário, os emigrantes, i.e. aqueles que haviam passado muitos anos no exterior, ainda se distinguiam dos „bolcheviques do interior“, dos bolcheviques domésticos“.

A experiência européia e, em conexão com ela, os círculos mais amplos, bem como a experiência teórico-geral das lutas fracionais conferiam sérias vantagens aos emigrantes, em diversos sentidos.

Evidentemente, essa divisão feita entre emigrantes e não-emigrantes era meramente de ordem passageira e, posteriormente, desapareceu.

Porém, em 1917 e 1918, apresentava-se, em diversos casos, ainda muito perceptível.

Já naqueles tempos, não se podia sentir, entretanto, qualquer „provincialismo“ em Sverdlov.

Ele cresceu e fortaleceu-se, de mês a mês, de maneira tão natural, tão orgânica, tão aparentemente sem esforço algum, tão em compasso com os acontecimentos e tão em autêntico contato e colaboração com Vladimir Ilitch que poderia parecer, desde um ponto de vista superficial, ser Sverdlov, por natureza, desse jeito mesmo, tendo nascido já como um preparado „Estadista” revolucionário, de primeiro escalão[3].

 

Sverdlov abordava todas as questões da revolução não de cima para baixo, i.e. não a partir de uma concepção teórico-geral, mas sim partindo de baixo, através dos impulsos diretos da vida, projetados para o interior da organização do Partido.

Todas as novas tarefas revolucionárias emergiam perante Sverdlov - ou para ele imediatamente se concretizavam, logo após o seu surgimento –como tarefas sobretudo de cunho organizativo.

Às vezes, em momentos de apreciação de uma nova questão política podia parecer - particularmente quando Sverdlov se calava, o que não pouco freqüentemente acontecia – que ele oscilava ou ainda que não possuía opinião própria formada.

Na realidade, durante os debates, Sverdlov ficava elaborando, ele mesmo, um trabalho paralelo, que poderia ser descrito da seguinte forma :

 

·            quem enviar e para onde enviar ?

 

·            como resolver e como coordenar?

 

Chegado o momento em que surgia definida a decisão política geral a ser tomada, sendo necessário começar a refletir acerca dos aspectos pessoal e organizativo da questão, resultava, quase invariavelmente, que Sverdlov possuía já acabada uma proposta prática de grande abrangência, fundada em recordações de informações e no conhecimento individual de pessoas.

No primeiro período inicial então existente de sua estruturação, todos os departamentos e instituições soviéticas dirigiam-se a Sverdlov em busca de pessoas e essa primeira distribuição, ainda em esboço, dos quadros do Partido exigia extraordinária resolução e criatividade pessoal.

Era impossível apoiar-se no aparato, nos registros, nos arquivos.

Pois, todos esses meios ainda se encontravam em um estado extremamente débil e não proporcionavam, de nenhum modo, meios diretos para a determinar em que dimensão o revolucionário profissional Ivanov poderia ser qualificado para intervir na qualidade de chefe de um desses departamentos soviéticos qualquer que existia, provisoriamente, apenas de modo nominal[4].

 

A fim de solucionar uma questão como essa, era imprescindível que se dispusesse de uma intuição psicológica particular.

Era necessário encontrar no passado de Ivanov dois ou três pontos de apoio e sacar deles conclusões para uma situação completamente nova.

Assim, uma tal transplantação carecia de ser empreendida, nos mais diferentes domínios, ao efetuar-se a procura de um comissário do povo ou de um gerente para a tipografia do “Izviestia(Notícias)”, ao realizar-se a busca de um membro do Comitê Executivo Central dos Sovietes de Toda a Rússia(VTsIK) ou de um Comandante do Kremlin etc.

Essas questões organizativas surgiam, evidentemente, por fora de todas as seqüências das coisas, i.e. não dos postos mais elevados para os mais baixos ou dos mais baixos para os mais elevados, mas sim reversivelmente, casualmente, caoticamente.

Sverdlov realizava pesquisas, reunia ou recapitulava informações biográficas, realizava chamadas telefônicas, recomendava, executava envios, tomava decisões.

No presente momento, tenho até mesmo dificuldade de dizer a que título propriamente executava esse trabalho, i.e. quais eram suas atribuições formais.

Porém, em todo o caso, uma expressiva parte desse trabalho Sverdlov executava individualmente - com o apoio de Vladimir Ilitch naturalmente -, e ninguém discutia sobre isso, porquanto tal proceder era efetivamente exigido por toda a situação então existente.

Uma parte significativa de seu trabalho organitivo era conduzida por Sverdlov enquanto Presidente do Comitê Executivo Central dos Sovietes de Toda a Rússia(VTsIK), valendo-se dos membros desse comitê para o cumprimento de diversas determinações e ordens específicas.    

 

“ - Converse com Sverdlov ! ”, - aconselhava telefonicamente Ilitch em diversos casos, quando a ele se dirigiam com tais ou quais dificuldades.

 

“- É necessário conversar com Sverdlov” – dizia para si mesmo o noviço “dignitário” soviético, quando diante dele mesmo emergia uma discrepância qualquer com seus colaboradores.

 

Segundo a constituição não escrita de então, um dos meios para decidir questões práticas de primeiro grau consistia em “conversar com Sverdlov”.

Porém, o próprio Sverdlov, evidentemente, não se comportava, absolutamente, segundo esse método personalista.

Pelo contrário : todo o seu trabalho preparava o pressuposto para uma resolução mais sistemática e ordenadora das questões partidárias e soviéticas.

Naqueles tempos, os “pioneiros” eram indispensáveis, em todos os domínios, i.e. pessoas que conseguissem operar em meio ao imenso caos, agindo de maneira autônoma, sem precedentes, ordenamentos ou mesmo preceitos.

Eis que precisamente esses pioneiros procuravam Sverdlov, no caso de todas as possíveis necessidades.

Tal como acima ficou assinalado, Sverdlov recordava-se desse ou daquele detalhe biográfico sobre quem se havia comportado quando e como e sacava, a partir daí, conclusões acerca da utilidade ou inutilidade de certo candidato.

Evidentemente, os equívocos eram muitos.

Porém, surpreendente era o fato de que não fossem ainda maiores.

De toda sorte, o que parecia ser ainda mais admirável era como, em geral, resultava ser possível tratar de uma questão que se situava diante do caos das tarefas existentes, diante do caos de dificuldades e, além disso, com um mínimo de recursos pessoais.

A partir do ponto de vista principista e da adeqüabilidade política, toda tarefa apresentava-se como sendo extraordinariamente mais clara e acessível do que a partir do ângulo organizativo.

Esse fato é observado entre nós ainda nos dias de hoje, emergindo da própria essência do período de transição ao socialismo.

Porém, outrora, naquelas primeiras horas, essa contradição entre o objetivo claramente compreensível e a insuficiência de recursos materiais e humanos revelava-se de modo incomensuravelmente mais aguçado do que presentemente.

Precisamente quando a questão alcançava o terreno da decisão prática, muitos de nós, em dificuldades, começavam a quebrar a cabeça, demorada e estarrecidamente ...

 

“ - E então, Jakob Sverdlov, o que é que você pode fazer?”

 

E Sverdlov apresentaria, então, a sua solução.

Considerava “tal questão como totalmente realizável”, na medida em que fosse enviado um grupo de bolcheviques bem escolhidos, dirigindo-os como haviam de ser, conectando-os com quem fosse necessário, supervisionando-os, auxiliando-os. 

Com vistas a alcançar vitórias nesse sentido, era necessário que se estivesse plenamente dotado de segurança interior quanto ao fato de que toda tarefa poderia ser resolvida e toda dificuldade, superada.

A fonte inesgotável de seu otimismo operacional formava, efetivamente, o substrato dos trabalhos de Sverdlov.

Naturalmente, isso não quer dizer que, desse modo, eram todas as tarefas resolvidas em cem porcento. 

Se já o fossem em dez porcento, já estava mesmo bom.

Naqueles tempos, isso significava já uma salvação, pois assegurava a existência do dia seguinte.

De qualquer forma, porém, nisso consistia o trabalho daqueles primeiros anos dificultosos : obter, de alguma forma, provisões, armar, equipar, seja do modo que fosse, dar apoio aos transportes, como possível fosse, dar cabo do tifo, da maneira como resultasse viável : custe o que custasse, cumpria assegurar o dia subseqüente da revolução.

As qualidades de Sverdlov revelavam-se de modo particularmente claro nos momentos mais críticos, p.ex., depois dos Dias de Julho de 1917, i.e. depois de a Guarda Branca ter massacrado nosso Partido, em Petrogrado, bem como nos Dias de Julho de 1918, i.e. depois da Insurreição dos Socialistas-Revolucionários (SRs) de Esquerda.

Tanto em um como em outro caso, foi necessário reconstruir a organização, renovar ou criar, novamente, os vínculos, examinando as pessoas, que tinham passado por grandes provas.

E, em ambos os casos, Sverdlov foi insubstituível com sua paciência revolucionária, amplitude de visão e intrepidez.

Em outra sede, já relatei como Sverdlov chegou do Teatro Bolshoi, vindo do Congresso dos Sovietes, e adentrou no gabinete de Vladimir Ilitch, no “ápice” mesmo da Insurreição dos Socialistas-Revolucionários (SRs) de Esquerda.

 

“ – O que é que vocês acham  ?”, disse ele, expressando-se com sarcasmo.

 

“ - Pelo que parece, será necessário movermo-nos, novamente, do Comissariado Soviético do Povo (Sovnarkom) para o Comissariado Militar da Revolução (Revkom) ?”

 

Sverdlov permanecia sendo o mesmo, tal como sempre o fora.

Naqueles dias, era, de fato, possível conhecer as pessoas.   

Jakob Mikhailovitch era verdadeiramente inigualável : confiante, corajoso, firme, resoluto – o melhor tipo de bolchevique.

Propriamente nesses dias árduos, Lenin veio a propriamente conhecer e apreciar Sverdlov.

Por vezes, costumava ocorrer de Vladimir Ilitch telefonar para Sverdlov, a fim de propor a adoção dessa ou daquela medida de urgência e, na maioria dos casos, recebia a seguinte resposta :

 

“- Já !”

 

Isso significava que a medida já havia sido tomada.

Freqüentemente, divertiamo-nos com esse assunto, dizendo :

 

“- Mas, acontece que, com Sverdlov, isso seguramente « já » está feito !”    

 

Certa vez, Lenin me contou :

 

“- No entanto, estivemos, de início, contra sua entrada no Comitê Central.

Até que ponto subestimamos esse homem !

Quanto à sua avaliação, havia divergências bastante expressivas.

Porém, a base corrigiu-nos, no Congresso, e demonstrou, com isso, estar inteiramente correta ...”

 

Não obstante o fato evidente de que jamais existiu um mínimo discurso que fosse sobre a mistura de organizações partidárias, é indubitável que o bloco selado com os socialistas-revolucionários  (SRs) de esquerda expressava, em tudo, já alguma indefinição no comportamento das células partidárias.

Basta dizer, a título de exemplo, que quando enviamos um grande grupo de trabalhadores para o fronte oriental, concomitantemente com a designação de Muravyov, na qualidade de comandante, era secretário desse grupo, composto por diversas dezenas de homens, um socialista-revolucionário (SR) de esquerda, a despeito do fato de o grupo em tela, em sua composição majoritária, ser composto por bolcheviques.

No interior de diversas instituições e departamentos do Estado, as relações existentes entre os bolcheviques e os socialistas-revolucionários (SRs) de esquerda caracterizavam-se por serem tanto mais nebulosas quanto mais numerosos fossem, então, em nosso próprio partido, os elementos novos e ocasionais.

Precisamente o simples fato de que a organização socialista-revolucionária (SR) de esquerda, então também situada no interior das tropas da Tcheka (EvM.: Comissão Extraordinária, i.e. então a Polícia Política Revolucionária Soviética), veio a se revelar como o cerne fundamental da Insurreição dos Socialistas-Revolucionários (SRs) de Esquerda caracteriza, de modo suficientemente claro, a ausência de formalidade na inter-relação, a insuficiência de cautela e de solidez da parte dos membros do Partido, apenas há pouco ingressados no aparato estatal ainda recente.

A virada salvadora processou-se, aqui, literalmente, no período de dois ou três dias.

Nos dias da insurreição em referência, orquestrada por um Partido governante contra o outro, quando todas as relações haviam sido repentinamente colocadas em questão e, no interior dos departamentos, os funcionários passaram a ter atitudes de expectativa, começaram os melhores e mais avançados elementos comunistas combativos a, rapidamente, aproximarem-se uns dos outros, no seio de cada uma das instituições, dissolvendo os laços com os socialistas-revolucionários (SRs) de esquerda, colocando-se efetivamente em oposição a eles.     

Nas fábricas e nos segmentos militares, fundiram-se as células comunistas.

Esse foi um momento de extraordinária importância para o desenvolvimento tanto do Partido quanto do Estado.

Distribuindo-se e, em parte, dispersando-se, pelas fronteiras ainda informais do aparato do Estado, bem como expandindo, em medida significativa, os seus laços partidários nos ofícios públicos – ali mesmo, onde se desfechavam os golpes da sublevação socialista-revolucionária (SR) de esquerda –, passaram os elementos do Partido para a dianteira, estreitando suas fileiras, fortalecendo-se, subitamente.

Por todos os lados, formaram-se células comunistas, para cujas mãos transitou, naqueles dias, a direção fática de toda vida interior das instituições.

Pode-se dizer que, precisamente nesses dias, pela primeira vez e de modo autêntico, o Partido conscientizou-se em massa de seu papel enquanto organização dirigente, enquanto dirigente do Estado Proletário, enquanto Partido da Ditadura do Proletariado, fazendo-o não apenas a partir do aspecto político, senão ainda a partir do ângulo organizativo.

Esse processo que poderia ser denominado de primeira auto-determinação organizativa do Partido no interior do aparato de Estado Soviético – Estado este criado precisamente por aquele mesmo Partido -, teve lugar sob a direção imediata de Sverdlov - transcorrendo independentemente do fato de processar-se na fração do Comitê Executivo Central dos Sovietes de Toda a Rússia(VTsIK) ou na garagem do Comissariado da Guerra.   

O historiógrafo da Revolução de Outubro deverá especialmente destacar e atenciosamente estudar esse momento crítico no desenvolvimento das inter-relações havidas entre Partido e Estado, momento esse que imprimiu sua marca em todo o período subseqüente, até aos nossos dias.

Nesse quadro, o historiógrafo que se ocupar com a questão em relevo há de revelar, nesse giro por demais significativo, o papel gigantesco desempenhado por Sverdlov, enquanto organizador.

Pois, em sua direção, confluiram todos os liames das relações práticas.

Ainda mais críticos foram os dias em que a Tchecoslováquia ameaçou Nijn-Novgorod e Lenin encontrava-se de cama, com duas balas socialistas-revolucionárias (SRs) em seu corpo.

No dia 1° de setembro, recebi, em Sviajsk, um telegrama codificado de Sverdlov :

 

“ - Regresse imediatamente. Ilitch ferido.

Não se sabe quão grande perigo.

Inteira tranqüilidade.

31.08.1918

Sverdlov” [5]

 

 

Parti, imediatamente, para Moscou.

O temperamento nos círculos do Partido de Moscou era de abatimento, de desânimo, porém não existia hesitação.

A melhor expressão dessa ausência de perplexidade era o próprio Sverdlov.

Nesses dias, a responsabilidade de seu trabalho e de seu papel multiplicou-se, por diversas vezes.

Em sua figura vigorosa, sentia-se a existência de uma tensão elevada.

Porém, essa tensão nervosa significava apenas elevada vigilância : seu comportamento nada possuía em comum com correria desordenada e, muito menos, com desespero.     

Naqueles momentos, Sverdlov forneceu sua inteira estatura.

O diagnóstico dos médicos era esperançoso.

Porém, ainda estava proibido avistarmo-nos com Lenin : a ninguém se permitia contatá-lo.

Minha permanência em Moscou acabou não se revelando como essencial.

Logo após meu retorno a Sviajsk, vim a receber de Sverdlov uma carta, datada de 8 de setembro, contendo os seguintes termos :

 

“- Caro Lev Davidovitch !

Aproveito a oportunidade para escrever-lhe algumas frases, em virtude de existir oportunidade de correio.

1. As coisas estão arranjando-se bem com Vladimir Ilitch.

Dentro de 3 ou 4 dias, conseguirei, provavelmente, encontrar-me com ele. ...”

    

Além disso, nessa mensagem foram tratadas questões práticas, cuja reprodução não cumpre ser aqui realizada.  

Recordo-me, vivamente, também da viagem de trem que fiz com Sverdlov, para Gorki, onde convalescia Vladimir Ilitch, depois de seu ferimento.

Isso ocorreu à época de minha viagem subseqüente à Moscou.   

Apesar da situação terrivelmente difícil daqueles tempos,  sentia-se, solidamente, uma mudança para melhor.

No fronte oriental, que então era de importância decisiva, havíamos recuperado Kazan e Simbirsk. 

O atentado contra a vida de Lenin serviu ao Partido como um choque político extraordinário : o Partido passou a se sentir mais atento, precavido e preparado para resistir ao inimigo.

Lenin recuperava-se, rapidamente, e preparava-se para retornar, brevemente, ao trabalho. 

Tudo isso, em seu conjunto, produzia uma atmosfera de firmeza e confiança, dado o fato de que, se o Partido conseguira arranjar-se bem até àquela altura, muito melhor arranjar-se-ia dali para diante.

Precisamente com essa atmosfera moral, viajamos com Sverdlov a Gorki.

Ao longo do caminho, Sverdlov colocou-me a par de todas as coisas que haviam ocorrido em Moscou, durante o tempo de minha ausência.

Sua memória era estupenda, tal como sucede com a maioria das pessoas, dotadas de forte vontade criativa.

Sua narração incluía sempre, em si mesma, um esqueleto objetivo, pormenores organizativos indispensáveis e, concomitantemente, caracterizações de pessoas.

Em uma palavra : essa era a continuação do trabalho habitual de Sverdlov.

E, por debaixo de tudo isso, sentia-se um arcabouço de tranqüilidade e, ao mesmo tempo, uma excitante segurança : “Nós vamos conseguir!”.   

 

*

*  *

 

Cumpria a Sverdlov exercer muitas presidências, em diversas instituições e em diferentes reuniões.

Sverdlov foi um poderoso presidente.

Não no sentido de que ele bloqueava os debates, repreendia os oradores etc.

Não ! Pelo contrário !

Não demonstrava nenhuma ambição de censura ou renitência formalista.

Seu poderio enquanto presidente residia em que sempre sabia a que resolução prática e de que maneira era necessário conduzir a assembléia.

Compreendia quem, porque e de que forma haveria de falar.

Conhecia bem o lado dos bastidores do negócio – e todo negócio complexo e grande possui necessariamente os seus bastidores.

Sabia destacar na tribuna, oportunamente, aqueles oradores que deviam ser destacados, conseguia colocar as propostas, tempestivamente, em votação.

Tinha consciência do que era possível alcançar e era capaz de alcançar o que queria.

Essas suas qualidades, enquanto presidente, encontravam-se indissoluvelmente ligadas a todas as suas características enquanto dirigente prático, com sua apreciação viva e realista das pessoas, com seu incansável espírito de criatividade, no domínio das conexões organizativas e pessoais.

Em reuniões tempestuosas, Sverdlov era capaz de produzir perturbação e gritos e, então, no minuto adequado, intervir, a fim de que, com sua mão firme e sua voz metálica, a ordem fosse restabelecida.

Sverdlov era de estatura média, muito seco, moreno magro, com traços faciais agudos e angulares.

Sua voz forte - em minha opinião, até mesmo poderosa -, podia parecer incompatível com seu porte físico.

Entretanto, em medida ainda mais elevada, seria possível dizer-se isso do seu caráter.

Sem embargo, tal impressão poderia ser adquirida apenas em um momento efêmero.

Pois, logo a seguir, a forma física fundia-se com o espírito e essa figura média e seca, com vontade e força tranqüilas e indomáveis, dotada, porém, de voz inflexível, intervinha tal como uma imagem perfeitamente acabada.

 

“- Sem problemas !”, dizia, às vezes, Vladimir Ilitch, em uma situação qualquer bem complicada.

 

“- Sverdlov vai dizer isso a eles, com o seu barítono sverdloviano e a questão estará resolvida ...”      

 

Nessas palavras, residia uma amável ironia.

No primeiro período posterior a Outubro, nossos inimigos chamavam os comunistas, tal como é sabido, de “os homens de couro” , tendo como base as vestimentas utilizadas por esses.

Acho que o exemplo de Sverdlov cumpriu um grande papel na introdução do “uniforme” de couro.

Ele mesmo andava, em todas as ocasiões, vestido de couro, da cabeça aos pés, isto é, das botas até à boina.

A partir dele, enquanto figura central organizativa, expandiu-se, amplamente, essa vestimenta, que, de alguma forma, correspondia ao caráter daqueles tempos.

Os companheiros, que conheceram Sverdlov durante a clandestinidade, dele recordam-se de outra maneira.

Porém, em minhas recordações, a imagem de Sverdlov deteve-se no ornamento de seu encouraçado negro de couro, sob os golpes dos primeiros anos da Guerra Civil.

Estávamos em reunião do Politbureau quando Sverdlov, acamado em sua casa, ardendo de febre, piorou completamente.

Helena D. Stassova, então Secretária do Comitê Central, surgiu durante a reunião, vinda do quarto de Sverdlov.

Sua fisionomia estava irreconhecível :

 

“- Jakob Mikhailovitch está mal ..., completamente mal,” disse ela.  

 

Bastava lançar um olhar sobre ela para entender-se que não havia nenhuma esperança.

Suspendemos a reunião.

Vladimir Ilitch dirigiu-se ao quarto de Sverdlov, enquanto desloquei-me para o Comissariado, com vistas a preparar-me para partir imediatamente para o fronte.

Cerca de quinze minutos depois, Lenin telefonou-me e disse com voz particularmente entorpecida, dando a entender seu mais elevado desassossego :

 

“- Foi-se embora.”    

 

“- Foi-se embora ?”

 

“- Foi-se embora.”

 

Permanecemos ainda um bom tempo no telefone, cada qual sentindo o silêncio do outro, do lado de lá da linha.

A seguir, desligamos, tal como se nada mais houvesse a dizer.

Jakob Mikhailovitch havia partido.

Sverdlov já não se encontrava mais entre nós.

 

 

EDITORA DA ESCOLA DE AGITADORES E INSTRUTORES

“UNIVERSIDADE COMUNISTA REVOLUCIONÁRIA J. M. SVERDLOV”

PARA A FORMAÇÃO, ORGANIZAÇÃO E DIREÇÃO MARXISTA-REVOLUCIONÁRIA

DO PROLETARIADO E SEUS ALIADOS OPRIMIDOS

MOSCOU - SÃO PAULO - MUNIQUE – PARIS



[1] Cf. TROTSKY, LÉON DAVIDOVITCH. Pamiati Sverdlova (Recordações de Sverdlov)(13.03.1925), in : Jakov Mikhailovitch Sverdlov. Sbornik Vospominanii i Statei (Jakob Mikhailovitch Sverdlov. Coletânea de Recordações e Ensaios), ed. ISTPART : Otdel TS.K.R.K.P.(b.) po Izutcheniiu Istorii Oktiabrskoi Revoliutsii i R.K.P.(b.), Leningrad : Gosudarstvennoe Izdatelstvo Leningrad, 1926, pp. 71 e s.

[2] Assinalo que o I Congresso dos Sovietes de Toda a Rússia teve lugar entre os dias 3 e 24 de junho de 1917. No quadro desse congresso, Sverdlov dirigiu os trabalhos da fração bolchevique, em cujo contexto bolcheviques, unionistas interdistritais e mencheviques internacionalistas atuaram em bloco, defendendo as consignas de “Todo o Poder aos Sovietes!” e “Por uma Paz sem Anexações!” Nesse congresso, foram eleitos para a composição do Comitê Executivo Central dos Sovietes 104 mencheviques-chauvinistas, 100 socialistas-revolucionários (SRs) e apenas 35 bolcheviques.

[3] Destaco, oportunamente, ao leitor que, em 8  de novembro de 1917, por proposta de Lenin, Sverdlov foi eleito, na reunião do Comitê Executivo Central dos Sovietes de Deputados Trabalhadores e Soldados de Toda a Rússia, Presidente desse órgão de Poder Proletário. Enquanto dirigente do Secretariado do POSDR (Bolchevique) e Presidente do Comitê Executivo Central dos Sovietes, Sverdlov assegurou, a partir de então, até a data de sua morte, a direção prática da política revolucionária dos bolcheviques, tendo Lenin como dirigente máximo.

[4] Observe-se que o revolucionário profissional de nome “Ivanov” é aqui referido por Trotsky de modo eminentemente exemplificativo.

[5] Cumpre destacar que, em 30 de agosto de 1918, Sverdlov, por deliberação do Comitê Central do PCR (Bolchevique), redigiu o apelo relativo ao atentado contra a vida de Lenin, dirigida “A Todos os Sovietes de Deputados Trabalhadores, Camponeses e Militares Vermelhos. A Todas às Forças Armadas. A Todos, a Todos, a Todos !” Nela, Sverdlov deu início ao período do Terror Vermelho, destacando que: “A classe trabalhadora responderá aos atentados, perpetrados contra as vidas de seus dirigentes, estreitando ainda mais as suas forças e deflagrando um impiedoso terror de massas contra todos os inimigos da revolução.” Acerca do tema, vide Cf. SVERDLOV, JAKOB MIKHAILOVITCH. Vozzvanie Vserossiiskovo Tsentral’novo Ispolnitel’novo Komiteta po Povodu Pokushenia na V. I. Lenina (Apelo do Comitê Executivo Central de Toda a Rússia por Ocasião do Atentado contra a Vida de V. I. Lenin)(30 de Agosto de 1918), in: Yakov M. Sverdlov. Izbrannye Proizvedenia v Trekh Tomakh (J. M. Sverdlov. Obras Escolhidas em Três Volumes), Vol. 3, Moscou : Gosudarstvennoe Izdatel’stvo – Polititcheskoi Literatury, 1960, pp. 5 e s.; IDEM. O Pokushenie na V. I. Lenina Vystuplenie na Zasedanii VTsIK (Sobre o Atentatdo contra a Vida de V. I. Lenin. Intervenção na Sessão do Comitê Executivo Central de Toda a Rússia)(2 de Setembro de 1918) , in : ibidem, pp. 7 e s.; tb. KRUPSKAYA, NADEJDA K. Vospominania o Lenine (Recordações de Lenin), Vypusk III (Parte III), Moscou-Leningrado : Gosudarstvennoe Izdatelstvo, 1936, p. 73.